O que é história global? | Sebastian Conrad

Sebastian Conrad, Professor – Doutor em História e que, desde 2010, ocupa a cadeira de História Moderna na Universidade Livre de Berlim, é autor da obra What is Global History? [O que é história global?], lançada em 2016 2. Em seu capítulo introdutório, Conrad expõe seus objetivos: compreender o aumento da popularidade que a linha da história global adquiriu tanto mundialmente quanto dentro da disciplina de História, assim como apresentar uma perspectiva atual de História em oposição ao modelo historiográfico de história universal do século XX, um modelo profundamente eurocêntrico.

Segundo o autor, os primeiros esboços de uma história global surgem após a II Guerra Mundial e o interesse pela mesma ganha fôlego já no final do século XX. As principais razões para isso se devem à tendência em encontrar na globalização o ponto de explicação do presente, assim como o de análise das origens históricas de um processo e da revolução comunicacional, um contexto que impactou os historiadores e a maneira como produzem História. Tal efeito se deu tanto a partir das insuficiências dos instrumentos usados pelos profissionais até aquele momento quanto por conta dos desafios lançados pela globalização das ciências sociais.

A história global é, ao mesmo tempo, um objeto de estudo e um procedimento metodológico. Seu propósito, de acordo com Conrad, é a mudança, o rompimento com uma ideia de História que se estabeleceu, seja no campo institucional, seja no campo do conhecimento, já que esta noção estava associada, em diversos países, à história nacional. A gênese das ciências humanas e de suas disciplinas, assim como da estruturação do conhecimento, eram eurocêntricas, ou seja, colocavam em primeiro plano o “nacionalismo metodológico”, no qual o Estado-nação era considerado a unidade de análise central e os progressos dos europeus eram a força motriz de uma história do mundo, o que acabava por obscurecer as experiências de outras sociedades. Por sua vez, com a perspectiva da história global, busca-se uma ruptura com essa abordagem e a História passa a ver vista de uma forma mais ampla e inclusiva, considerando sujeitos, grupos sociais, sociedades, artefatos, ideias, instituições etc. por meio de circulações e intercâmbios.

Ao contrário do que o nome sugere não se trata de uma História sobre tudo, isto é, sobre o planeta como um todo, mas sobre conexões, interações transfronteiriças, dimensões fluidas e flexíveis das transformações históricas dentro de um determinado recorte. É uma percepção que tenta romper com a lógica “centro versus periferia” – que se inscreve na concepção de História sustentada pelos Estados nacionais –, estabelecendo, de outro modo, relações em redes. Também não se trata de uma metodologia que possa ser usada de forma irrestrita. Sua utilização encontra mais sentido quando aplicada a determinados períodos, lugares e processos; é necessário ter a percepção do grau e da qualidade das conexões do objeto.

No segundo capítulo, intitulado “Uma breve história do pensamento global”, o autor apresenta as mudanças de percepção sobre o mundo através dos séculos. Para tanto, começa pela historiografia ecumênica, na qual cita autores, como Heródoto e Ibn Khaldun, que produziram um modelo de história global, de forma que, ao mesmo tempo, celebravam a essência de suas sociedades e a superioridade destas em relação ao mundo externo, já que para além das fronteiras residia a barbárie. Entretanto, essas conexões não se resumiam apenas a animosidades ou violência, mas também a trocas e encontros entre diferentes comunidades, como são os registros etnográficos de outros povos e costumes. Tais evidências não eram um fim em si, pois, em diversas vezes, havia interesses e relações de poder. Importante ressaltar que essa percepção mundial era geralmente construída a partir da perspectiva da própria comunidade. Logo, o passado de outros povos era percebido e julgado de acordo com as estruturas sociais e politicas da sociedade do historiador.

Conrad também apresenta a história mundial na era da hegemonia ocidental. Para o estudioso, após o século XIX, há um processo de homogeneização dos estudos históricos e de suas narrativas que dissemina a abordagem racional3 – em contraposição ao modelo anterior – e a imposição de valores culturais e imperiais a outras sociedades. Trata-se, nesse momento, de um movimento de consolidação.

Já o período pós-1945 é marcado pelo confronto entre vários modelos de História, como a existência do estatuto da história mundial4, assim como a crescente influência da corrente marxista5, o surgimento da teoria dos sistemas-mundo6, a própria Escola dos Annales7 e suas contestações, além da teoria da dependência8.

