O Rio de Janeiro dos fados, minhotos e alfacinhas: o antilusitanismo na Primeira República | Gladys Sabina Ribeiro
Elaborei esse texto com o objetivo de discutir e analisar algumas questões presentes no livro O Rio de Janeiro dos fados, minhotos e alfacinhas: o antilusitanismo na primeira república, de autoria de Gladys Sabina Ribeiro, historiadora e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora de longa data, o currículo de Gladys é extenso, possui graduação em história pela UFRJ (1979), especialização (1984) e mestrado (1987) pela UFF e doutorado pela UNICAMP (1997). Grande parte da sua produção é voltada para temas relacionados ao antilusitanismo, cidadania, direito, nação e identidade nacional, com ênfase na história do Brasil Império e Primeira República.
Quando avistamos um livro, a primeira coisa que nos chama atenção é a capa. A foto escolhida para a capa do livro analisado é de autoria do fotógrafo Augusto Malta e datada de 1920. A imagem nos remete ao Rio de Janeiro urbano. Na fotografia percebemos seis homens ao redor de um quiosque, alguns encarando a câmera e outros distraídos. A imagem tem uma linguagem que fala por si só, ao segurar o livro logo nos remetemos ao Rio de Janeiro da Primeira República, quando a modernidade buscava apagar e mascarar alguns hábitos tidos como indesejáveis pela elite dominante (como é o caso dos tragos de paraty e as cusparadas que compunham o ambiente dos quiosques). Já o título “O Rio de Janeiro dos fados, minhotos e alfacinhas” nos remete à um outro ambiente e quem julga o livro pelo título pode entender que a obra aborda o aspecto cultural que permeia a música portuguesa e os costumes portugueses, mas não é essa a proposta da autora. Em nenhum momento do texto é abordada a questão das festas portuguesas ou mesmo da música e creio que a palavra “Fado” só é citada no título do livro, bem como “Minhoto” e “Alfacinha”. No entanto, o subtítulo é muito preciso “o antilusitanismo na primeira república”. A obra trata disso.
O livro é dividido em duas partes. A primeira parte é intitulada “Explorar” e a segunda “Trabalhar”. A primeira parte baseada na dissertação de mestrado da autora, defendida em 1987 na UFF, sob orientação de Robert Slenes. A segunda parte não foi escrita para a defesa por julgar que a dissertação ficaria muito longa, mas o tema foi abordado no livro Mata galegos: os portugueses e os conflitos de trabalho na República Velha (RIBEIRO, 2008).
O texto é prefaciado pela própria autora, o que traz um tom mais intimista e agregador. Por se tratar da publicação da dissertação de mestrado, o prefácio é recheado de reflexões sobre os interesses de pesquisa e sobre o ofício do historiador. A autora descreve sua busca pelo objeto, os dramas encontrados ao longo da pesquisa, a relação com os professores, o dia a dia da pesquisa, a relação do presente com a história e uma série de questões interessantes de se pensar sobre o cotidiano e o processo de formação do historiador.
Muito influenciada por Robert Slenes (como a própria autora deixa claro no prefácio), o livro busca a perspectiva da história dos de baixo. As influências teóricas, além de Robert Slenes, são Edward P. Thompson, Roger Chartier e Clifford Geertz.
Basicamente as fontes principais que estruturam a discussão são os processos-crime, obras literárias, crônicas e publicações de revistas e jornais. Outras fontes aparecem ao longo do texto, como decretos, discussões parlamentares, dados de censo e relatórios do IBGE.
A abordagem presente no livro busca discutir o antilusitanismo na Primeira República e, para isso, a autora optou por analisar dois momentos distintos: a década de 1890 e a década de 1920. A justificativa sobre a importância do trabalho é estruturada através do diálogo com dados do recenseamento que apontam o crescimento exponencial de imigrantes portugueses a partir de 1890.
Analisando a cidade do Rio de Janeiro no período pós-abolição o texto costura a problemática da transição do sistema monárquico para o regime republicano, assim como a transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado. A autora evoca as discussões sobre as “classes perigosas” ao discutir as dificuldades dos negros e dos brancos nacionais em adentrar ao mercado de trabalho formal nesse período em que pairava sobre os brasileiros o fantasma dos vícios e o peso de uma sociedade racializada.
Por outro lado, os imigrantes europeus eram vistos com bons olhos. Os portugueses, apesar da origem europeia, não eram tão bem quistos como os imigrantes de outros países, mas recebiam diversos elogios dos seus patrões por trabalharem duro de sol a sol. O trabalho era o ideal que se buscava disseminar.
