O Populismo e sua História: debate e crítica | Jorge Ferreira

A coletânea reúne textos de sete historiadores, uma antropóloga e uma socióloga, num total de sete artigos, já que dois deles são escritos a quatro mãos. Constituem uma plêiade de pesquisadores contemporâneos que labutam nos departamentos de História, Antropologia e Sociologia de universidades como USP, UFF, UFRJ, UFMG, Metodista de Piracicaba e Escola Sindical São Paulo, vinculada à CUT. Não seria exagerado afirmar que se trata de um livro que corta e recorta, não sem marcar o nosso tempo, a categoria populismo e seu corolário histórico mais imediato, a chamada democracia populista que teria sua vigência mais arrebatadora entre 1945 e 1964. Do fato de que o uso da categoria remete à noção de traição, ninguém ficaria contrariado e, embora nem os seus críticos nem os seus defensores tenham aludido a hipóteses psicológicas, talvez não fosse despropositado mencionar que a própria idéia de traição política e de classe teria gerado no Brasil um fenômeno de complexo de populismo. O propósito da minha recensão é tentar elucidar, com a verve e a argúcia dos autores reunidos, a teoria e o complexo, tarefa nada fácil para o espaço normativo das revistas nacionais em se tratando de polêmicas historiográficas.

Na introdução, sob a pena do organizador, o historiador Jorge Ferreira, as inquietações dos pesquisadores que teriam levado às variáveis do tipo manipulação dos trabalhadores, desvios de classe e a sociedade como vítima dos demagogos estariam tentando responder a uma problemática básica: Por que os trabalhadores manifestaram apoio a Getúlio Vargas durante o Estado Novo, e quais as razões que os levaram, entre 1945 e 1964, a apoiar os líderes trabalhistas e votar no PTB? De modo que, sejam quais tenham sido as razões dos construtores da palavra, do conceito e da disseminação do uso sociológico do populismo, o legado na ciência social, como de resto para a historiografia e a ciência política, teria sido um cenário de “populistas” e “pelegos”, eis a imagem que temos da política brasileira entre 1930 e 1964. Essas duas datas pareciam identificar um interregno sinistro, pois, se antes haveria a tradição libertária dos anarquistas e depois a repressão aos sindicatos e a luta autonomista dos operários no ocaso da ditadura, no decurso de pouco mais de 30 anos os trabalhadores estranhamente teriam sido seduzidos pelos trabalhistas, traidores por definição, e pelos comunistas, autoritários por profissão. Para o autor, a repetição das respostas à mesma pergunta mereceria desconfiança e recusa da imagem que havia se colado, especialmente nas mentes acadêmicas que não conseguem se desvencilhar de um mesmo recital: manipulação política, propaganda estatal, doutrinação das mentes, consciências desviadas, camponeses que vestiram macacão, demagogia populista, cegueira nacionalista dos comunistas, tradições messiânicas, resquícios sebastianistas e, até mesmo, totalitarismo (p. 7- 16). Como se poderia observar, todos os caminhos acabavam levando ao sumidouro de todas as vontades e desejos, o populismo.

