O poder e a peste | Lira Neto
A produção editorial acerca da história da saúde pública no Brasil tem sido bastante expressiva nas duas últimas décadas. O tema vem sendo visitado freqüentemente por cientistas sociais e historiadores, psicólogos e médicos, preocupados tanto com questões mais localizadas, como também o surgimento de amplos debates sobre o papel do Estado nas políticas públicas de saúde. Vale ressaltar que há muitas publicações acerca de epidemias de febre amarela, cólera e varíola no século XIX, e as ações de médicos, farmacêuticos e autoridades governamentais, já no século XX, todos empenhados em combatê-las (Chaloub, 1996; Hochman, 1998; Beltrão, 1999; Fernandes, 1999).
O livro do jornalista Lira Neto é mais uma excelente iniciativa em ambas as direções. Conta a história do farmacêutico baiano Rodolfo Marcos Teófilo (1853-1932), e sua trajetória junto à população da cidade de Fortaleza, assolada por sucessivas epidemias de cólera e varíola, ao longo da segunda metade do século XIX.
Feliz combinação de biografia e narrativa histórico-jornalística, com alguns toques de um agradável estilo ficcional, este trabalho é fruto de três anos de pesquisa do autor, a partir de inusitada descoberta. Em 1994, em decorrência de obras públicas de saneamento no bairro de Jacareacanga, Fortaleza, operários que ali trabalhavam encontraram centenas de ossadas humanas, dispostas em vala comum e cova rasa. As imagens veiculadas em jornal faziam lembrar um típico campo de concentração nazista, e o fato permaneceu durante algum tempo como um enigma para a imprensa e a sociedade local. Depois de inúmeras conjecturas as mais absurdas, chegou-se enfim à verdadeira explicação. Tratava-se de uma espécie de “cemitério clandestino”. Na verdade, foi a solução mais prática encontrada por coveiros em fins do século XIX, para dar conta de milhares de corpos, das dezenas de mortos, a cada dia naquela cidade. Fortaleza já vinha de um histórico de sucessivas epidemias de cólera e febre amarela, tendo ambas as doenças produzido efeitos devastadores na cidade. Em fins do século XIX, foi a doença mais tarde conhecida como varíola e causada pelo agente transmissor Culex, a ‘peste’ que arrasaria boa parte da população cearense, pois, em vez de se restringir à capital, também se espalharia por municípios vizinhos, como Pacatuba.
Elucidado o mistério que cercou a descoberta daquela montanha de ossos humanos, Lira Neto empreendeu uma pesquisa extensa, que classificou como ‘arqueológica’. O objetivo principal foi examinar a trajetória do farmacêutico Rodolfo Teófilo, sua profissão, sua visão de mundo e sua contribuição para a história do Ceará. O livro é dividido em 23 capítulos, sendo que metade dos quais versa sobre importantes momentos da história política e das condições sanitárias do Ceará, assolado em todo século XIX por epidemias de cólera, varíola e febre amarela. A edição está especialmente enriquecida pelas muitas notas explicativas dispostas nas laterais das páginas, além de inúmeras ilustrações iconográficas.
A então província cearense passou por verdadeiras situações-limite, como, por exemplo, o dia 28 de novembro de 1868, quando morreram nada menos que mil pessoas na capital, vítimas da varíola, que não poupara nem mesmo a mulher do então presidente da província. A data ficou conhecida como o Dia dos Mil Mortos. Os cadáveres eram empilhados sem qualquer medida de higiene, e depois transportados em carroças por coveiros completamente embriagados de cachaça. As ingestões maciças da bebida eram uma forma de evitar o mal-estar causado pelo terrível odor dos corpos tomados pelas pústulas.
Passados quase quarenta anos, a cidade mergulharia em mais um caos epidemiológico. Dessa vez, era a varíola, o mal que no mesmo ano de 1905 acometia a capital federal, vitimando milhares e alastrando-se vorazmente pela população. O redimensionamento dos espaços urbanos, o crescimento desordenado e as péssimas condições de higiene e saneamento das cidades foram fatores que se conjugavam fastidiosamente, culminando em quadros caóticos de calamidade pública.
A dinâmica que envolveu todas as ações de médicos, cientistas e farmacêuticos no combate aos surtos epidêmicos representou um marco na história da ciência no Brasil. Estudos historiográficos recentes já permitem perceber, em fins do século XIX, o desenvolvimento de novas concepções acerca das formas de transmissão, profilaxia e tratamento vacínico (Benchimol, 2000). Embora não seja possível estabelecer rupturas definitivas, o saber científico começou a se dissociar dos pressupostos positivistas, quando os médicos começaram a desenvolver pesquisas individuais em torno dos agentes causadores de doenças, e sobretudo buscaram encontrar fórmulas que pudessem levar à produção de antídotos.
