O que é história global? | Sebastian Conrad
O que é a história Global? É um ensaio histórico escrito por Sebastian Conrad, cujo título original é What is Global History? traduzido para a língua portuguesa por Teresa Furtado e Bernardo Cruz, publicado pelas edições 70, em Lisboa, em 2019, com 310 páginas. Os onze capítulos estão entre a introdução e o posfácio, “o lento fazer da história global”, escrito por Miguel Bandeira Jerónimo.
Para se entender a concepção do global é imperativo perceber como é que as noções de mundo mudaram ao longo do tempo, pois a globalização alterou a forma como escrevemos a história. Deixou de ser possível estudar o Estadonação de forma isolada e de apreender a história mundial a partir do Ocidente. Mas o que é a história global? Sebastian Conrad explica a razões do global, que é um estudo que se revelou em uma das áreas inovadoras e promissoras do conhecimento histórico.
Assim, o autor na Introdução afirma que o campo da história global é metodológico e tem crescido. Hoje em dia, os historiadores são mundializados na medida em que se verifica a expansão da disciplina. O fim da guerra fria e o 11 de setembro de 2001 são dois acontecimentos que transformaram o mundo, permitiram os historiadores e os seus leitores vivenciarem algumas experiências desconhecidas, tendo-se generalizado a tendência de encontrar na globalização a chave das antinomias do passado. No tempo dos Impérios a difusão do conhecimento histórico moderno não era interpretado como um contributo para a modernização do pensamento histórico moderno, pois, a história que se fazia, era do Estado-nação, cujo modelo de narrativa contribuiu para a fragilização da história académica, determinante no aparecimento de novas abordagens críticas como a história das mentalidades dos Annales, as diversas formas da “micro-história” e da história “vinda de baixo”, ou seja, estudos subalternos, estudos feministas e de género, a “viragem linguística”, (Pág.49). Neste sentido, as narrativas macro-históricas desafiaram as premissas eurocêntricas, levando a que no final do século XX, a escrita histórica se tenha tornado marcadamente diversificada e intérprete do passado que passou a ser global.
O objetivo da história do passado era como é demonstrado no Capítulo II: Uma breve história do pensamento global consiste em descrever, com maior ou menor precisão e, de forma possível as sociedades sobre as quais nada se sabia, fazendo-se crónicas do passado. Mas as variantes da história global, enquanto história de tudo, de conexões, ou enquanto história que se baseia no conceito de integração, da genuína consciência global, que começou a ser construída na região da Eurásia no início das Idade Moderna e na época da hegemonia europeia no século XVIII, com o Iluminismo. Alguns historiadores como Heródoto, Políbio, Sima Qian, Rashid al-Din e Ibn Khaldun escreveram a história das suas cidades ou nações sem esquecer o “mundo” que os rodeava. A sua principal preocupação era a descrição das sociedades como entidade cultural única, cuja superioridade era para eles um dado adquirido. No entanto, na maioria das vezes, o estudo a e categorização moral de outros grupos permaneciam subordinados aos parâmetros da cultura do relator. Estes paradigmas caraterizaram grande parte da historiografia mundial, em que o mundo era perspetivado de harmonia com os códigos morais da própria sociedade. A história global passou a ser perspetivada como história total, com variantes como a história das conexões ou a história da integração global que o autor realça nos capítulos III e IV.