O primeiro artigo, da professora Ângela de Castro Gomes, O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito, traz na edição sua própria trajetória: primeiramente apresentado no XI Congresso Internacional da Associação de Historiadores Latino-americanistas Europeus, em Liverpool, no mês de setembro de 1996, foi publicado pela revista Tempo, no final do mesmo ano, e ganhou um pós-escrito para a edição no livro. A autora é pioneira na realização de pesquisas sobre a classe trabalhadora no Brasil nas quais a categoria populismo não está presente nem na centralidade de suas hipóteses nem nas variáveis explicativas. Ao contrário, a historiadora da UFF e do CPDOC/FGV elegeu o trabalhismo, o pacto trabalhista, como o fundamento de sua tese que, tão logo defendida, chegaria às livrarias como A invenção do trabalhismo. 1 Nela se admitia que um processo histórico de construção e fazer-se de uma classe não poderia sofrer desvio, dado que não haveria modelo prévio de percurso a ser seguido e, menos ainda, um resultado modelar a ser alcançado. Ao contrário dos que abraçavam o populismo como complexo de manipulação estatal, personas públicas traidoras e sindicalistas pelegos, a autora considerou necessário olhar para uma classe trabalhadora diversificada e afastada de purismos ideológicos, e uma ação estatal como variável de interlocução, o que precisava ser qualificado para além de uma intervenção espúria que quebrava a ordem natural de um processo. Ao atribuir aos trabalhadores um papel ativo como sujeitos históricos, com suas possibilidades reais de lutas, estratégias e apropriações dos discursos oficiais, o fator manipulação, espécie de constituição de artigo único dos teóricos do populismo, também não poderia ser mais determinante para explicar boa parte da República, especialmente as relações de trabalho e a formação da classe trabalhadora. Deixemos, porém, a própria autora demonstrar seus argumentos ao revisitar a seara de sua pesquisa: Por estas inúmeras razões, que se prendiam ao efeito obscurecedor que o sentido do conceito de populismo acarretaria, a opção do trabalho foi rejeitar seu uso, muito embora não haja nele uma argumentação explícita, como a que se fez agora, sobre esta decisão. Ela, sem dúvida, está implícita, em particular quando se propõe assumir a designação de pacto trabalhista para pensar as relações construídas entre Estado e classe trabalhadora, escolhendo como momento estratégico de sua montagem os anos do Estado Novo (p. 46-47).

Ângela de Castro Gomes termina por considerar o conceito de populismo como um gato de sete vidas, na medida em que, ainda na década de 90, ele retornaria para tentar explicar a situação trágica da suposta impossibilidade dos valores democráticos em terras brasileiras. As referências seriam explícitas às últimas reflexões de Décio Saes sobre a emergência de um neopopulismo não só no Brasil, mas como de resto na América Latina, e de Marilena Chauí que postularia, numa certa obsessão pelo Ídolo da Origem, determinadas raízes teológicas do populismo, delimitando-as a partir de duas estradas que se cruzariam nos canteiros da história, a saber, a teocracia dos dominantes e, a mais exasperante delas, o messianismo dos dominados. 2 No pós-escrito, que a autora desenvolveu especialmente para o livro em discussão, ela não perde a oportunidade de reiterar algumas convicções especialmente amadurecidas ao longo de uma trajetória de pesquisa, não sem reconhecer as nuanças históricas de um felino de sete ou mais vidas: o trânsito que a categoria populismo possui na cultura política do país e os processos de seu “deslocamento” da linguagem acadêmica para o vocabulário da mídia e da população estão a nos desafiar e a merecer reflexões. Neste sentido, preocupa-me menos o sucesso ou insucesso da “palavra” do que a permanência do que ela guarda de dramático e emblemático da política brasileira, vista sempre como à beira do autoritarismo e sendo alvo fácil de políticos tão hábeis quanto cínicos (p. 53, 57).

O artigo seguinte, O nome e a coisa: o populismo na política brasileira, escrito pelo organizador da obra, Jorge Ferreira, parece ser o mais radical contra a perspectiva de o gato ultrapassar as sete vidas. Daí, a necessidade de uma rejeição imediata da categoria, ou melhor, do nome da coisa em primeiro lugar e, em segundo, a afirmação de que a prática histórica dos trabalhadores, e uma parte da elite política republicana que aos seus anseios se amalgamou, teria construído a opção do trabalhismo. Este sim um conceito histórico e historiográfico, pois que explicativo da natureza dos homens e mulheres entre 1930 e 1964, notavelmente expresso por uma crônica de Rachel de Queiroz, nada getulista como se sabe: das pessoas que trabalham e que buscam trabalho, é a paixão, a gratidão, a cólera, o instinto de luta e de defesa. Poética à parte, Jorge Ferreira procura explicar o nome, a trajetória de uma suposta categoria sociológica, na verdade acusatória, considerando três momentos intelectuais, assim classificados: 1) o populismo de primeira geração; 2) o populismo de segunda geração; 3) o colapso do populismo propriamente dito.

