O populismo e sua história – debate e crítica – FERREIRA (RBH)

FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história – debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 380p. Resenha de: BORGUES, Vavy Pacheco. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002.

A coletânea organizada por Jorge Ferreira, professor do Departamento de História da Universidade Federal fluminense, se inscreve a meu ver em uma das melhores vertentes da chamada “história política renovada”, trazendo preocupações conceituais como eixo de articulação dos artigos, conforme bem exprime seu título. Como os historiadores têm procurado mostrar, os conceitos, além de históricos (como tudo que se refere ao homem e sua cultura, isto é, tudo que é humano), quando usados em política ¾ eminentemente uma disputa ¾ nunca são neutros. Também as emoções, os sentimentos e instintos dos indivíduos e das “massas” são hoje, para muitos historiadores, uma dimensão fundamental da vida política; os analistas do séc. XIX dela muito se ocuparam, mas essa dimensão foi relegada pelos cientistas sociais brasileiros das últimas décadas. Ao começar seu texto por uma bela epígrafe de Rachel de Queiroz, Jorge Ferreira indica sua intenção de lembrar a importância dessa questão, embora isso só permaneça subjacente aos textos. Cita ele : “Não há povo amorfo. Não há massa bruta e indiferente. A massa é formada de homens e a natureza de todos os homens é a mesma: dela é a paixão, a gratidão, a cólera, o instinto de luta e de defesa.”

Os autores, em suas análises, fazem-nos dar profícuas voltas e mais voltas em torno do conceito ou categoria explicativa populismo, ao qual se referem também como “noção”, “palavra”, “expressão”, “imagem”, “sentido”… Exploram também aqueles que são vistos como os sujeitos políticos dessa história: os líderes e seus projetos, as “massas” ou as classes e suas relações. Na obra, o populismo surge absolutamente enredado em outros conceitos, como trabalhismo, getulismo, queremismo, sindicalismo ou peleguismo, autoritarismo, fascismo ou totalitarismo (como se fossem termos equivalentes), e ainda nacionalismo e estatismo. Esses são analisados em suas doutrinas e em suas práticas, configuradas estas em noções como “mistificação, manipulação e demagogia”.

São sete artigos, praticamente todos sobre a história brasileira, e a forma de analisá-la. Apenas o de Maria Helena Capelato se debruça sobre a questão no âmbito da América Latina, fazendo uma comparação do chamado fenômeno populista no México e na Argentina. Alguns, na trilha “arqueológica” da história do conceito de populismo, apresentam preocupações teórico-conceituais mais marcantes, sobretudo os de Ângela C. Gomes, Jorge Ferreira e Daniel A . Reis. O artigo de Fernando T. da Silva e Hélio Costa situa-se ainda nesse terreno de fortes preocupações teórico-metodológicas, mas analisando interpretações historiográficas no campo da história social do trabalho. Os outros são mais reconstituições de partes da história política do período denominado populista, cujos inícios, a partir dos anos 1930 (“tempo das origens”), se solidificam no que é apresentado como um sistema político de 1945 a 1964 (a “república populista”). O artigo de Lucília de A . Neves (no campo das idéias políticas) explicita as propostas do trabalhismo, no que ela chama de “um projeto para o Brasil” de 1945 a 1964, entrelaçadas ao nacionalismo e ao desenvolvimentismo. Eliana Pessanha e Regina Morel comparam experiências de sindicalismo no Rio de Janeiro, que consideram “expressivas da experiência sindical no período considerado”: os operários navais e da indústria siderúrgica.

Como a maioria das coletâneas ou coleções, o resultado é desigual na organização do pensamento e na forma de exposição, da clareza, do estilo, revelando por vezes maior reflexão própria, outras vezes mais resumos e crítica historiográfica, sempre interessantes. Inicia com artigos agradavelmente escritos, como os de Ângela C. Gomes e Jorge Ferreira, com imagens simples e eficientes, e termina com um fecho de ouro, no sentido da narração, que é o artigo de Daniel A. Reis, dotado de uma fina ironia e um estilo envolvente. Há algumas repetições de idéias e de análises de autores que nos dão impressão de vai-e-vem; isso se nota mais no conjunto dos textos, mas por vezes em um mesmo texto.