O interesse na história global, segundo Conrad, não é algo novo e também não é a única corrente metodológica aplicável no processo de se fazer ciência histórica. Tal apontamento é apresentado ao longo do terceiro capítulo, “Abordagens concorrentes”, no qual o autor discute cinco abordagens9 em diálogos com a história global. Essas possuiriam diferenças, mas também semelhanças, como o fato de partilharem um mesmo objetivo, que é o de transcender as perspectivas limitantes dos Estados nacionais e da hegemonia do Ocidente. Assim, essa parte do livro é dedicada a examinar a influência dessas vertentes sobre alguns historiadores globais em suas produções historiográficas, mas também os limites dos métodos.

Por um lado, a história comparada parte do pressuposto que nenhuma análise histórica acontece sem algum tipo de comparação e trata-se de um método apropriado para o estudo de casos em que conexões e trocas são mínimas quando situações independentes são examinadas ao longo do tempo. Por outro lado, tem como limitante a tendência de homogeneizar os casos, de suavizar, até mesmo de ignorar as diferenças internas e a criação e reprodução das particularidades nacionais. Assim, a inserção da história global estabelece que os processos de comparações partissem de um princípio de contexto de fundo.

A história transnacional, por sua vez, centra-se em fenômenos mais restritos, observando as dimensões fluidas e interligadas das sociedades, a partir de um contexto de entrelaçamento que, ao mesmo tempo em que as molda, também contribui para a sua construção. Segundo o autor, há uma relação de proximidade entre a história transnacional e a global, justamente por ambas transcenderem a compartimentação da realidade histórica e do internalismo. Porém, há limites, já que não existe uma superação total desse internalismo nas relações dos Estados-nação, enquanto que o global é colocado como um pano de fundo no qual a história nacional tenta ser encaixada. Dessa forma, Conrad faz uma crítica à maneira como a metodologia é utilizada.

A teoria dos sistemas-mundo tem como unidade básica de análise os sistemas e os grandes blocos, enquanto as estruturas menores são derivadas destes. Trata-se de um conceito com duas formas, a economia-mundo e o império-mundo. A primeira refere-se à integração de mercados, porém não em um nível planetário, mas sim de uma região com capacidade autônoma e apta a satisfazer suas necessidades materiais. Também se caracteriza pela divisão de trabalho e pelas trocas existentes dentro de uma região geográfica. Já a segunda relaciona-se a uma integração política ao longo de extensos territórios. Na segunda metade do século XX, esse modelo se tornou uma alternativa à teoria da modernização, ao propor outro quadro para se pensar uma escala global.

Conrad aponta algumas limitações da teoria dos sistemas-mundo através da perspectiva atual da história global. A primeira delas é o reducionismo econômico que uma compreensão unilateral pode fornecer, ignorando assim as dinâmicas e mutabilidades, como o capitalismo, exemplo citado pelo autor. Outro ponto se relaciona ao próprio conceito de capitalismo, sendo que a teoria dos sistemas-mundo firma suas bases de modo tão amplo que acaba por ocasionar o esquecimento das particularidades históricas. Por fim, para Conrad, outros fatores de aspectos suprarregionais e globais são abordados de maneira secundária.

Já os estudos pós-coloniais têm contribuído para um melhor entendimento das complexidades das interações culturais entre fronteiras, partindo do pressuposto que o mundo moderno se estrutura em uma ordem colonial. São também uma resposta relevante à teoria da modernização10. A crítica ao pós-colonialismo, segundo Conrad, se dá por algumas razões, em especial por conta do conceito de cultura. Acusados de privilegiar explicações culturais em detrimento das estruturas político-econômicas e a não imunidade a um discurso quase nacionalista.

Por último, o autor aborda as múltiplas modernidades, retomadas do conceito de civilização após a Guerra Fria, que mediava às relações entre indivíduos, contextos locais e processos de escala global, e atribuiu uma maior relevância às questões internas de cada sociedade. As múltiplas modernidades se baseiam em uma insatisfação com a teoria da modernidade e buscam reconhecer como válidos os diversos aspectos socioculturais e seus desenvolvimentos históricos. Entre as críticas estabelecidas a essa teoria estão a relativa limitação ao campo cultural e sua superficialidade, além dos riscos de se prender à ideia de uma sociedade com uma cultura atemporal e imutável e de se ignorar os processos de interações, constituindo-se como uma sociedade fechada em si.