O primeiro momento (talvez fosse o caso de se dizer movimento), entre as décadas de 1950 e 1960, marcaria a ocasião em que seus formuladores, entre eles Guerreiro Ramos e, especialmente, Francisco Weffort, teriam sido fortemente influenciados pela teoria da modernização. Depois, o populismo de segunda geração, na virada da década de 1970 para a de 1980, quando o ensaísmo weffortiano permanece como síntese básica a partir das variáveis repressão estatal mais manipulação política, cuja somatória teria dado traição de classe e alguma satisfação das demandas operárias. Para o autor, Weffort reconhece alguma satisfação dos trabalhadores pelas políticas públicas de proteção ao trabalho, questão que seria abandonada por aqueles que se inspirariam em seus escritos. Na verdade, Ferreira se fixa na positividade das explicações de Weffort para imprimir uma crítica mais contumaz ao que veria como um perigo maior, isto é, certas interpretações com ranço anacrônico, na medida em que tentaram explicar as relações dos trabalhadores com o Estado a partir do Estado e das identificações totalitárias e seus ardis; de modo que a segunda versão do fenômeno apropriou-se das idéias de Weffort, ressaltando as variáveis repressão e manipulação, mas subestimando e, muitas vezes, desconhecendo o viés satisfação. Surgiu, assim, o populismo na sua interpretação mais repressiva e demagógica (p. 84, grifos do autor). O colapso do populismo propriamente dito teria evidência em meados da década de 1980, a partir da recepção historiográfica de Gramsci, Ginzburg, Foucault e Thompson, em que alguns poucos pesquisadores começaram a aplicar as noções de cultura, tradição, circularidade, apropriação, resistência, entre outras, no sentido de uma melhor compreensão do que hoje se entende por cultura política. Respaldado pelas pesquisas que se inspiraram nos autores acima citados, entre elas os seus próprios trabalhos sobre tradições culturais e imaginário popular da classe trabalhadora, Jorge Ferreira recusa radicalmente o nome da coisa, visto que a coisa era bem outra. Como populista seria sempre uma roupagem que se cola ao outro – político, partido, sindicato, ideologia – seu uso pela ciência social e historiografia teria sido tanto deletério quanto equivocado, exprimindo limites conceituais de intelectuais e pesquisadores mais preocupados em se tornarem vanguardas da Revolução.

Em muitas passagens do texto, parece que o autor torna-se, de certa maneira, aliado da verve irônica de Thompson, citando a famosa passagem de A miséria da teoria, em que, pelo recurso da interpelação, a malvada bruxa do Estado aparece! A varinha mágica da ideologia é agitada! E pronto. Ora, essa tal coisa não existiu entre 1930 e 1964, nem em qualquer outro período histórico, dado que, se bem me lembro de uma máxima da ciência política, a ideologia e seus supostos chamamentos somente convencem os já convencidos. Consoante à interpretação thompsoniana da história, Jorge Ferreira afirma tratar-se de um período da história republicana em que as relações entre Estado e trabalhadores se identificavam por uma gama de interesses comuns, esses sim um tanto raros na história brasileira. Tal relação acabaria forjando a tradição trabalhista que, a rigor, não deixava de vislumbrar um modelo de república. Aqui, estaria, portanto, a chave da questão e da inoperância das teorias populistas: No trabalhismo, estavam presentes idéias, crenças, valores e códigos comportamentais que circulavam entre os próprios trabalhadores muito antes de 1930. Compreendido como um conjunto de experiências políticas, econômicas, sociais, ideológicas e culturais, o trabalhismo expressou uma consciência de classe, legítima porque histórica (p. 103). Desse modo, minha leitura do artigo não poderia ser outra senão esta: o nome e a coisa que mobilizaram contra si jornalistas, sociólogos, historiadores, as direitas, as igrejas, os capitalistas, as classes médias receosas e as ortodoxias esquerdizantes teriam sido, na verdade, as experiências mais dramáticas e enriquecedoras da nem sempre apreciada tradição trabalhista brasileira.

