Em algum momento, Fernando Pessoa afirmou que se um dia escrevessem sua biografia seria algo simples, com somente duas datas, de nascimento e de morte, pois todo o resto era algo só seu. Os biógrafos e os leitores de biografias discordam deste monopólio do indivíduo sobre sua trajetória e enquanto os primeiros exercitam seu ofício na construção de narrativas diversas sobre seus personagens, os segundos satisfazem suas curiosidades através da leitura de obras com diversificado conteúdo e em distintos formatos.
Personagens, biógrafos e biografias têm sido objetos de reflexão em diversos campos das ciências humanas, de modo que a História, ao mesmo tempo em que busca o diálogo com as ciências sociais, a teoria literária, a análise de discurso, a psicologia, entre outras áreas e especialidades, também tem se dedicado de forma ampla, constante e vigorosa sobre os temas derivados de tais objetos.
É dentro de uma perspectiva historiográfica que Alexandre Sá Avelar e Benito Bisso Schmidt organizaram a coletânea O que pode a biografia para tratar dos limites da biografia, essa “escritura sobre a vida”, que ao longo do livro é abordada através de algumas pesquisas, identificando possibilidades, metodologias e problemáticas do “espaço biográfico”.
A obra, que dá continuidade aos assuntos debatidos em coletânea anterior organizada por Avelar e Schmidt, Grafia da Vida (2013), possui 242 páginas com 12 capítulos, divididos em duas linhas: a primeira é referente às questões teórico-metodológicas e a segunda, trata de experiências de pesquisa, com textos de Benito Schmidt; Deivy Ferreira Carneiro; Maria da Glória Oliveira; Mary Del Priore; Rose Silveira; Alexandre de Sá Avelar; Francisco Martinho; James N. Green; Jorge Ferreira; Laura de Mello Souza; Margareth Rago e por fim, Temístocles Cezar.
Logo no início, são elucidados, de maneira didática, exemplos que retratam a problemática da abordagem da biografia pela história, o que acaba sendo o tema central da obra. Desse modo, essa questão inicial proposta pela obra, é respondida ou problematizada a cada capítulo à sua maneira e com seu recorte específico, seja de estudos de gênero, sexualidade, grupo social, etc.
Tal introdução também apresenta, a partir da perspectiva dos dois organizadores, a gênese do interesse da biografia como objeto de estudo e em sua amplitude, enquanto narrativa que trata de diversos indivíduos e grupos sociais, o que traduzem como a “democratização da biografia”, visão essa refletida na pluralidade de assuntos do livro. Segundo os organizadores, a biografia já não poderia ser classificada como fez Philippe Lejeune, na década de 1980, como um dos gêneros mais escritos e menos estudados, inclusive relacionando, a partir desse tipo de texto, os vínculos entre história e memória, uma vez que as memórias individuais e traumáticas são mais atraentes para o historiador do que as coletivas, e é a partir daí que os capítulos seguintes se justificam.
No primeiro capítulo, Benito Schmidt apresenta as polêmicas envolvidas em um julgamento do Supremo Tribunal Federal a respeito da necessidade de autorização prévia do personagem ou seus descendentes para publicação de biografias (o que foi entendido como desnecessário pelo tribunal), expondo que isso se caracteriza como uma crise do regime presentista, segundo a perspectiva de François Hartog (1997), e permitiria a reflexão sobre os vínculos entre história, memória e biografia.
Em Biografia, biografados: uma janela para a história, de Mary Del Priore, aborda-se um panorama bastante didático sobre a maneira como as biografias foram percebidas desde o Renascimento até a contemporaneidade, frisando as mudanças da historiografia em sua avaliação sobre o gênero. Nesse sentido, a autora ressalta o papel fundamental da Escola dos Annales para tal demanda e situa a biografia como uma das maneiras de responder questões da História Social e Cultural.
É inegável que as biografias mais vendidas são escritas por jornalistas, que ocupam uma posição hegemônica neste mercado, e o capítulo de Rose Silveira trata a questão de dois sucessos editoriais que não foram escritos por historiadores, A vida imortal de Henrietta Lacks (2011), de Rebecca Skloot, e Marighella (2012), de Mário Magalhães. Assim, Silveira aborda as formas de linguagem, metodologia e contribuições dos relatos chamados de “biografia jornalística” enquanto uma “modalidade não acadêmica”, mas que encontra ampla circulação.