Rodolfo Teófilo, farmacêutico de formação, seria um típico higienista. A descrição de Jaime Benchimol (op. cit., p. 14) para os médicos do Rio de Janeiro no século XIX lhe cairia muito bem: aquele “cuja prática tem a ver com a prevenção ou o combate da doença enquanto fenômeno coletivo, e cuja reflexão está voltada para as causas, cósmicas e sócio-históricas, das epidemias e os obstáculos que impedem a neutralização dessas causas”. Também faria as vezes de clínico, mas a maior parte de suas ações consistia nas atividades de profilaxia. Assim, foram grandes os esforços empreendidos por Rodolfo Teófilo para conter a epidemia de varíola em sua província. As ações compreendiam desde a compra de animais para o processo de produção das vacinas a viagens a cavalo pela periferia de Fortaleza, para fazer as aplicações, passando pelo emprego de um carismático poder de persuasão. Com o objetivo de convencer os moradores pobres das favelas de que eles deveriam permitir-se vacinar, o farmacêutico, imbuído de um espírito criativo, inventou a figura de são Jenner, na verdade, Edward Jenner, que em fins do século XVIII descobriu a vacina contra a varíola. Fundador da Liga Cearense contra a Varíola, Teófilo distribuiu suas vacinas pelo interior do estado, chegando a gastar o próprio dinheiro com a produção dos antídotos. Sofreu forte reação da elite local, incomodada com a ascensão do farmacêutico. Este incômodo refletiu-se diretamente na imprensa local, que começou a publicar verdadeiros ataques à vacina produzida por ele, sugerindo que a mesma teria causado a morte de várias crianças na capital. A resposta não tardou a chegar. Em 1907, Teófilo recebia a aprovação da vacina pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC), então denominado Instituto de Patologia Experimental de Manguinhos, no Rio de Janeiro. Debelada a varíola, o farmacêutico ainda sofreria retaliações do governo, não obtendo apoio, em momento algum, das autoridades municipais ou provinciais.
A iniciativa de Lira Neto é de grande valia para todos os pesquisadores preocupados com questões pertinentes ao universo da saúde pública no Brasil, e seu maior mérito é justamente o de lançar luz sobre as estratégias de erradicação, lutas e tensões de poder, presentes no cenário da capital cearense em fins do século XIX. Cabem aqui algumas observações quanto à maneira com que Lira Neto encaminhou sua narrativa ao se empenhar no objetivo de biografar Rodolfo Teófilo.
Figura da ilustre elite provincial do Ceará, Teófilo foi um homem preocupado com a pobreza e a degradação humana que atingiam as populações pobres na capital e nos municípios vizinhos. São igualmente louváveis seus esforços em conscientizar essas populações de que elas deveriam ser vacinadas. Em última análise, a caracterização que o autor confere ao ‘higienista’ Rodolfo Téofilo, qual seja, a de um lutador incansável pelo bem-estar de seu povo, parece aproximar-se de uma visão messiânica. Penso que tal visão deve ser relativizada, face às históricas condições efetivas de se empreender uma campanha de erradicação, se considerarmos todas as dificuldades de ordem socioeconômicas que o farmacêutico teve que enfrentar.
Outra conotação que o autor tributa a Teófilo é a de um intelectual avant-garde, despido das idéias evolucionistas herdadas do pensamento spenceriano. Mas durante o desenvolvimento da leitura, pode-se perceber que o “esclarecimento” terminava no ceticismo de Téofilo quanto às reais possibilidades de redenção das populações pobres da cidade. É impossível, portanto, dissociar o higienista de seu tempo, implicando-se aí todas as conotações imagináveis que o clássico positivismo conferia às categorias científicas profissionais na segunda metade do século XIX.
Exceto o fascínio que a vida de Rodolfo Teófilo exerceu sobre Lira Neto, esfumaçando um pouco seu perfil político e intelectual, a narrativa leve, e ao mesmo tempo densa, cobre um capítulo importante e desconhecido da história da saúde pública no Ceará. Sem adquirir um tom exagerado de efeméride, O poder e a peste faz justiça a um personagem notável na história das lutas pela erradicação das doenças no Brasil.
Referências
BELTRÃO, Jane Felipe 1999 Cólera, o flagelo da Belém do Grão-Pará. Tese de doutoramento, Campinas, Unicamp.
BENCHIMOL, Jaime Larry 2000 Dos micróbios aos mosquitos: febre amarela e a revolução pasteuriana no Brasil. Rio de Janeiro, Editora UFRJ/Fiocruz.
CHALOUB, Sidney 1996 Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo, Companhia das Letras.
FERNANDES, Tania M. 1999 Vacina antivariólica: ciência, técnicas e poder dos homens (1808-1920). Rio de Janeiro, Editora Fiocruz.
HOCHMAN, Gilberto 1998 A era do saneamento: as bases da política de saúde no Brasil. São Paulo, Hucitec/Anpocs.
Resenhista
Nathacha Regazzini Bianchi Reis – Graduada em história. E-mail: nathacha_@hotmail.com
Referências desta Resenha
NETO, Lira. O poder e a peste. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1999. Resenha de: REIS, Nathacha Regazzini Bianchi. Rodolfo Teófilo e a luta contra a varíola no Ceará, 1905. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.8, n.1, mar./jun. 2001. Acessar publicação original [DR]