O terceiro artigo, Populismo latino-americano em discussão, da historiadora Maria Helena Rolim Capelato, procura discutir duas questões a partir dos casos paradigmáticos da América Latina: o varguismo, o cardenismo e o peronismo, respectivamente referências políticas do Brasil, México e Argentina. As duas questões suscitadas pela autora seriam, a meu ver, sintomáticas da cautela uspiana em tratar de um tema caro às tradições acadêmicas da Sociologia paulista, dado que ela não se arrisca a rejeitar o populismo, tal como fazem os historiadores cariocas presentes no livro. Primeiro, a autora procura indagar em que medida as experiências do populismo latino-americano apresentam a constatação de que uma cultura política baseada na intervenção do Estado e novas formas de controle social podem ser consideradas democráticas, porque voltadas para os interesses populares, ou autoritárias, porque introduziram instrumentos mais eficazes de controle das classes trabalhadoras (p. 129). Segundo, a autora compreende o debate em torno do tema como uma riqueza em termos de variedade de interpretações, que iriam desde a defesa da validade das análises mais tradicionais, à atualização no tempo presente de uma espécie de neopopulismo, até a própria negativa da operacionalidade do conceito. A importância do artigo talvez resida no fato de que faz uma rica discussão a partir de autores argentinos e mexicanos que, na maioria das vezes, são notáveis esquecidos na historiografia brasileira, sempre ávida por uma certa História usada que viceja em Paris e seus arredores.3 Numa longa e importante nota, Capelato elabora uma síntese do que alguns autores chamam de populismo clássico a partir de três grandes interpretações: 1) a chave explicativa do processo de modernização, tributária do funcionalismo, que pensa o populismo como fenômeno paradigmático dos países subdesenvolvidos cuja transição da sociedade tradicional para a moderna torna-se inconclusa (Gino Germani, T. Di Tella, S. Stein); 2) a interpretação histórico-cultural que veria o populismo vinculado ao estágio de desenvolvimento do capitalismo latino-americano a partir da crise do modelo agroexportador e do Estado oligárquico. Com ênfases diferenciadas, alguns autores destacariam ainda as prerrogativas intervencionistas do Estado populista (F. H. Cardoso e Enzo Faleto, com a teoria da dependência, Murmis, Portantiero, Weffort e Torre, com a crise de hegemonia, e, por último, Touraine, com a política de integração nacional); 3) a interpretação dos conjunturalistas que se caracterizaria pelos estudos monográficos, destacando-se, entre outros, French, Doyon, James, Horoeitz, Tamarin, Boris Fausto e Murilo de Carvalho. Nesta terceira dimensão explicativa, destacar-se-iam correntes que se preocupariam com a cultura social e política da classe trabalhadora, a constituição dos sujeitos e os sentidos que têm para os atores sociais as experiências vividas e estudos que se centram na complexa rede de alianças relacionadas com processos sócio-econômicos que criaram distintas dinâmicas e possibilidades de alianças entre as classes (p. 133-134).4

Depois, Maria Helena Capelato trata dos autores que lançaram novas luzes sobre os casos do peronismo e do cardenismo cuja referência dos estudos seriam sempre as relações entre a classe trabalhadora, o Estado e as classes dominantes. Do exposto, viria a conclusão de que o conceito de populismo não possibilita a compreensão da complexa relação das classes trabalhadoras com o cardenismo e peronismo, o que poderia ser superado por uma análise comparada, a fim de perscrutar o que haveria de comum e específico nos dois regimes. Com efeito, Capelato é pioneira nos estudos comparatistas em torno da cultura política e no que ela chamou de produção de sentimentos nos míticos períodos de Vargas e de Perón.5 Para a autora, os novos estudos sobre os processos históricos do peronismo e do cardenismo permitem que se considere um fator comum: a introdução de uma nova cultura política baseada no papel interventor do Estado nas relações sociais, o que representou, ao mesmo tempo, atendimento de reivindicações de natureza social (melhoria salarial, legislação trabalhista, reforma agrária – no caso mexicano), política (referência a uma cidadania baseada no reconhecimento do trabalhador como sujeito da história) e subjetiva (resposta aos anseios de dignidade do trabalhador, até então desprezados por governantes e setores dominantes). Não se pode negar a importância destas conquistas das classes populares nesses regimes (p. 163-164). A questão mais pertinente ainda seria o caso da democracia, dado que os regimes teriam produzido um viés inconfundivelmente autoritário. Chega-se, portanto, ao tempo presente e à constatação de que haveria na atual classe política latino-americana uma ânsia catártica de enterrar um determinado passado político. A pergunta que Capelato elucida para encaminhar a conclusão de seu texto, por si só, valeria a pena ser reproduzida em função de sua virtuosa crítica aos políticos acadêmicos que não têm se saído melhor do que aqueles de antanho: Mas, afinal, de que democracia estamos falando? Os governantes de hoje, que prometem a destruição do populismo, não se referem ao seu legado autoritário, mas às conquistas sociais obtidas pelas classes trabalhadoras naquele período. Em suas agendas, a democracia se reduz a eleições e reeleições (p. 164-165).