De uma forma geral, o que ressalta da obra é mais uma demonstração cabal e irrefutável de que os conceitos que usamos para explicar a história política estão sempre enredados nos laços permanentes e inextricáveis entre o momento histórico e sua análise, entre a história e a política1. É preciso estar constantemente atento a esses laços, pois senão, por motivos múltiplos e diversos, as intenções não desvendadas da política levam o analista a considerar o conceito como um fato que se passou ou um tema que mereça um estudo, sem maiores questionamentos2. Não é possível, enquanto cientistas sociais, pensarmos no populismo só na vida política ou só na academia: o imbricamento entre os dois ( visto na coletânea como um “deslizamento”) resulta da luta política mais ampla, como bem se percebe pelos artigos que se detêm no panorama historiográfico, ao abordarem o conceito e seu uso pelos mais diversos agentes e/ou analistas políticos.

Do conjunto da obra depreendem-se claramente os mecanismos pelos quais as explicações sociológicas e da ciência política resultaram de uma luta política mais ampla3. Já no início a Introdução de Jorge Ferreira mostra a elasticidade da categoria até torná-la o que chamei de “categoria-monstro”, quando fiz uma retomada do surgimento do conceito de tenentismo e seus diversos empregos, por diferentes oponentes políticos, em diversos momentos da política brasileira4. Assim como esse, o populismo teve seu sinal invertido, mas em sentido contrário: quando surgiu o uso do termo populista no vocabulário da luta política, este aparecia quase como um mero adjetivo, ligado a “popular”. Getúlio Vargas e João Goulart eram chamados de populistas, e isto não tinha, para Jorge Ferreira, um sentido ofensivo. Depois, tornou-se um insulto para a direita liberal. O tenentismo começou como uma tentativa de descrédito político, depois foi legitimado e positivamente valorizado por Virgínio de Santa Rosa e outros da época, como a “revolução das classes-médias”5.

Ambos os conceitos tiveram também até hoje um uso eminentemente plástico: pelo fato de querer “pôr tudo no mesmo saco” (imagem de Jorge Ferreira) e por querer explicar tudo, acaba-se não explicando realmente nada. Como explicita o mesmo autor, “personagens com diferentes tradições políticas foram reduzidos a um denominador comum: líderes trabalhistas como Getúlio Vargas, João Goulart, Leonel Brizola e mesmo Miguel Arraes perfilaram-se ao lado de políticos regionais paulistas, como Adhemar de Barros e Jânio Quadros; de um general anódino, como Eurico Dutra; de um udenista golpista, como Carlos Lacerda; e de uma figura ainda mal estudada, como Juscelino Kubitschek. Após 1964, o próprio general-presidente João Figueiredo igualmente entrou no rol, segundo algumas análises. (…) projetos políticos que fincaram tradições políticas, e que ainda hoje se manifestam na sociedade brasileira, como o trabalhismo petebista e o liberalismo udenista, dissolvem-se e confundem-se em um mesmo rótulo: tratar-se-ia de ‘populismo’ ” 6.

Esse populismo, chamado pelos autores de “gato de sete vidas” ou “herança maldita” ¾ pois foi e por vezes ainda é visto como uma categoria explicativa de um sistema político e social brasileiro ¾ tem suas apontadas características explicitadas em muitos dos artigos. São dissecadas com propriedade e clareza as análises clássicas sobre o populismo, em especial as dos anos 1960, de Francisco Weffort e Octávio Ianni, mas também os primeiros trabalhos da década de 1950, do Grupo de Itatiaia e depois do ISEB, que estão nas origens das interpretações posteriores.

