O que resta de Auschwitz: o arquivo e o testemunho (Homo Sacer III) – AGAMBEN (RTA)
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e o testemunho (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, 175 p. Resenha de: SOUZA, Fábio Francisco Feltrin de. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 247 – 250, jan./jun. 2010.
O controverso pensamento de Giorgio Agamben tornou-se referência obrigatória para qualquer pesquisador que se depare com os dispositivos construtores de subjetividades. Seus escritos, consagrados em muitas universidades européias e norte-americanas, vêm ganhando espaço nos círculos de debates brasileiros, principalmente no que diz respeito à teoria política e literária. Na esteira desse pensamento político e dando continuidade ao projeto Homo Sacer1, chegou às livrarias brasileiras O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha.
De pronto, o título já traz implicações que serão aprofundadas ao longo da obra. Agamben desenvolve sua noção de “resto” a partir do que chamou de “contração do tempo”. Noção esta recolhida, de maneira bastante livre, da Epístola aos Coríntios de São Paulo e numa reapropriação do conceito tempo-de-agora, de Walter Benjamim.2 Com isso, o resto não pode ser o que sobra ou o que permanece como um dever de memória. Ele é um hiato, uma lacuna que se instaura na língua do testemunho em oposição às classificações do arquivo, pois aquilo que não é enunciado, que não é passível de ser arquivado, é a própria língua pela qual a testemunha manifesta sua incapacidade de falar. Esta perspectiva destrói os contornos delineados do dizer e institui a verdade da fala. Esta verdade rompe com a linearidade infinita Mestre em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (2005). Atualmente é doutorando na mesma Universidade. E-mail: fabio_feltrin@hotmail.com 1 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: O poder soberano e vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1995.
2 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.
Com isso, o resto não pode ser o que sobra ou o que permanece como um dever de memória. Ele é um hiato, uma lacuna que se instaura na língua do testemunho em oResenha AGAMBEN, Giorgio.O que resta de Auschwitz:o arquivo eo testemunho(Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, 175 p.Fábio Francisco Feltrinde Souza do chronoshistoricistae institui a plenitude do tempo-de-agora como kairos, discutido porAgamben no livro a Infância e a História(AGAMBEN, 1999, 128).3 Quando perguntada, nos anos de 1960, pela televisão alemã o que restava da Europapré-hitlerista, Hannah Arendt respondeu:”A língua materna” (AGAMBEN, 2008, p. 159). Para compreender este resto, Agamben se vale das tensões que fazema língua viva, seuspolos de inovação e transformação, mas centrados no falante destituído da capacidade defalar. Por isso, o autor dedica o segundo capítulo ao mulçumano, pois ele seriaa refutaçãoradical de qualquer possível refutação; a destruição desses últimos baluartes metafísicos, osquais continuam de pé não por não poderem serdiretamente provados, senão por unicamentenegarem sua negação. O mulçumano era o morto-vivo, o não-homem, o sem história doscampos de concentração. Não tinha rosto, nem força. Perambulava pelo campo sem vida, magro ao extremo, de ombros curvos.
Agamben lembra que a situação-limite, ou situação-extrema, foi invocada em nosso tempo tanto por filósofos quanto por filólogos. Afunção que desempenhaé semelhante à quejuristas chamam de estado de exceção. Por isso, o filósofo italiano vai a Kierkegaard,paraargumentar que na situação-limite se pode julgar e decidir sobrea situação normal. Para ofilósofo dinamarquês, “a exceção explica o geral e a si mesma. Quando se quer estudarcorretamente o geral, importa ocupar-se de umaexceção real” (AGAMBEN, 2008, p. 55). Apartir desse ponto, o autor argumenta queo espaço político contemporâneo não é maisacidade idealizada, a pólis erguida pela racionalidade da lei e da norma, mas o campo deconcentração, cuja marca é a ausência de lei, a anomia, onde abiose transforma emzoé. Nolugar de cidadão, ohomo sacer. Os habitantes foram despojados de todo estatuto político ereduzidos a vida nua. O estado de exceção é, pois, uma norma. Nele, o mulçumano surgecomo testemunha impossível, pois é privado da língua.O cerne do testemunho linguístico noCampo Grande–Auschwitz–privilegia a exceção à norma, arriscando-se na deriva do fechamento da passagem entre o real e o possível. Este paradoxo só seria resolvido em umtempo que não é nem o da História, nem o daeternidade, mas o do Messias; daquilo quesobreviverá.
O conceito de sobrevivente é fundamental no pensamento político de Agamben. OHomo Sacersobrevive àbiopolítica, àzoé. Dessa forma, podemos dizer que os sobreviventesao extermínio sistemático implementado pelos nazistas são filhos do acaso, pois o campo, situação absoluta, acaba com toda possibilidade de uma temporalidadeoriginária, de uma fundação temporal. No Lager, o irremissível do passado torna-se iminência absoluta. O antes e o depois são destruídos numa paródia sinistra que anuncia a fatalidade sem deuses ou heróis. Não há destino a ser enfrentado; não há proximidade. Há tão somente a vida nua.
