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O Rio de Janeiro entre conquistadores e comerciantes: Manoel Nascentes Pinto (1672-1731) e a fundação da freguesia de Santa Rita | João Carlos Nara Júnior

O novo livro escrito pelo historiador, arqueólogo, arquiteto e urbanista João Carlos Nara Júnior é o resultado de uma brilhante e inédita investigação, que traz à luz uma história do Rio de Janeiro setecentista ainda esquecida: a da fundação da freguesia de Santa Rita. Sobre essa lacuna na historiografia do Rio de Janeiro colonial, o também historiador Carlos Eugênio Líbano Soares adverte, em texto de sua autoria publicado na quarta capa da obra, que “a academia preguiçosamente reluta em iluminar”. Entretanto, ao contrário do recorrente esquecimento acadêmico, o pesquisador e especialista nos estudos sobre a igreja de Santa Rita, João Carlos Nara Jr., com a competência que lhe é característica, reluta para que a história dessa freguesia não siga silenciada nas gavetas dos arquivos. O mérito do autor é incontestável. Essa publicação, portanto, representa um avanço para que essa grave falha historiográfica seja, finalmente, compensada.

Em vista disso, o autor dotado da perspicácia do bom historiador, da sensibilidade do arquiteto, da habilidade do urbanista e da intuição do arqueólogo, reabilita uma história fascinante, que percorre desde os primórdios históricos da criação do antigo bairro da Vila Verde, ainda nas primeiras décadas do século XVII, até alcançar a fundação da freguesia de Santa Rita em meados do século XVIII. A fim de realizar essa investigação de fôlego, João Carlos Nara Jr. constrói sua pesquisa a partir de um surpreendente conjunto de fontes, que permite recuperar os traços biográficos da família Nascentes Pinto e do seu fundador, o patriarca, fidalgo português e oficial alfandegário Manoel Nascentes Pinto (1672-1731). Dessa forma, respaldado por expressivo corpus documental, alude sobre outros aspectos que foram igualmente relevantes no contexto histórico daquele século.

Nara Jr. entrelaça ao seu texto questões relativas ao tráfico negreiro, à fé devocional, à fiscalização alfandegária na Colônia, ao papel dessa instituição na manutenção dos soldos da guarnição do Sacramento, à estrutura social vigente no Antigo Regime colonial, ao sistema de mercês e privilégios concedidos pela coroa e pela Igreja, dentre outros mais de igual significância.

No livro, a abordagem de tal complexa conjuntura pretende, portanto, evidenciar para o leitor as motivações que levaram o protagonista da sua narrativa – o comerciante e meirinho do mar, dom Manoel – a edificar a igreja em homenagem a sua santa de devoção, desde os anos de 1719 a 1728, e a envolver-se na fundação daquela freguesia.

Possuidor de uma escrita bem articulada, fluida e de grande inteligibilidade, Nara Jr. reforça que a proposta de seu livro foi “descrever a relação sui generis que o fidalgo […] manteve com seus expoentes coetâneos e, inclusive, o papel que desempenhou na mais remota origem do sistema escravagista carioca, instalado na freguesia por ele fundada” (p. 84). Ainda enfatiza que, nos chãos do entorno do templo devotado a Santa Rita, teve lugar o primeiro campo santo destinado aos pretos novos. Por tudo isso, o livro é de grande interesse heurístico. A contribuição dessa publicação para os estudos sobre a memória africana no Rio de Janeiro setecentista é indubitável. Além de revelar singularidades acerca da estrutura escravagista colonial, evidencia, igualmente – fato que é frequentemente eclipsado tanto pela historiografia, quanto pelas políticas patrimoniais – o local onde foi constituído o primeiro cemitério de pretos novos na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: o Largo de Santa Rita.

O destaque dado pelo autor ao papel que a Alfândega desempenhou nos primórdios do século XVIII evidencia algumas particularidades do comércio de escravos africanos na trajetória expansionista da cidade do Rio de Janeiro. A centralidade da instituição alfandegária nos exercícios fazendários da coroa é amplamente apontada nesse livro. Com grande elegância narrativa, Nara Jr. informa ao leitor sobre as dinâmicas relativas ao comercio de escravos e mormente sobre os mecanismos fiscais praticados naquela instituição, que objetivavam o sustento do projeto militar da Colônia do Sacramento.