O quarto artigo, Trabalhismo, nacionalismo e desenvolvimentismo: um projeto para o Brasil (1945-1964), da historiadora Lucília de Almeida Neves, inicia pela abordagem das marcas das conjunturas, isto é, haveria nos processos históricos singularidades temporais cujas experiências são ricas por serem definitivas. Afirmar isso não significa nada de elementar, pois, para a autora, a conjuntura delimitada mais especificamente entre as décadas de 1940 e 1960 teria sido caracterizada pela crença de expressivos segmentos da sociedade civil brasileira de que a modernidade só seria alcançada se apoiada em um programa governamental sustentado pela industrialização, por políticas distributivistas e por efetiva defesa do patrimônio econômico e cultural do país (p. 172). Com tal perspectiva, o artigo centra-se no projeto político trabalhista consoante uma doutrina em que se mesclaram elementos da social-democracia e do assistencialismo estatal. A autora que, nos seus trabalhos anteriores, já vinha sustentando hipóteses semelhantes, registra três tendências políticas e doutrinárias no seio do trabalhismo: a) os getulistas pragmáticos, entre eles os burocratas ministerialistas e os sindicalistas ligados ao corporativismo sindical. Teriam sido hegemônicos no PTB desde sua fundação, em 1945, até a tragédia nacionalista de 1954, e sua principal referência adviria da mística varguista; b) os doutrinários trabalhistas que a autora, num feliz achado gramsciano, denominaria de os intelectuais orgânicos do petebismo, os quais postulariam uma orientação trabalhista socializante, buscando uma maior autonomia partidária em relação ao Estado. Destacam-se nomes como Sérgio Magalhães, Santiago Dantas e, especialmente, a figura exponencial de Alberto Pasqualini, teórico das coisas partidárias e da política como realização de vontades coletivas, cuja inspiração básica parecia ser o trabalhismo inglês; c) os pragmáticos reformistas que teriam forte atuação depois da morte de Vargas, mesclando características das duas tendências anteriores. Os trabalhistas reformistas tornar-se-iam importantes lideranças regionais e, alguns deles, ganhariam projeção nacional, notadamente João Goulart e Leonel Brizola. Diz a autora que os pragmáticos reformistas, entre 1954 e 1964, alimentaram o fluxo das proposições nacionalistas que contagiaram a militância partidária e se tornaram hegemônicas na agremiação por aqueles anos (p. 177-178).

Evidentemente que a autora aprofunda com muito mais consistência as três tendências que, neste espaço, apenas foram mencionadas. Porém já se percebe um enorme salto historiográfico em relação às verberações típicas dos adeptos da teoria da traição: sindicalistas pelegos, políticos demagogos e operários enganados. Ironias da história, Lucília de Almeida Neves não deixa de sugerir uma breve comparação entre dois reformismos, aquele do trabalhismo, e este que nos atinge, o dos sorbonistas: embora o primeiro pudesse ser utópico e contraditório, não deixaria de ser marcado por uma forte generosidade e solidariedade social, inimagináveis no tempo presente, marcado por um outro signo, a saber, o do individualismo compulsivo (p. 202).