Os sobreviventes do Holocausto também se referiram à impossibilidade de dar testemunho verdadeiro acerca experiência vivida nos campos de concentração. O escritor italiano Primo Levi, prisioneiro em Auschwitz e que Agamben recupera em sua obra, diz que ‘as verdadeiras testemunhas’ são aqueles que viveram a experiência do extermínio até ao fim; as que ‘viram a gorgona’ e não sobreviveram; aqueles que, nas palavras do italiano citado, já estavam mortos antes morrer e já haviam perdido toda capacidade de se comunicar. Aos sobreviventes – os que não sofreram a experiência radical do Holocausto, os que conseguiram não ir ‘até ao fim’ – compete, diz Primo Levi, falar por proximidade. Dar testemunho é assim falar de uma experiência radical, que o sobrevivente não teve. É uma impossibilidade de testemunhar, por assim dizer. Há, pois, um duplo paradoxo na condição da testemunha: o paradoxo que resulta da impossibilidade de expressar por palavras uma situação limite, e o paradoxo da condição do sobrevivente, que dá testemunho, por aproximação, da experiência radical daqueles que não sobreviveram ao Holocausto e pela qual ele próprio não passou. O esclarecimento destes aparentes paradoxos é indispensável para compreender o sentido da impossibilidade de testemunhar referida pelos sobreviventes do Holocausto, usados pelos negacionistas com o objetivo de negarem o extermínio nazi. O que Agamben procura fazer é compreender a estrutura do testemunho. O testemunho é relegado ao plano da linguagem não como o que resulta da impossibilidade de dizer, mas como um sistema de relação entre o dizível e o indizível; entre o que se pode dizer e aquilo que de fato se diz. É o que fica entre as potencialidades da linguagem e a sua possibilidade efetiva. Dar testemunho é colocar-se nesta cisão entre o que é possível dizer e o que se diz. O testemunho é, assim, uma efetivação possível, uma possibilidade de dizer que carrega a potência do não-dizível.
É neste limite que o testemunho dos sobreviventes se afirma hoje como o único relato possível e verdadeiro de uma barbárie inimaginável. Os testemunhos dos sobreviventes do Holocausto, fixados em livros e diversos documentos, não provam a impossibilidade de falar do horror, mas a possibilidade de falar do impossível – Auschwitz. Só os sobreviventes do Holocausto podiam fixar, nos seus próprios termos, a verdade do que viram. Nem poderia ser de outra forma, porque a experiência sem termo de comparação pela qual passaram fez deles testemunhas únicas do inimaginável. Há um episódio contado por Levi, no livro A Trégua, que ilustra de forma dramática a necessidade de dar testemunho em nome dos impossibiltados de o dar. Ele conta a história do pequeno Hurbinek, uma criança muito provavelmente nascida em Auschwitz, paralítica e incapaz de falar, e cujo verdadeiro nome ninguém conhecia. O nome Hurbinek fora-lhe atribuído pelos prisioneiros, que tomaram conta dele nos últimos dias de vida. A falta de linguagem de Hurbinek ‘fazia-se sentir no seu olhar’, diz Levi. Era um olhar ‘selvagem e humano, ao mesmo tempo; aliás, maduro e julgador, que ninguém entre nós sabia confrontar, tamanha era a sua carga de força e de pena’, escreve o autor. Nos últimos dias de vida, já em agonia, os prisioneiros ouviram Hurbinek pronunciar uma palavra, ou aquilo que parecia ser o som de uma palavra, algo como ‘mass-klo’, ou ‘mistisklo’, que ninguém, no entanto, soube dizer o que significava. Hurbinek, o sem-vida, morreu dias depois da libertação de Auschwitz. Primo Levi despede-se dele assim:
Hurbinek, que tinha três anos e que talvez tenha nascido em Auschwitz e nunca tinha visto uma árvore; Hurbinek, que tinha combatido como um homem até ao último suspiro, para conquistar a entrada no mundo dos homens, de onde uma força bestial o tinha banido; Hurbinek, o sem-nome, cujo minúsculo braço tinha gravado a tatuagem de Auschwitz; Hurbinek morreu nos primeiros dias de Março de 1945 livre, mas não rendido. Nada ficou dele: ele testemunha através destas minhas palavras (AGAMBEN, 2008, p. 47).
Primo Levi não é propriamente um sobrevivente, uma testemunha autêntica. Ele, como outros, por habilidade ou sorte, não tocaram o fundo. Quem o fez, quem fitou a “górgona” não voltou para contar, ou voltou mudo. Muito próximo do que Benjamin chamou de “experiência do choque”, da mudez, da impossibilidade de falar após as trincheiras (BENJAMIN, 1994, p. 115.). Assim, paradoxalmente, não há nem verdadeira testemunha, nem testemunho verdadeiro, pois os verdadeiros (e os mulçumanos, aqueles mortos posteriormente, os sem-humanidade) foram mortos. O não-essencial é o dizível, o narrado, aquilo que está no arquivo. Por sua vez, o essencial torna-se indizível. O resto de Auschwitz é a passagem do dito não-essencial ao não-dito fundamental. Esta falta, esta lacuna, este deslocamento, esta não-consciência desmancha qualquer plenitude discursiva e ameaça o logos de desmoronamento. É a não-língua de Hurbinek, que não encontra lugar nos arquivos e bibliotecas do enunciado. Aquilo que deveria ser falado não é arquivado nos salões da memória. Ele não passou da in-fantos para o não-dizer. Ela é a própria potência do não. Florianópolis, v. 2, n. 1, p.247–250, jan./jun. 2010 posição às classificações do arquivo, pois aquilo que não é enunciado, que não é passível de ser arquivado, é a própria língua pela qual a testemunha manifesta sua incapacidade de falar. Esta perspectiva destrói os contornos delineados do dizer e institui a verdade da fala. Esta verdade rompe com a linearidade infinita 3
AGAMBEN, Giorgio.Infância e História:a destruição da experiência e a origem da História. Belo Horizonte:Ed. UFMG, 1999. Florianópolis, v. 2, n. 2, p. 240 – 243, jul./dez. 2010
1 BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Cia. Das Letras, 1979; MEIHY, José C.S.B. A colônia brasilianista: história oral de vida acadêmica. São Paulo: Nova Stella, 1990.
Fábio Francisco Feltrin de Souza – Mestre em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (2005). Atualmente é doutorando na mesma Universidade. E-mail: fabio_feltrin@hotmail.com.