Por sua vez, o historiador Jorge Ferreira rememora como foram realizadas suas pesquisas até a escrita de João Goulart – uma biografia (2011), abrangendo o início do interesse pelo campo biográfico, enquanto herdeiro de uma cultura historiográfica que rejeitava ou tinha grande desconfiança em relação à escrita biográfica, até que na década de 1980, com a História Cultural ou Social da Cultura no Brasil, o cenário é modificado. Em 1987, tanto O queijo e os vermes (publicado originalmente em 1976, na Itália), de Carlo Ginzburg, quanto O retorno de Martin Guerre (cuja primeira edição foi em 1983, nos Estados Unidos), de Natalie Zemon Davis, são publicados no Brasil e começam a circular mais amplamente no país, colocando no campo acadêmico local as abordagens inspiradas na micro-história e na biografia.
Em vista disso, os capítulos de Deivy Ferreira de Carvalho e de Maria da Glória de Oliveira discutem essas duas questões: a micro-história e a biografia na história. Carvalho aborda quatro nomes dessa matriz historiográfica: Maurizio Gribaudi, Sabina Loriga, Giovanni Levi e Simona Cerutti que, inspirados no antropólogo Fredrik Barth, questionam o contexto social e afirmam a importância da narrativa para a pesquisa histórica. Oliveira, por sua vez, apresenta uma discussão sobre a “ilusão biográfica” defendida por Pierre Bourdieu e referencia Sabina Loriga, autora de O pequeno X: Da biografia à história (edição francesa de 2010 e tradução brasileira de 2011) e Paul Ricoeur, de Tempo e Narrativa, edição francesa original de 1983 e nacional de 1994) para tratar do retorno da biografia na historiografia atual, da necessária “dissipação de suspeitas em relação à dimensão individual da história” no trabalho de contextualização histórica e das relações que envolvem história, narrativa e ficcionalidade. Sem dúvida o livro de Sabina Loriga é uma referência obrigatória para os interessados nos estudos biográficos e também é mencionado por Temístocles Cezar no capítulo em que disserta sobre o conto Bartebly, o Escrivão, publicado originalmente em 1853, por Herman Melville, e utilizado como base para reflexão sobre a ação e a inação de um indivíduo na história, além da função da biografia, sendo que , de forma irônica, uma fala que caracterizava o personagem – “I would not prefer to”, ou seja, “prefiro não fazê-lo” -, poderia se referir à postura ainda recente da historiografia sobre o estudo das escritas da vida.
Em outro viés, os capítulos escritos por Francisco Martinho e Laura de Mello e Souza narram o interesse pelo objeto da pesquisa e como foi o desenvolvimento da mesma (incluindo dificuldades e aspectos inconclusivos com os quais se depararam). O primeiro, cita a “travessia” de sua pesquisa, um projeto de escrita da biografia do intelectual, professor, político, historiador e português Marcello Caetano. Já Souza apresenta seu envolvimento com a obra do artista e escritor Vitório Alfieri, respectivamente, enfatizando a ideia de trajetória dos personagens.
Alexandre Avelar, em seu capítulo, retoma a questão presente na apresentação do livro, de que relevantes obras de teoria biográfica mostram um campo atrelado a problemáticas, uma vez que, segundo ele, a biografia pode “desestabilizar as oposições entre o ser e o mundo, literatura e história, fato e ficção, sujeito e objeto”, e utiliza sua experiência no estudo em sua tese de doutorado que corresponde a uma investigação da trajetória do general Edmundo Macedo Soares.
De outra maneira, dois capítulos merecem atenção especial, pois conferem aos relatos biográficos uma perspectiva que enfoca resistência, gênero e sexualidade, são esses Herbert Daniel: revolucionário e gay, ou É possível captar a essência de uma vida tão extraordinária? e Autobiografia, gênero e escrita de si: nos bastidores da pesquisa. Em vista da necessidade de uma interseccionalidade, o capítulo escrito por James N. Green retrata a pesquisa feita acerca de Herbert Daniel, um dos militantes da esquerda, contra a Ditadura Civil-Militar no Brasil, que foi julgado após ter violado a Lei de Segurança Nacional e em vista da condenação a várias prisões teve de ser exilado.
Nesse sentido, Green afirma que Daniel escreve uma carta sobre não ter sido absolvido pela Lei da Anistia e ter de continuar exilado, em vista de sua orientação sexual. No documento em questão, Daniel apela para a volta ao Brasil, carta que inclusive foi publicada no periódico alternativo Lampião da Esquina, como forma de renúncia do tratamento homofóbico dentro da própria esquerda e leva o leitor a compreender as dificuldades e as contradições de um tema, em relação a esse período histórico, ainda pouco explorado como objeto de pesquisa na historiografia.