Assim como Conrad apresentou, nos capítulos anteriores, características de diversas abordagens metodológicas no processo de se fazer História, a quarta parte, intitulada “A história global: uma abordagem distinta”, foca em demonstrar os traços característicos do campo da história global. Nela, o autor inicia argumentando que para compreendê-la melhor é necessário, antes, opô-la a uma tradição anterior, isto é, à história mundial. Esse modelo seguia uma perspectiva de grandes escalas entre sociedades ou civilizações, visando obter uma imagem de tudo que ocorria fora do âmbito da nação. Também traçava percursos de instituições e bens através do tempo. Grande parte das histórias mundiais não ignorava as interações e trocas; na realidade, buscava estabelecer comparações e vínculos entre diferentes sociedades. Entretanto, essas percepções estavam ligadas pela relação de poder entre centro e periferia, entre Ocidente e o restante do mundo, dentro de uma visão eurocêntrica.

Enquanto a história mundial se utilizava da macro comparação, a global, por sua vez, recorre à mobilidade, à combinação entre comparações e conexões, com foco nas dimensões fluidas e flexíveis das transformações históricas. E ainda que a conexão seja um aspecto importante, essa característica por si só não é suficiente para fazer uma história global. Não se trata de apenas colocar os efeitos globais acima de tudo como o aspecto mais importante; é preciso, de fato, compreender as condições locais e as questões de casualidades, que produções mais antigas de história mundial ignoravam, até alcançar o nível global. Segundo o autor, é a centralização nos fatores de trocas e interações que permite, ao mesmo tempo, fazer uma história global que não seja geral e demarcar uma diferença entre ela e outros modelos teóricos, como a história comparada.

No quinto capítulo, intitulado “História global e formas de integração”, Conrad não apenas apresenta as diferenças entre história da globalização e a história global, como também as possibilidades que a abordagem fornece para o estudo da história global. O autor reforça as ideias expostas anteriormente, ressaltando que a história global não deve ser entendida como um objeto de estudos, mas como uma perspectiva e, por meio dela, exerce-se uma autorreflexão quanto ao eurocentrismo. Além disso, destaca que a conectividade não é o único princípio orientador da história global: ainda que sem as conexões e interações não exista uma globalidade, a qualidade dessas relações depende da intensidade com que os mundos interagem entre si.

Conrad discute que o processo de integração pode se dar no âmbito regional e local e, não necessariamente, de forma global. Além disso, esses movimentos não ocorrem de forma natural, mas mediante a ação dos agentes históricos. Já suas causas não podem ser atribuídas a um único fator, mas sim a conjuntos de fatores; logo, entre as tarefas da história global encontra-se a compreensão dessas relações.

O sexto capítulo, “O espaço na história global”, trata da necessidade de reflexão, por parte dos historiadores, sobre os parâmetros, o escopo da disciplina. Conrad apresenta a história global como um esforço de ampliação desse espaço para além do modelo de pensamento compartimentado e dos Estados nacionais. Nessa metodologia, o desafio reside na articulação e na análise das diferentes escalas que não sejam reduzidas a um território fixo. Dessa forma, o autor examina alguns modelos dentro dessa linha, como os espaços transnacionais, a micro-história do global, as relações em rede, e, por fim, discorre sobre o objetivo dos historiadores globalistas, que é justamente o de escrever uma História menos nacional.

Enquanto o capítulo anterior aborda a questão do espaço e a disciplina, o sétimo capítulo, “O tempo e a história global”, pensa a relação entre os dois temas. Segundo o autor, a história global critica as narrativas históricas11 que assumiram o tempo como categoria central. Não se trata de sua exclusão, mas de uma reconfiguração a partir da relação com o espaço. Apresenta, também, a adequação do uso de diferentes temporalidades de acordo com as questões, os estudos, os propósitos.

Os capítulos oitavo e nono “Posicionalidade e abordagens centradas” e “Criação de mundos e conceitos da história global”, respectivamente, abordam as questões relacionadas às perspectivas da metodologia. A oitava parte apresenta a questão da acessibilidade e da diversidade de uma produção historiográfica ao contrapor o centrismo12 e a posicionalidade da história global. No nono capítulo, por sua vez, o autor busca analisar as abordagens da perspectiva da história global, ou seja, o processo pelo qual os historiadores criam um mundo não apenas de forma descritiva, mas construtiva, no qual perspectivas e processos de integração global coexistem em dialética.