A autora destaca que duas frentes combatiam os portugueses no Rio de Janeiro: 1) os jacobinos, que temiam uma suposta organização de um movimento pró monarquia por parte dos portugueses, viam Portugal e os portugueses como símbolos do atraso colonial, não queriam viver a República à sombra do passado monárquico e organizavam o campo político. 2) os trabalhadores brasileiros, que acusavam os portugueses de se submeterem à árduas rotinas de trabalho em troca de pouca remuneração, afetando diretamente a relação de emprego e concorrência na cidade. Frequentemente os insultos de “burro de carga” e “galego” eram direcionados aos lusitanos.
Outra denúncia que pesava contra os portugueses que trabalhavam no centro da cidade é a de serem exploradores. Numa época marcada por carestias e problemas com a moradia, a relação entre comerciantes e consumidores era uma questão de sobrevivência. Os comerciantes portugueses eram constantemente acusados de “passarem a perna” nos clientes, desde vender carne velha por nova até colocar o dedo na balança para aumentar o peso e, assim, cobrar mais caro pelo produto.
A preocupação com relação às estalagens e cortiços também se faz presente. Com as posturas municipais e a lei de repressão à ociosidade, as pessoas precisavam de um local para residir e, mais uma vez, os portugueses eram acusados de aumentar o preço para lucrar acima do considerado justo.
A autora trabalha com diversos processos-crime e publicações presentes nos jornais onde a violência era justificada pela maneira exploratória com que os portugueses trabalhavam. Num caso citado ao longo do livro, além de justificar a morte de português, o jornal incita a prática.
A exploração também estava presente nos sistemas de empréstimo e agiotagem que, muitas vezes, eram encabeçados por portugueses. O sistema de vendas “fiado” era fundamental para a sobrevivência dos habitantes pobres da cidade do Rio de Janeiro. Segundo a autora, negar uma compra fiado podia ser entendido como um crime contra a vida do consumidor que, não tendo como adquirir o produto à vista, se via preso nas relações de crédito, sem os quais não poderia se alimentar.
Cruzando as denúncias dos jornais com processos-crime, a autora mapeia os delitos cometidos por brasileiros contra os lusitanos e vice-e-versa. Nas confusões era comum o aparecimento de dois grupos, um de portugueses e outro de brasileiros, cada qual defendendo seus pares nacionais. As ofensas dirigidas para os brasileiros eram os xingamentos de “ladrões”, “preguiçosos”, “vagabundos tratantes”, “cabrito”, “crioulo”. Das ofensas dirigidas aos portugueses, a mais comum era chamar o português de “galego” (ser chamado de galego já era uma ofensa em Portugal). Grande parte das justificativas sobre os motivos das confusões se baseava no argumento de defesa vida, defesa da honra ou manutenção do costume (como o costume de comprar fiado).
Por outro lado, a autora também discute as perspectivas portuguesas sobre o mundo do trabalho. Levanta a tese de que os portugueses se submetiam a qualquer tipo de trabalho de maneira quase gratuita, pois não viam outra possibilidade. Precisavam fazer dar certo a qualquer custo, quase não havia escolha, ao contrário dos brasileiros que, por já estarem residindo no país e com relações de sociabilidade estabelecidas, tinham margem para negociar o preço dos serviços e dos salários. A autora faz a ressalva de que nem todo imigrante europeu era trabalhador assim como nem todo brasileiro era malandro, deixando claro que a análise dela, apesar de generalista, reconhece a complexidade das relações.
Também é discutido as associações de portugueses e a luta por direitos. Em certa passagem, a autora cita um depoimento em que um português conta sobre o drama da cidadania e da perda da identidade. Diz ainda que aqui, no Brasil, ele é um galego, e se voltasse para Portugal ele seria taxado de brasileiro (RIBEIRO, 2017, p. 154-155). Essa discussão lembrou-me do texto de Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas (FANON, 2008). Guardadas as devidas proporções em termos raciais, históricos e culturais, ambos os trabalhos introduzem a discussão acerca da identidade. No caso de Fanon é discutida a questão dos moradores das Antilhas, que se consideravam franceses até chegar à França e perceberem que o reconhecimento não acontecia como imaginavam. Quando retornavam às Antilhas já não eram reconhecidos pelos moradores dali como cidadãos culturalmente plenos. São dramas que assombram os países colonizados.