O relato de Green mostra uma clara autoidentificação ao narrar a vida de Herbert Daniel, pois ambos eram militantes e ativistas do movimento gay, de forma que, ao entrar em contato com a pesquisa, ele pôde responder seus próprios anseios e inquietações, ao mesmo tempo em que reconhece que a partir do trabalho foi possível superar algumas lacunas sobre Daniel, mas ainda faltam respostas
Finalmente, o capítulo de Margareth Rago, nomeado Autobiografia, gênero e escrita de si: nos bastidores da pesquisa, que inspirado na crítica feminista norte-americana Elaine Showalter (2002), buscou a escrita de um trabalho que envolvesse mulheres “lutadoras e subversivas”, que de alguma forma “desafiaram os códigos da normatividade moderna, o poder do Estado, o machismo e a misoginia da cultura patriarcal, visando aumentar o repertório que constitui uma herança cultural feminista e libertária”.
A autora explica que sua pesquisa enfocou memórias e escritas autobiográficas de mulheres militantes, com o objetivo de “conhecer essas vidas intensas, éticas, ousadas, que valiam a pena serem pesquisadas, registradas e divulgadas”. Foram elencadas assim, a anarquista italiana Luce Fabbri, o grupo de mulheres que atuou durante a Revolução Espanhola (1936-1939), as chamas Mujeres Libres e por fim, um grupo de feministas e também militantes contrárias a Ditadura Militar no Brasil.
Sob esse ângulo, Rago se questionou sobre como estudar esses relatos, uma vez que o silêncio dessas mulheres reflete na escassez das publicações. Ademais, retoma a necessidade do estudo desses relatos escritos por mulheres, afirmando que além do modo feminino de lembrar, ser subversivo e ter uma temporalidade própria, o processo de memorização dessas mulheres marcadas por medos e traumas não perceptíveis sob o olhar masculino, é também uma maneira de reelaborar uma experiência, ou seja, uma “criação ficcionalizada de invenção”, dialogando aqui também com a ligação entre história e memória de Paul Ricoeur.
Logo, os trabalhos de James Green e de Margareth Rago são enquadrados na questão da representatividade proposta por Del Priore, buscando dar visibilidade a grupos excluídos e assim, usando-se a expressão de Walter Benjamin, com o objetivo de “narrar a história pelo avesso”, além de apresentarem a questão da forma com a qual a narrativa pode estar imbricada com a história política.
O que pode a biografia abrange principais debates nas pesquisas acerca do campo biográfico que alimentam a dualidade entre história e ficção, além de tratar de pesquisas que contribuem para o diálogo da historiografia com questões de sexualidade, gênero e também resistência. Como a coletânea anterior organizada por Avelar e Schmidt este livro se insere como referência necessária e obrigatória ao leitor interessado no “espaço biográfico”.
“Toda a arte é autobiográfica, a pérola é a autobiografia da ostra”.
Federico Fellini
Referências
ALTO, Rômulo Monte. Verdade e ficção nos “Diários” de José María Arguedas. Caligrama: Revista de Estudos Românicos, v. 5, 2000, p. 175-188.
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: mapa do território. In: ______. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2010, p. 35-82.
BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. Editora Vozes Limitada, 2012.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. De Rousseau à Internet. Organização de Jovita Maria G. Noronha. Trad. Jovita Maria G. Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
SMITH, Sidonie; WATSON, Julia. “Introduction: Situating subjectivity in women’s autobiographical practices”. In: _____. Women, autobiography, theory: A reader, 1998, p. 3-52.
Resenhistas
Ingrid Mancilha Cesar – Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras – Universidade Estadual Paulista (UNESP)/Assis, Brasil.
João Muniz Junior – Docente da Universidade Estadual Paulista (UNESP)/Assis, Brasil.
Referências desta Resenha
AVELAR, Alexandre de Sá; SCHMIDT, Benito Bisso (Orgs.). O que pode a biografia. São Paulo: Letra e Voz, 2018. Resenha de: CESAR, Ingrid Mancilha; MUNIZ JUNIOR, João. Narrativas de resistência: um diálogo entre estudos de gênero e biografias. Escritas do Tempo. [Marabá], v. 2, n. 4, p. 344-348, mar./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]
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