As abordagens concorrentes, os estudos comparativos, a história transacional, a teoria dos sistemas-mundo, os estudos pós-coloniais e o conceito de múltiplas modernidades são abordados no Capítulo III: Abordagens concorrentes, onde o autor refere que a sociologia histórica como a investigação de Max Weber sobre as origens do capitalismo moderno ou às análises de grande escala sobre o Estado, as revoluções e a mudança social, estudadas no apogeu da teoria das modernizações, têm sido propensas a abordagem comparativa, que levou os historiadores a formularem perguntas claras e a seguirem estratégias de investigação orientadas para a problematização. A teoria dos sistemas-mundo de Immanuel Walerstein foca-se nos processos sistémicos que convida os historiadores a perceberem o passado a partir de um contexto global substantivo e não apenas numa base desenvolvimentista, caraterizada pela divisão do trabalho e pela troca intensiva de bens de uma determinada região geográfica, “entre as fronteiras políticas internas dessa região” (Pág.65). Refere o autor, que a partir de 1980, os historiadores de estudos subalternos ou da “crítica vinda de baixo”, surgiram na India, cuja finalidade foi o de descrever as classes marginalizadas, que se desenvolveram com a emergência política de Indira Gandhi. Em 1978, Edward Said com a sua obra Orientalismo na forma de paradigma irá centrar-se na região Sul asiática. As múltiplas modernidades, teoria política surgida em 1990, retoma o conceito de civilização, cujas narrativas remontam ao final do século XIX. A construção de uma definição de história global é entendida por Sebastian Conrad não como um objeto de estudo, mas como perspetiva em abordagens de história transnacional, a teoria dos sistemas-mundo, estudos pós-coloniais e no conceito de múltiplas modernidades. Estas abordagens, como o autor insere no Capítulo IV: A história global: uma abordagem distinta, contribuem, cada uma, à sua maneira para o entendimento do passado, compreendido como história universal, que na atualidade é o nome dado a uma disciplina escolar que cobre a história do mundo inteiro, ou que observa comparativamente uma determinada região do globo, que empregavam a metodologia comparativa de diferentes sociedades ou civilizações, na procura vínculos e conexões, atravessada por divisões teóricas e ideológicas, da teoria da modernização ao marxismo, passando pela narrativa da civilização.
Entre as diversas teorias, e nacionalismos do Estado-nação encontravam-se postulados como forma de transição das sociedades agrárias para sociedades modernas. Neste sentido, os estudos de Benedict Anderson deu um contributo metodológico importante com a abordagem modular das nações. Deste modo, a história global explora a espacialidade como metodologia alternativa, pois é fundamentalmente relacional e autorreflexiva no que toca a questão do eurocentrismo, como o autor fundamenta no Capítulo V: História global e formas de integração, em que sublinha o facto da história global colocar como prioridade o conceito de integração, de transformações estruturadas a uma escala global. O enfoque dado nos contextos sistémicos corresponde a decisão heurística que distingue esta abordagem de outras, uma vez que a história global toma a integração estruturada como um contexto, no qual é o principal tópico de pesquisa. Por esse motivo, a história global tornou-se em um subgénero da historiografia do global, dando enfoque a procura de momentos decisivos da mudança.
Com o advento da globalização os historiadores começaram a questionar os parâmetros espaciais da sua disciplina, com a procura de conceções inovadoras e de novos quadros espaciais que permitissem romper com o pensamento compartimentado do Estado-nação. Uma das estratégias populares para superar o confinamento analítico dado pelo Estado-nação tem sido o de trabalhar em espaços mais extensos supranacionais como os oceanos, facilitador de trocas comerciais entre os povos, como se pode comprovar com na leitura do Capítulo VI: O espaço na história global, em que refere a navegação no Oceano Atlântico e Indico. Ao longo dos anos a investigação sobre o Oceano Atlântico revelar-se-ia ser extremamente fértil para a pesquisa em história transnacional. Outro aspeto importante que Sebastian Conrad refere é a utilização da “micro-história” do global que a maioria das pessoas associa a “macro-história”, que é muito mais enriquecedor. Este aspeto, é vincado como uma moda sobretudo americana que se tornou global. O autor exemplifica o caso da França, com a “mondialization” que é muito debatida na política e, cada vez mais, nos círculos universitários, (P.144-145).
Os historiadores do global também utilizam o “conceito de história profunda”, de Smail, análise que tem em linha de conta o passado humano, exemplificado por Sebastian Conrad no Capítulo VII: O tempo na história global, que explica a utilização da história nas variantes geológicas da história do planeta terra, tendo como exemplo a história profunda, ou a grande história que dedicam muito da sua atenção aos milénios ocupados pelas sociedades caçadoras e recolectoras, moldando os seres humanos.