A ideia central do livro é compreender como o antilusitanismo esteve presente na Primeira República. Como se manifestava nos jornais e como se manifestava nas relações travadas entre brasileiros e lusitanos. Boa parte das questões analisadas são norteadas por publicações jornalísticas, porém, a maneira como a autora faz uso dos jornais me parece um pouco deslocada. Os recortes são feitos sem levar em conta o jornal como um todo, não se tem margem para compreender o teor das demais colunas desses jornais antilusitanos, como se localizavam no espectro político da imprensa brasileira. Senti falta de uma discussão mais enfática sobre a tipologia das fontes, bem como sobre a circulação dos jornais, os editoriais e as vinculações políticas. Apesar da autora trabalhar ao longo do livro com a ideia do jacobinismo antilusitano, não foi o suficiente para compreender a complexa relação travada nos meandros da política e da sociedade carioca como um todo.
Pouco ou nenhum espaço foi dedicado as mulheres portuguesas. Embora não seja o foco do trabalho, penso que a argumentação se beneficiaria muito com uma abordagem acerca do casamento entre portugueses e brasileiros no contexto da Primeira República.
Talvez pelo fato de o livro nascer de uma dissertação de mestrado, por vezes as argumentações se repetem e os parágrafos se tornam muito parecidos. No geral, o texto contempla a ideia proposta pela autora, mas a repetição torna a leitura pouco objetiva e cansativa. Por ter optado por trabalhar com dois períodos da chamada Primeira República, as seções e argumentações às vezes escapam da linha do texto, as conexões não estão bem definidas e amarradas. Ao trabalhar com processos produzidos em contextos diferentes, às vezes separados por mais de 20 anos de história, a autora não destaca possíveis modificações e alterações nas relações cotidianas e costumeiras.
Outra questão referente à seleção das fontes é que, ao selecionar somente processos-crime em que uma das partes era portuguesa, é certo que o resultado será violento já que um processo-crime é um fruto de um conflito violento. Para uma discussão mais aprofundada acerca do antilusitanismo poderia ser feita uma análise dos processos parecidos entre brasileiros x brasileiros, portugueses x italianos e portugueses x portugueses (o que a autora até demonstra, muito sutilmente ao longo do texto).
Recentemente Karl Monsma publicou um livro intitulado A reprodução do racismo: fazendeiros, negros e imigrantes no oeste paulista, 1880-1914 (MONSMA, 2016), onde analisa os recursos retóricos utilizados e aceitos no aparato jurídico, que se utilizava de estereótipos racistas para abrandar a pena para crimes cometidos contra negros. Será que o aparato jurídico também estava aparelhado para prejudicar os portugueses? O antilusitanismo se limitava aos xingamentos e as ofensas dirigidas pelos nacionais? A própria autora cita ao longo do texto um processo em que um português agrediu outro por ter sido chamado de galego. Será que ele estava sendo antilusitano ou usando de um arsenal ofensivo para agredir moralmente seu opositor?
Apesar dos problemas já citados, o texto alcança o objetivo de discutir a relação entre os brasileiros pobres e os portugueses nos problemas cotidianos do início do regime republicano. Recomendo o texto a quem discute questões sobre a imigração no Brasil e pode ser um bom gancho para discussões sobre decolinialidade, já que através dos conflitos cotidianos conseguimos acessar um universo específico brasileiro onde estereótipos se tornam armas que tensionam as relações sociais. Também indico o prefácio para os jovens pesquisadores que se deparam com um novo universo dentro da pesquisa histórica. É muito precioso ler sobre a experiência inicial de pesquisa de uma historiadora que tem uma grandiosa carreira na historiografia brasileira.
É importante ressaltar que muitas das questões levantadas ao longo desse texto podem ter sido discutidas em outros trabalhos da autora, que conta com uma grande variedade de trabalhos publicados após a defesa de sua dissertação.
Referências
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
MONSMA, Karl. A reprodução do racismo: fazendeiros, negros, e imigrantes no oeste paulista, 1880-1914. São Carlos: EdUFSCar, 2016.
RIBEIRO, Gladys Sabina. O Rio de Janeiro dos fados, minhotos e alfacinhas: o antilusitanismo na primeira república. Niterói: Eduff, 2017.
RIBEIRO, Gladys Sabina. Mata galegos: os portugueses e os conflitos de trabalho na República Velha. São Paulo: Brasiliense, 1990.
Resenhista
Hemerson dos Santos Junior – Mestrando em História Social (PPGH – UFBA). O autor conta com incentivo da CAPES (bolsa de mestrado). E-mail: hemerson.sjunior@gmail.com
Referências desta Resenha
RIBEIRO, Gladys Sabina. O Rio de Janeiro dos fados, minhotos e alfacinhas: o antilusitanismo na Primeira República. Niterói: EDUFF, 2017. Resenha de: SANTOS JUNIOR, Hemerson dos. Antilusitanismo na Primeira República. Veredas da História, v. 13, n. 1, p. 183-189, jul. 2020. Acessar publicação original [DR]