O artigo seguinte, Trabalhadores urbanos e populismo: um balanço dos estudos recentes, dos historiadores Fernando Teixeira da Silva e Hélio da Costa, parte da premissa de que uma história social do trabalho teria de relacionar dialeticamente estrutura e ação, dado que a ação social resultaria de escolhas, negociações e decisões dos indivíduos em relação ao poder constituído, não menos pleno de contradições e porosidades. Num primeiro momento, os autores analisam o estado da questão e tentam sistematizar as contribuições de estudos recentes da história social do trabalho, especialmente aqueles rubricados como investigações monográficas sobre categorias específicas de trabalhadores, empresas, sindicatos e greves em conjunturas circunscritas (p. 210). Num segundo momento, mas ainda dentro do mesmo escopo historiográfico, a abordagem centra-se naqueles estudos em que estariam mais presentes as variáveis da política de alianças e as noções e apropriações, reais e simbólicas, das leis, direitos e justiça. As continuidades e descontinuidades, bem como os marcos identificatórios do velho e do novo sindicalismo, mostrariam que a recente produção acadêmica mudou o panorama historiográfico, ao oferecer uma visão alternativa sobre a classe operária, ainda que os autores, com certa reticência, grifem 1930-1964 como os anos populistas. Entretanto, mergulhados num conjunto qualificado de estudos monográficos, que nem por isso desprezam a teoria e as categorias sociológicas, Fernando Teixeira da Silva e Hélio da Costa concluem que tais anos, cada vez menos populistas, seriam antes conjunturas de lutas políticas e econômicas dos trabalhadores que, não poucas vezes, seriam capazes de superar os obstáculos da legislação sindical e outros âmbitos das lutas institucionais por direitos e justiça. Haveria, assim, uma criativa sugestão de se entender melhor a coisa, considerando o campo político um terreno de disputas, mais complexo e dinâmico do que pressupunham as teses que reforçavam a imagem de uma classe operária passiva e manipulada pelo Estado (p. 271).

O sexto artigo, Classe trabalhadora e populismo: reflexões a partir de duas trajetórias sindicais no Rio de Janeiro, da antropóloga Elina G. da Fonte Pessanha e da socióloga Regina Lúcia M. Morel, ambas com pesquisas sobre a história do movimento operário, procura discutir duas categorias que tiveram importância para as lutas dos trabalhadores nos anos 1950 e 1960, os operários navais e os operários da indústria siderúrgica. Trata-se de duas categorias que, para algumas visões essencialistas da classe operária, eram vistas como ilustres representantes do sindicalismo corporativista. As autoras foram atrás das vozes de velhos sindicalistas que lembraram com orgulho das tradições de lutas e conquistas dos marítimos e operários navais. Com forte base sindical em Niterói, os famosos marítimos foram capazes de construir uma identidade social e política em torno da liberdade de associação e na luta por direitos que os tornariam camada privilegiada dos trabalhadores urbanos. Já os trabalhadores da indústria siderúrgica, tendo a cidade de Volta Redonda como a Meca do trabalhismo, foram vistos, segundo as autoras, como massa de manobra do getulismo e do sindicalismo corporativista, presa fácil de demagogos e pelegos (p. 300-301). Entretanto, as duas pesquisadoras ressaltam que muitas lideranças sindicais e o conjunto dos trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional se apropriavam das falas oficiais e as tornavam motivos de moralidade e justiça. Desse modo, os trabalhadores se identificavam com a empresa, e seriam eles a defender a idéia de que Volta Redonda era o símbolo da indústria nacional, dos seus avanços e da conquista de direitos e valorização do trabalhador. Não seria um mero acaso, portanto, que a ruptura institucional de 1964 iria perseguir duramente os trabalhadores e, imediatamente ao golpe, desmantelaria as duas poderosas bases sindicais. Também não seria por um simples complexo de borralheira que trabalhadores da indústria naval e siderúrgica se lançaram na defesa do prometido e acenado: eles não deixariam de ser protagonistas de uma cultura política marcada por uma forte relação com o Estado e pela noção de direitos (p. 316). O artigo mostra o grau de segurança com que as autoras, a partir de seus estudos monográficos, conseguiram penetrar nas mentes e emoções do trabalhador carioca que, se aceitava a dádiva, era porque ali estaria boa parte de sua própria dignidade.