O autor apresenta no Capítulo VIII: Posicionalidade e abordagens centradas, a ideia que um micro estudo a uma família, ou de uma cidade pequena, o que permite a concentração do objeto de estudo nos indivíduos, nos seus interesses e escolhas. Mas no debate do processo histórico, há a prevalência do que também é conhecido como o eurocentrismo e que apresenta duas correntes de pensamento distintas: a primeira, é a ideia criada de que a Europa foi a motora do progresso e do processo histórico no mundo. A segunda corrente, é o europeísmo conceptual, que está preocupado com as normas, aos conceitos e as narrativas que os historiadores utilizam para descrever o passado legível, no que se torna, como julgamos, em um debate de fundamentalismo cultural.
A história global tem uma perspetiva específica e distinta, na forma de criar, ou de fazer o mundo, na medida em que manifesta um esforço construtivista, que é próprio do seu objeto de estudo, formatado com a realidade desse passado, na procura de elos de ligação e de trocas. Enquanto abordagem metodológica tem particularidades na forma de criar o mundo, pois nem o “mundo “nem o “global” são categorias evidentes como afirma Sebastian Conrad no Capítulo IX: Criação de mundos e conceitos de história global, uma vez que a história global obedece a um esforço construtivista, pois ela cria e formata o seu próprio objeto de estudo, quando examina o documento, do qual resulta a procura de conexões e de elos de ligação e de trocas. Assim, a história global, enquanto perspetiva os processos de integração global, que estão interligados, constituem-se mutuamente, dando origem ao conceito filosófico de “criação de mundo”, pois às pessoas criam, à sua volta mundos que simplesmente não podem ser encontrados, mas que são gerados através da sua atividade e que lhes confere sentido. Alguns críticos da modernidade questionam o posicionamento político da história global, que se julga ligada a interesses, de poder, ou a hierarquia da produção do conhecimento, ou eventualmente ao serviço de ideologias poderosas e instrumento de denominação. A história global, em sentido elementar é inseparável de uma consciencialização do passado global e, por isso mesmo, de uma “criação do mundo”, com objetivos do presente, (P.224).
No Capítulo X: História global para quem? A política da história global, que o autor finaliza o presente estudo. A história global é um esforço construtivista e cosmopolita, que no essencial é um projeto inclusivo, tanto geográfica como normativamente, na medida em que fornece como metodologia uma perspetiva ampla do passado da humanidade, pois pode fornecer uma consciência reflexiva e problematizar as narrativas que as partes interessadas empregam para legitimar as suas agendas políticas para a anglobalização, (P.277). A institucionalização da história global avança lentamente e, até aos dias de hoje, permanece maioritariamente circunscrita ao mundo anglófono e algumas partes da Europa Ocidental e do Sudeste Asiático e mesmo nestas regiões com alcance limitado, (P.280).
No posfácio Miguel Bandeira Duarte realça a importância do estudo de Sebastian Conrad que coloca um conjunto de questões sobre a génese, o desenvolvimento e o lugar contemporâneo da história global, lançando o debate crítico sobre a sua natureza metodológica e conceptual. Outra ideia que é destacada é o relevo para as lógicas das conexões transnacionais e translocais. Neste contexto, segundo Miguel Bandeira Duarte afirma o estudo de Sebastian Conrad da ênfase emprestada a conexões transnacionais e translocais, a mesma que é dada a dinâmicas de integração global, a heterogeneidade de contribuições no interior da história global é reconhecida, (P.291). O facto de a história global recente ter nascido tanto do processo de descolonização global como da história subalterna constitui motivo para apaziguar críticas que lhe são dirigidas e que provavelmente continuarão.
É um excelente livro que contribui para o debate académico, sobretudo como elemento de consulta.
Resenhista
Fernando Correia – Doutorando em Estudos Globais na Universidade Aberta de Portugal. Lisboa – PORTUGAL. E-mail: fernandocorreialisboa@gmail.com orcid.org/0000-0002-2959-7184
Referências desta Resenha
CONRAD, Sebastian. O que é história global? Trad. Teresa Furtado e Bernardo Cruz. Lisboa: Edições 70, 2019. Resenha de: CORREIA, Fernando. Tempo e Argumento. Florianópolis, v. 13, n. 34, set./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]