Algumas práticas historiográficas ¾ hoje já condenadas ¾ estavam presentes em nossa historiografia naquele momento, sendo de certa forma um pano de fundo que propiciava as interpretações analisadas na obra. As duas principais me parecem a linearidade do chamado “processo histórico” e o papel atribuído ao Estado na história brasileira. A primeira percebe-se numa recorrência da interpretação da nossa vida política: até hoje muitos consideram que 1937 está necessariamente contido em 1930, ou em outras palavras, o golpe de Estado e o autoritarismo eram as únicas possibilidades ao longo do primeiro período getulista, e assim a dita Revolução de 30 teria levado necessariamente ao golpe de Estado e à ditadura do Estado Novo; da mesma forma, no conjunto das interpretações criticadas pelos diversos autores, 1954 ¾ ano da morte de Getúlio ¾ contém em germe, inelutavelmente, o golpe político-militar de 1964, apontado como momento do colapso do populismo, tanto como sistema como prática política (esses dois sentidos por vezes parecem se confundir, na obra )7. Essas relações apresentadas como necessárias e inelutáveis são combatidas por historiadores que, além de recusar modelos de desenvolvimentos de outros tempos e espaços, estão atentos às possibilidades e potencialidades da história, que nunca é uma estrada de mão única, linear e com ponto de chegada definido, predeterminado. O segundo tipo de prática tem a ver com a definição dos sujeitos em história. No “desprezo” da história das grandes figuras do início do século XX, passamos, décadas atrás, a ver o Estado como o demiurgo de nossa história; isso se deu entre os historiadores ainda devido a essa importância atribuída às análises das ciências sociais. A forte presença do Estado na organização da vida política brasileira anulava os outros possíveis sujeitos.

Na verdade, a grande questão que estrutura toda a coletânea é: qual é o papel dos trabalhadores enquanto sujeitos da história brasileira? Os autores internacionais e nacionais que estudaram a história social do trabalho em geral e a brasileira em particular são bastante bem utilizados por alguns textos. Há uma crítica aos trabalhos que tratam de populismo por verem em geral os trabalhadores seja como massa manipulada, seja como “atrasados” em relação a outros desenvolvimentos históricos. Isso aparece centralizar as reflexões sobretudo de Jorge Ferreira, Fernando T. da Silva e Hélio Costa. Os dois últimos lembram o questionamento levantado pelo brasilianista John French, sobre a “mistificação” dos trabalhadores que apresenta como “a grande pergunta, nunca respondida”: “por que os operários sucumbiram aos agrados dos líderes populistas, aceitando a dominação, e, ao mesmo tempo, se dispuseram a confiar em traidores?” Decorre dessa questão o debate sobre os reais avanços da Consolidação Geral do Trabalho (CLT), hoje em dia ameaçada.

Só se pode receber bem estudos e pesquisas sobre a história política do período, ainda muito pouco examinada. Além disso, concordo com Francisco Carlos T. da Silva, autor da orelha da obra, que Jorge Ferreira, ao reunir autores significativos no tema, fez um trabalho “extremamente louvável”, que acaba por constituir uma “garantia contra o pensamento único”. Pois apesar do debate e da crítica a que os diversos artigos nos introduzem e reforçam, o conceito de populismo continua vivo, presente na mídia e em nosso cotidiano, como se referindo a um fato político-social indubitável, tanto no Brasil quanto na América Latina (e por vezes, em alguns breves momentos me pareceu que alguns dos próprios autores do livro escorregam nessa aceitação, legitimando o populismo como um “fenômeno histórico”). O que mostra que um conceito, uma vez consagrado pelo senso comum, é de difícil extirpação8.

Como diz Ângela C. Gomes, “escrever sobre o populismo no Brasil será sempre um risco”. Hoje em dia pode-se perceber que, na boca e na pena da direita conservadora, a pecha de “populista” substituiu a pecha de “comunista”, desde os anos vinte do século passado empregado como o maior insulto, ou seja, uma forte “arma” política. Aliás, Jorge Ferreira destacou a origem do termo populista enquanto insulto desde os anos 1960, mas também hoje em dia, na boca, por exemplo, de nosso presidente atual, Fernando Henrique Cardoso. Percebe-se na luta política mais ampla que, por trás do uso da qualificação de populista, há a tentativa (sempre renovada e proveniente do medo, e por que não dizer, mesquinhez) de se impedir uma decisiva participação de sujeitos políticos que possam mudar os rumos de nossa história, marcada por terríveis indicadores sociais, provenientes em última análise da nossa injusta e desumana distribuição de renda.