O último artigo, de Daniel Aarão Reis Filho, O colapso do colapso do populismo ou a propósito de uma herança maldita, poderia ser dividido, a rigor, em duas partes, embora o autor tenha elencado outros tópicos. Na primeira parte, o autor traça com uma peculiar verve irônica a centralidade e as fímbrias do que chamou de o colapso de uma República. O autor põe em evidência que os golpistas só não tiveram sucesso com a crise de 1961 porque a resistência popular se fez presente nas ruas e bateu às portas da imprensa, sabidamente um pouco mais do que simplesmente conservadora. Aarão pondera que, logo depois, tendeu-se a perder de vista, no campo dos movimentos populares, que a posse de Jango fora garantida por um argumento essencial na conjuntura: a defesa da legalidade (p. 327). Parece ser cada vez mais unanimidade na historiografia brasileira, ao menos aquela que se descolou da Sociologia interessada, a idéia de que, entre 1961 e 1964, abrir-se-ia, como diz o autor, um dos períodos mais intensos da vida política republicana brasileira. Naquela conjuntura, as reformas, o reformismo, a superação de nossas idiossincrasias, se eram lemas de todas as bocas, ressoavam roucas e exigentes naquelas vozes que vinham de baixo, das profundezas da terra esturricada e cheia de quasímodos, para ficarmos na impressionante imagem euclidiana. A narrativa de Daniel Aarão não seria menos densa ao chicotear o Partido da Ordem e os teóricos do colapso: O mundo parecia virar pelo avesso. As greves recorrentes. As crises sucessivas. Os desafios à ordem. As autoridades, a começar pelo próprio presidente da República, adotavam posturas populistas. Em vez de agir com energia, ficavam recebendo aqueles demagogos, não se davam ao respeito, como se estimulassem a baderna. Ora, tais coisas não seriam modos de um povo pacífico, e, das igrejas aos quartéis, gargantas lastimosas entoavam: aonde aquilo iria parar? (p. 331, grifos do autor). Para o autor, seria a tradição trabalhista, forjada ao longo dos anos, que estaria legitimando aquele protagonismo de gentes historicamente subalternas e humildes que causariam tanto horror, náusea e desgosto aos setores conservadores. Foi assim, conforme as palavras de Daniel Aarão, que do trabalhismo se fez o populismo. A crescente radicalização das lutas sociais e reivindicações reformistas acometeriam as forças conservadoras do mais brutal meio para destruir uma tradição que se calcava no mundo do trabalho: apagar o seu nome, dar-lhe uma alcunha assustadora e herética à República dos valores cristãos. De modo que, mais especificamente entre 1961 e 1964, as palavras populismo e populista passaram a designar, sobretudo para as forças conservadoras, tudo que de pior podia existir na cultura política existente: demagogia, corrupção, paternalismo, clientelismo, fisiologismo, irresponsabilidade, irrealismo, peleguismo. Devidamente demonizadas, estas tradições deveriam ser negadas, vencidas e varridas da história do país (p. 346-347, grifos do autor).