De maneira a lançar luz sobre as práticas do cotidiano alfandegário nos idos de 1700, João Carlos Nara Jr. recorre ao interessante testemunho do comerciante inglês oitocentista John Luccock. Da pena do viajante britânico, o leitor é informado, por exemplo, da aparência pessoal, das vestimentas e atribuições dos funcionários da Alfândega, do trabalho desempenhado pelo braço escravo no desembarque de mercadorias, da precariedade das instalações prediais e ainda do descuido com os negócios alfandegários.

Como fio condutor da narrativa, a biografia de Manoel Nascentes Pinto é reconstruída sob o mesmo cenário urbano onde coexistiam “os principais pontos do tráfico escravagista do Rio de Janeiro setecentista: o entreposto fiscal e o sanitário, o cais dos Mineiros […] e as lojas que comerciavam cativos” (p. 47).

II

O livro O Rio de Janeiro entre conquistadores e comerciantes: Manoel Nascentes Pinto (1672-1731) e a fundação da freguesia de Santa Rita é organizado em quatro capítulos, além da apresentação e da conclusão. A obra perfaz o total de cem páginas. A capa do livro logo chama a atenção, por ser ilustrada por uma bela e representativa aquarela: Largo de Santa Rita na rua dos pescadores – 1817, do pintor austríaco Thomas Ender. À primeira vista, a imagem já convida sugestivamente o leitor a se envolver na cena urbana abordada na obra: O Largo de Santa Rita e o primeiro campo santo contíguo ao frontispício da igreja. Destacado em primeiro plano, o Largo ostenta diante da porta do templo um grande cruzeiro. Nota-se que, nesse contexto, a existência do cruzeiro indica ser aquele um campo santo. Para completar a cena, o artista acrescentou à composição a representação de alguns grupos formados predominantemente por escravos africanos, de ganho e de ofício, que parecem transitar descontraídos, em meio à população livre. Relativo à quarta capa da obra, esta inclui um texto de apreciação escrito pelo historiador Carlos Eugênio Líbano Soares que acrescenta comentários laudatórios sobre a relevância temática da obra.

No capítulo introdutório “As minas de ouro possuíam diamantes, muitos diamantes!” são recuperadas algumas curiosidades dos anos da corrida diamantífera, de forma a apresentar o contexto histórico colonial no qual a família Nascentes Pinto se encontrava. Em seguida, na seção “Elementos biográficos para uma história local e global”, o autor revela os limites relativos à disponibilidade de documentos que reúnam traços biográficos de Manoel Nascentes Pinto e de sua família.

Na seção “Fontes sobre o Rio de Janeiro do primeiro quartel do século XVIII” informa sobre a recolha de informações referentes ao Rio de Janeiro em coletâneas de antiqualhas tais como o inventário da igreja de Santa Rita elaborado pelo IPHAN; diversos textos de memorialistas; o levantamento histórico realizado pela Mesa Administrativa da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Santa Rita; o inventário da família Nascentes Pinto de autoria do genealogista Nelson Pamplona e ainda, o livro Cultura e opulência do Brasil (1711), de autoria do jesuíta italiano André João Antonil. Sobre dom Manoel, foram encontradas relevantes informações em três fundos. As notas de rodapé referendadas nas páginas do livro, registram os locais de guarda dos mesmos. Dessa forma, são citados pelo autor os seguintes fundos: Correspondência política e administrativa de instâncias do Conselho Ultramarino; documentação cartorial constante da base de dados fundiários do Recôncavo da Guanabara; apontamentos eclesiásticos com registros de batismo, matrimônio e óbito de familiares e escravos, além de processos e testamentos. Outra relevante fonte consultada pelo autor é o atlas diacrônico da evolução social e urbana do Rio de Janeiro, elaborado pelo Humanities Reserch Center da Rice University.

Em seguida, a seção “Revisão bibliográfica do período” trata das referências conceituais que nortearam a investigação. Dessa forma, observamos que a esse mosaico teórico, somaram-se Luiz Felipe de Alencastro; Graça Salgado; Manolo Florentino; James Sweet; Laura de Mello e Souza; Luiz Mott e Ronaldo Vainfas. A seção “Inspirações para o método historiográfico”, que finaliza os textos introdutórios, alude à metodologia utilizada na pesquisa. Nara Jr, aponta para a escolha da abordagem transdisciplinar, inspirando-lhe os autores, Maurício Abreu; Carlo Ginzburg e Bruno Carvalho.