Por fim, o décimo capítulo, “História global para quem? A politica da história global”, Conrad reflete sobre a quem é destinada essa história global, como ela é colocada como ideologia de globalização, a relação entre geopolítica e língua, e as limitações do global. De acordo com o autor, as noções de cosmopolitismo e cidadãos do mundo, além de possuírem uma genealogia europeia, não eram fatores identitários fortes o suficiente para a maioria. Enquanto isso, a globalização é sentida pelas classes sociais internacionais que controlam grandes concentrações de capital financeiro, social e intelectual. Atualmente, há um processo de deslocamento, por parte da historiografia, do termo “cosmo”, advindo da filosofia ocidental, que busca ampliá-lo como significado de várias relações entre diversos grupos sociais, que procuram resolver problemas coletivamente. Além disso, ainda que a história global vise romper com os aspectos da história mundial, é possível que a mesma seja usada para escrever uma narrativa que exalte a própria nação, pois os objetivos desta são múltiplos e podem ser antagônicos. Como exemplo citado na obra, Conrad afirma que enquanto alguns estudiosos pensam em uma sociedade liberal/capitalista sem fronteiras, outros pensam contra esse modelo de sociedade.

Outro ponto levantado é a questão da influência da história global, definida por dois fatores: o primeiro é o contato das comunidades acadêmicas com as discussões anglófonas, logo, quanto menor o contato, menor será o impacto; o segundo é o peso que a construção nacional ocupa, isto é, quanto maior o impacto desta, menor o papel da história global. Já a presença da língua inglesa é impactante por vários fatores. Primeiramente, pelo ato de muitos historiadores ignorarem estudos produzidos em outros idiomas e fora do circuito das universidades ocidentais, em uma postura contraditória à retórica antieurocêntrica da história global, além de transformar costumes específicos em normas amplamente aceitas. O segundo fator é que o idioma, ao mesmo tempo em que pode marginalizar outras línguas e tradições historiográficas, constituindo-se como uma forma de dominação, também é um facilitador para conversações transfronteiriças, sendo globalmente acessível. O terceiro é a sua permissibilidade, ou seja, os historiadores de outras regiões podem se utilizar do inglês para criticar as formas de provincianismo de diferentes tradições nacionais.

Em síntese, o livro de Conrad mostra que a história global é um modelo que não pode ser inserido em todo e qualquer projeto. É necessária uma percepção adequada, pois existem outros caminhos teóricos e metodológicos igualmente válidos, relevantes e que podem ser muito mais apropriados a uma determinada pesquisa histórica. É falso pensar que, em todo o canto, insere-se o globalismo, ou tratar as interações e transferências como o fim em si. As fontes não falam apenas de conexões, mas de outros modelos de histórias possíveis.

Notas

3 Com foco na nação, no conceito de tempo estabelecido a partir do ideal de progresso, e em uma metodologia caracterizada pela análise crítica.

4 Perdurou até os anos 1990.

5 Buscavam enquadrar a história de um país em um modelo universal marxista.

6 Na década de 1970.

7 Conrad inclui entre a produção dos Annales apenas a história das mentalidades.

8 Argumentava que “pobreza” e “atraso” não eram consequências das tradições locais não modernas, que ainda não tinham sido afetadas pela economia global; ao contrário, eram justamente os resultados da integração destas na estrutura capitalista global.

9 A história comparada, a transnacional, a teoria dos sistemas-mundo, os estudos póscoloniais e as múltiplas modernidades.

10 Por meio de novas perspectivas sobre os intercâmbios culturais, os entrelaçamentos do mundo moderno como ponto de partida e a necessidade de conscientizar e situar que a integração global está inserida em estruturas de poder desiguais. Ver CONRAD, Sebastian. O que é história global? Tradução de Teresa Furtado e Bernardo Cruz. Lisboa: Edições 70, 2019. p.71-73.

11 Como as metáforas temporais, a visão da História como genealogia e a teoria da modernização.

12 O exemplo do eurocentrismo.

Referência

CONRAD, Sebastian. What is Global History. Princeton: Princeton University Press, 2016. Edição brasileira: CONRAD, Sebastian. O que é história global? Tradução de Teresa Furtado e Bernardo Cruz. Lisboa: Edições 70, 2019.


Resenhista

Antonio Chiavelli Neto – Graduado e mestrando em História pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, membro dos Laboratórios de Estudos Medievais – LEME/UNIFESP e Estudos Mediterrânicos e Bizantinos – LAEMEB/UNIFESP. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9994703218932097 . E-mail: neto_ch2@hotmail.com


Referências desta Resenha

CONRAD, Sebastian. Trad. Teresa Furtado e Bernardo Cruz. Lisboa: Edições 70, 2019. Resenha de: CHIAVELLI NETO, Antonio. Revista Hydra. São Paulo, v.5, n.10, p. 301- 311, ago. 2021. Acessar publicação original [DR]

 

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