Na segunda parte, sua agradável ironia se transforma em mordacidade, quando se põe a tratar dos ensaios sociológicos clássicos que tentaram explicar o colapso do populismo. Assim, Octávio Ianni e Francisco Weffort são pouco mais do que trucidados, pois o suposto brilhantismo dos dois cientistas uspianos é colocado no verdadeiro lugar: intuições sociológicas desprovidas de qualquer sentido histórico e do rigor acadêmico que hoje se tornou obrigatório em todas as monografias de final de graduação. Para o autor, que se detém nas principais argumentações de Ianni e Weffort, o que haveria de comum entre eles seria o ataque metódico contra as tradições trabalhistas e seus sócios menores, os comunistas do PCB. Uma recorrência (p. 364, grifos do autor). Parece soar estranho que uma sociologia tão científica pudesse fazer com que trabalhistas e comunistas sofressem tanto páginas a fio, assassinados duas vezes, enquanto que as direitas mereceriam a responsabilidade de atavismos autoritários e democracia controlada. Ao descortinar um amplo painel de lideranças políticas e de propostas reformistas para a América Latina, Daniel Aarão conclui seu polêmico texto identificando-as como tradições nacional-estatistas que, em nenhum momento, seriam histriônicas como quiseram interpretar os teóricos do populismo. Seu último recado se assemelha a um programa para a nossa historiografia: Reconhecer e estudar tradições, um difícil desafio. Não significa necessariamente reconciliar-se com elas, mas simplesmente uma condição para compreendê-las e compreender a nós mesmos, seus herdeiros (p. 376-377).

Por último, mas não menos importante, gostaria de frisar o caráter pluralista da obra que reúne autores com as seguintes posições: a) que ainda não abandonaram os postulados teóricos do populismo, atribuindo-lhe alguma validade explicativa; b) que consideram o populismo, desde a década de 1980, como não mais adequado para se entender nem o Estado nem a classe política e, menos ainda, os trabalhadores; c) que rejeitam o populismo, por ser uma categoria de acusação e desqualificação do outro, forjada nos círculos exclusivistas de uma sociologia interessada – eu diria tragicamente palaciana – e vulgarizada pela arrogância de discursos udenistas e conservadores. Desse modo, a história do nome e da coisa passa por estas páginas resenhadas como um convite à reflexão sobre as peculiaridades da República, esta também o nome de uma coisa cara ao pensamento crítico, a pública.

Notas

1 Tese de doutoramento em Ciência Política, sob a orientação de Wanderley Guilherme dos Santos, defendida em junho de 1987 junto ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Depois, o trabalho teve duas edições em pouco mais de cinco anos: a primeira, pela editora paulista Vértice, em 1988, e a segunda pela editora Relume-Dumará, do Rio de Janeiro, em 1994.

2 Os artigos dos dois autores mencionados estão inseridos na importante coletânea organizada por DAGNINO, E. Os anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994. A estrutura da obra assenta-se a partir de quatro pontos que, a rigor, consubstanciariam as principais teses dos teóricos do populismo, agora em torno da história do tempo presente. Isso num momento em que a Sociologia uspiana estava prestes a ser uma espécie de coveiro da Era Vargas. Senão vejamos: populismo, corporativismo, movimentos sociais e tendências políticas contemporâneas. Talvez seja a primeira série de textos acadêmicos, saídos do II Simpósio Anual de Ciência Política, da UNICAMP, em que se usaria a expressão populismo neoliberal. Não seria desmedido observar que a mesma, à revelia de seus inventores, se transformaria numa notável ironia àqueles sábios sorbonistas que tanto haviam estudado os traidores da classe operária.

3 Seria o caso de destacar também uma coletânea de que a autora muito se valeu, organizada por MACHINNON, M. M.; PETRONE, M. A. Populismo e neopopulismo en América Latina. El problema de la cenicienta. Buenos Aires: Eudeba, 1998.

4 Para maior clareza sobre as preocupações de Daniel James e de John French, ver a excelente entrevista de ambos, publicada no Brasil com o título Pensar a América Latina, em FORTES, A. et alii. Na luta por direitos: estudos recentes em História Social do Trabalho. Campinas: Ed. da Unicamp, 1999, p. 181-210.

5 Ver CAPELATO, M. H. R. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no peronismo. Campinas: Papirus, 1998. O presente livro é resultado da tese de livre-docência da autora em História da América, defendida em dezembro de 1997, na Universidade de São Paulo.


Resenhista

Elio Chaves Flores – Professor da UFPB. Doutorando em História Social na UFF. E-mail: elioflores@uol.com.br


Referências desta Resenha

FERREIRA, Jorge (Org.). O Populismo e sua História: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Resenha de: FLORES, Elio Chaves. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 2, n. 1, p. 207-219, 2002. Acessar publicação original [DR]

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