O primeiro capítulo, denominado “A fidalguia dos Nascentes Pinto”, apresenta a primeira seção intitulada “Origem da estirpe”, na qual convida o leitor a fazer uma viagem no tempo, levando-o à cidade do Rio de Janeiro do século XVIII e às origens da família Nascentes Pinto. Discorre sobre as bodas celebradas na igreja de Nossa Senhora da Candelária, em 6 de maio de 1697, entre a lisboeta Antônia Maria Lopes Rodrigues (1677-1749) e o fidalgo Manoel Nascentes Pinto (1672-1731). Informa que a noiva “tinha recebido alguns ofícios na Alfândega como herança […] para que lhe servissem de dote” (p. 27) e que então, “por ser desposada por dom Manoel, tais ofícios foram passados ao marido”. Assim, a partir dos ofícios alfandegários que dom Manoel recebeu, o autor reconstruiu a trajetória da carreira administrativa do protagonista, ao mesmo tempo em que analisou, com o virtuosismo que lhe é peculiar, as estratégias de ascensão social e enobrecimento de linhagem da pequena nobreza, práticas típicas do Antigo Regime colonial do Império Português. Pela análise documental apresentada no capítulo, Nara Jr. também focaliza a relação existente entre a fidalguia, a Alfândega e as obrigações com pagamentos para a Colônia do Sacramento. A seção “O bairro de Vila Verde” relata a localização geográfica e a topografia do antigo bairro da Vila Verde e informa que foi ali que os Nascentes Pinto fixaram a sua moradia. Em seguida, a história do bairro é reconstruída desde o ano de 1613, até ser revelado que, por volta de 1718, os Nascentes Pinto tornam-se proprietários de um chão junto ao Largo de Santa Rita para edificar a capela de sua santa de devoção.

O segundo capítulo. “A marinha da cidade”. tem no título da sua primeira seção “A Alfândega do Rio de Janeiro”. A partir de um mapa do Rio de Janeiro em 1728 (p. 46), é possível localizar o prédio da Alfândega e os principais pontos do tráfico escravagista daquela região. Por serem aqueles lugares próximos ao Largo de Santa Rita, este seria, posteriormente, o local escolhido para ser o primeiro cemitério de pretos novos. Uma planta-baixa da Alfândega de antes de 1752 (p. 49) informa ao leitor como eram distribuídos os compartimentos da repartição. Para ilustrar, é inserida no livro uma belíssima aquarela do pintor austríaco Thomas Ender (p. 50). Igualmente sugestiva e agradável é a inserção na obra dos relatos do comerciante e viajante inglês John Luccock. A partir deles é possível fazer uma aproximação ao tempo em que Manoel Nascentes Pinto foi meirinho, guarda e selador da Alfândega do Rio de Janeiro. Também é apresentada a gravura “Desembarque”, de autoria do pintor austríaco Johann Moritz Rugendas (1835), onde é possível ver a chegada de dezenas de escravos africanos na Alfândega do Rio de Janeiro (p. 53). Na seção intitulada “Salários, negócios e soldos” são dadas a conhecer as funções dessa instituição, relativas à manutenção da interdependência entre os comerciantes, os oficiais alfandegários e os militares.

O terceiro capítulo, “A criação de uma nova freguesia”, apresenta a primeira seção sob o título “Um litígio com a Mitra”. Com base em documentação da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, o autor discorre acerca da criação da Irmandade de Santa Rita pelos Nascentes Pinto, no ano de 1710. Inclui um estudo sobre a concessão eclesiástica do Padroado e revela que em 1721 o casal Nascentes Pinto havia doado a capela, ainda em construção, para a Mitra diocesana e, “como condição, requeriam o exercício do direito de padroado perpétuo e hereditário” (p. 67). Tal requisição, entretanto, foi contestada pela Mitra, o que gerou um impasse que se estendeu pelos vinte e cinco anos seguintes. No texto da seção “O Valverde e o Valongo sob a proteção de Santa Rita”, é abordado que, ao fim do litígio com a Mitra, foi criada a freguesia que compreendeu o antigo bairro da Vila Verde e a região do Valongo, “calhando-lhe a cura pastoral, dos escravos recém-chegados à cidade”, e que a antiga capela tornou-se matriz da freguesia de Santa Rita “por provimento de 9 de janeiro de 1749” (p. 69-70). Referência incontestável nos estudos históricos, arquitetônicos e artísticos relativos às igreja e à freguesia de Santa Rita, João Carlos Nara Júnior informa que este templo foi tombado em 1938 por sua relevância artística, estilística e histórica. O autor assegura, que a decoração do interior da nave representa a primeira aparição do estilo rococó religioso nas Américas. É também de notável interesse, a revelação de que a igreja ostenta “alguns lustres do Mestre Valentim.