Penso que a principal contribuição da coletânea reside em repor a historicidade do conceito de populismo ( e de alguns dos a ele conexos). A tarefa não é empreendida explicitamente por cada texto, mas bem sucedida em seu conjunto. Para ilustrar tal resultado, penso ser interessante relatar um episódio ocorrido durante minha defesa de tese de doutorado, em que Francisco Weffort era membro da banca (trabalho já citado sobre a retomada do conceito de tenentismo). Ele terminou sua simpática argüição pela pergunta seguinte: “mas, afinal, o que foi o tenentismo?” Eu (e os outros membros, assim como parte do público, que compreenderam bem a intenção da tese ) percebemos que, enquanto cientista social e diversamente de Octávio Ianni, que orientara minha tese, Weffort não conseguia compreender o trabalho de um historiador que, numa linha de raciocínio de crítica ao conceito, procurara recuperar sua historicidade9. Não acredito, porém, que um leitor que faça atentamente a leitura desta coletânea, ao terminar pergunte, de forma semelhante à de Weffort: “mas, afinal, o que foi o populismo” ?

Notas

1 Ver BORGES, Vavy Pacheco. “História e Política: laços permanentes”. In Revista Brasileira de História: Política e Cultura. São Paulo: ANPUH/Marco Zero/SCT/CNpq/Finep, vol. 12, Nº.23/24, pp.7-18, set. 91-ago.92.

2 Esse tipo de preocupação surge entre nós historiadores brasileiros em torno do tema da “Revolução de Trinta”, a partir da década de 1970. No caso, ver sobretudo VESENTINI, Carlos A. A Teia do Fato: uma proposta de estudo sobre a memória histórica. São Paulo: HUCITEC/HISTÓRIA SOCIAL, USP, 1997.

3 A historicidade dos conceitos tem entre nós, no alemão Reinhardt Kosseleck e no francês Pierre Rosanvallon, alguns de seus expoentes. Os assuntos em questão têm sido debatidos nas apresentações promovidas nos encontros da ANPUH pelos grupos de trabalho de História Política e de Mundo do Trabalho.

4 Ver BORGES, Vavy Pacheco. Tenentismo e Revolução Brasileira.. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992.

5 Essa concepção, embora questionada, permanece intocada em muitíssimos trabalhos. Tome-se um exemplo ao acaso, entre inúmeros exemplos recentes de obras de divulgação: a obra Viagem pela história do Brasil, de Jorge Caldeira, publicada em 1997 pela Companhia das Letras; essa apresenta o tenentismo como a expressão dos anseios das classes médias; apresenta também um capítulo intitulado: “O período populista” sem maiores explicitações….

6 Ver pp.10-11 da coletânea.

7 É interessante lembrar que, durante a presidência de Fernando Collor, uma caricatura na grande imprensa paulistana mostrava Collor sentado em um trono presidencial, tendo ao lado um bobo da corte, que carregava um livro intitulado ” O colapso do populismo”.

8 No momento em que escrevo a resenha, dois exemplos: do ponto de vista da academia, a recente versão do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro ¾ pós-1930, produzido pelo CPDOC, traz um item “Populismo” com quase tudo o que é criticado nesta coletânea; do ponto de vista da política, o populismo na mídia tem aparecido como o culpado, em boa parte, pelos insucessos políticos atuais da Argentina (dezembro 2001- janeiro 2002.)

9 Eu respondi a Weffort que a criação do termo, datada do primeiro semestre do ano de 1931, foi resultado de um enorme medo das elites políticas paulistas, depois difundido por essas nas classes médias urbanas, gerado pela presença de uma forma de militarismo na política, que poderia trazer, temiam todos, uma enorme mudança social. Porém, para as elites, antes e depois desse momento histórico, quando os militares fazem o que elas querem, eles não parecem despertar medo algum.

Vavy Pacheco Borges – Universidade Estadual de Campinas.

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