O capítulo quarto, “Estratagemas e Relações”, apresenta na seção “O recurso ao Breve apostólico” os resultados que colheu das pesquisas relativas aos desdobramentos do litígio dos Nascentes Pinto com a Mitra, uma vez que as pretensões de dom Manoel, em ter o padroado da capela de Santa Rita, foram frustradas. Em vista disso, a família serviu-se de um Breve pontifício, que os permitia possuir um oratório próprio. Nara Jr. informa que, após a morte de dom Manoel, a viúva mudou-se para a chácara da família no bairro do Valongo, onde em tempos pretéritos o casal havia construído uma capela em devoção a São José. Não tardou, portanto, para que dona Antônia Maria impetrasse novamente a execução do Breve apostólico para o seu novo oratório particular. Na seção “Rede de influências”, é mencionado o tema sombrio da criação do Tribunal do Santo Ofício em 1536, e a atuação da inquisição na perseguição de cristãos-novos no Rio de Janeiro por crime de judaísmo. Nara Jr. finaliza a sua agradabilíssima narrativa, informando ao leitor, que dom Manoel mantinha em suas relações muitos cristãos-novos e cita, inclusive, um certo João Roiz, “morador de Vila Verde e proprietário de engenhos de açúcar, que tivera seus bens confiscados pela inquisição” (p. 79). O texto ressalta, que o modelo tradicional da economia colonial era legitimado eficientemente pelas famílias senhoriais, e que os Nascentes Pinto e os cristãos-novos nesse modelo se incluíam, como meio estratégico para a ascensão social e para o fortalecimento das suas redes de influências.

III

A leitura desse livro reafirma ser a excelência da pesquisa histórica o fundamento primordial para que uma rigorosa reconstrução do passado reabilite, à posteridade, a preservação de sua memória. Assim, meticuloso, João Carlos Nara Jr. organizou seu texto com o rigor metodológico que caracteriza o historiador apaixonado pelo seu ofício. A alternância entre as diversas vozes que foram recuperadas pelo autor possibilitou-o, igualmente, esboçar as mentalidades e as práticas individuais e coletivas daquele contexto histórico colonial. Essa obra é, portanto, uma referência obrigatória na biblioteca do leitor interessado, que se debruça, curioso, sobre os meandros imemoriais e desconhecidos da história da Mui Leal e Heroica Cidade de São Sebastião.

Notas Sobre o autor

João Carlos Nara Júnior é Arquiteto e Urbanista (UFF) dedicado à Preservação e Patrimônio Cultural, integrante do quadro funcional do Escritório Técnico da UFRJ e cedido à Coordenação de Recursos Logísticos do Arquivo Nacional. Licenciado em História (Unirio), Mestre em Arqueologia (Museu Nacional/UFRJ) e Doutor em História Comparada (UFRJ). Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, de cuja revista é editor. Pesquisa a freguesia de Santa Rita, responsável pelos cemitérios de pretos novos no Rio de Janeiro, cuja matriz é detentora da primeira decoração religiosa rococó nas Américas. Outros livros publicados: Arqueologia da Persuasão: o simbolismo rococó da Matriz de Santa Rita. Curitiba: Appris, 2016, 283 p


Resenhista

Denise G. Porto – Mestre em História. Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em História (PPGH) da Universidade Salgado de Oliveira-UNIVERSO, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Mary Del Priore. Denise G. Porto é autora do livro Maria Graham, uma inglesa na Independência do Brasil. A obra encontra-se no prelo e será publicada no ano de 2020 pela Editora CRV. É coautora da obra História: Diálogos Contemporâneos 3. Curitiba: Editora Atena, 2019.


Referências desta Resenha

NARA JÚNIOR, João Carlos. O Rio de Janeiro entre conquistadores e comerciantes: Manoel Nascentes Pinto (1672-1731) e a fundação da freguesia de Santa Rita. Curitiba: Editora Appris, 2019. Resenha de: PORTO, Denise G. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ano 27, n.27, p. 187-194, 2019. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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