No ano de 2006, a rede televisa BBC de Londres produziu uma série de documentários sobre arte com a coordenação do professor de História da Arte da Universidade de Columbia em Nova York: Simon Schama. Envolvendo dramatizações e uma proposta de atingir o grande público, a série trazia momentos e obras de oito artistas modernos e contemporâneos: Caravaggio; Bernini; Rembrandt; David; Turner; Van Gogh; Picasso e Rothko.
O livro O poder da Arte, ora resenhado, surge como fruto direto do sucesso destes documentários. O próprio autor esclarece que no texto foi possível aprofundar e apresentar questionamentos que não cabiam no documentário, pois a linguagem televisa segue seus próprios cânones, que diferem da escrita, a começar pelo tempo que um programa ocupa numa grade de televisão, o que faz com que seja sempre necessário estabelecer cortes e omitir passagens no tema a ser documentado. O livro toma da sua versão televisiva, o ritmo e a cadência de personagens que aparecem nos oito programas. Alguns acréscimos são realizados nas análises, como a discussão sobre a Cabeça de Medusa, tela montada em madeira de autoria de Caravaggio datada de 1598-1599, que ilustra a capa da edição brasileira.
O esmero da Companhia das Letras na edição brasileira, com capa dura, imagens bem reproduzidas e papel neo couché matte, demonstra uma aposta no apelo popular que a obra tem, pegando carona no sucesso da série e de sua edição inglesa. E é nesse ponto que reside a maior característica do texto do Simon Schama, preservado na tradução brasileira: a fluência fácil e acessível da escrita. O objetivo principal do livro consiste na necessidade — porque não dizer angústia? — que Simon Schama tem de tornar as análises históricas e estéticas acessíveis a uma gama maior de leitores do que os sóbrios acadêmicos.
Assim, ora conversando com o leitor, ora estabelecendo um diálogo que foge dos cânones acadêmicos, ora narrando os acontecimentos históricos, Simon Schama atravessa a vida destes oito pintores estabelecendo conexões entre a temática representada na pintura — no caso de Bernini, em suas esculturas — e o contexto histórico em que viviam os seus autores, enfatizando o momento pessoal que o artista passava no período de elaboração da obra de arte. As análises se equivalem entre sim, algumas com maiores acertos, outras nem tanto. Irá se destacar aos olhos do leitor aqueles capítulos que proporcionem uma auto-idenfiticação: para alguns a vida desregrada de Caravaggio, para outros, o retorno triunfal de Bernini, ou ainda, a necessidade de paz buscada por Van Gogh.
Mas onde reside o trunfo de seu livro, também moram os seus problemas. As análises são dotadas de um subjetivismo que pode incomodar. A imputação de pensamentos e sentimentos dos artistas nas obras destacadas, quase uma abordagem psicológica das manifestações artísticas, por vezes soa muito mais como o sentimento do próprio Simon Schama e não, necessariamente, como a subjetividade do artista. Neste caso, nem sempre a tentativa de colocar a obra e o mestre no divã nos esclarece os significados intrínsecos à imagem. Corre-se o risco, em algumas partes, do fluxo inverter-se, e o psicanalista passar a ser analisado pela obra-autor. No capítulo sobre Van Gogh, incomoda a escolha deliberada do autor, em omitir qualquer indício de homossexualidade de Vincent com Gauguin, dado que crucial para a compreensão da obra do artista dentro da própria proposta do Simon Schama.
É perceptível que essas escolhas constituem um risco pelo qual o autor trilha conscientemente. E é nesse ponto que reside a dificuldade dos acadêmicos de aceitarem uma obra deste porte: muito mais do que a tentativa de tornar a linguagem clara e acessível, o que perturba é a tamanha permissividade para a subjetividade. E daí advém o medo de que a análise crítica e a própria história da arte se tornem meros pontos de vistas, longe dos cânones da ciência. São receios extremamente plausíveis, pois as ciências humanas, definidas como aquelas que se ocupam com as ações e produtos humanos, vivem neste limiar entre a objetividade e a subjetividade. A primeira necessária para que se leve a alcunha ciência; a segunda, simplesmente inescapável de qualquer análise.
Interessante perceber que essa subjetividade de análise muito se aproxima de outro grande historiador da arte que, curiosamente, não está citado em sua bibliografia, mas que pode ter servido de fonte indireta para a escrita de Simon Schama: o autor inglês Ernest Gombrich, especialmente no seu compêndio sobre arte intitulado A História da Arte. O autor se mune de algumas impressões subjetivas para tornar o seu texto mais atrativo, como pode-se ler numa passagem em que analisa o quadro As meninas de Diego Velázquez:
(…) eu gostaria de imaginar que Velázquez fixou um momento real de tempo muito antes da invenção da câmera fotográfica. Talvez a princesa tenha sido trazida a presença de seus régios pais a fim de aliviar o tédio da longa pose para o quadro, e o Rei ou a Rainha comentassem com Velázquez que ali estava um tema digno de seu pincel. As palavras proferidas pelo soberano são sempre tratadas como uma ordem e, assim, é provável que devamos essa obra-prima a um desejo passageiro que somente Velázquez seria capaz de converter em realidade. (GOMBRICH, 1999: 408)
Aos olhos dos programas de pós-graduação, o livro possui pouca serventia, talvez apenas para aqueles trabalhos que versem especificamente sobre um dos autores analisados. Todavia, isto não inabilita o trabalho de Simon Schama de ser utilizados nos meios acadêmicos, especialmente, nos cursos de graduação. Suas análises artísticas podem servir como pontes para estabelecer uma relação entre as obras de arte e seu contexto histórico, indicando aos alunos uma possibilidade de interdisciplinaridade dentro da própria historiografia. Desta forma compreende-se que a História econômica existe, porém se imbrica com a História social, que se mescla com a arte, que se conecta com a política, e daí por diante. Cada vez mais, torna-se urgente descompactar a História para que os aspirantes a historiadores possam aprender a contextualizar o fato ou o documento, sem perder de vistas as ferramentas metodológicas específicas que regem os ramos historiográficos.
Para Simon Schama, a arte é paixão arrebatadora e devemos nos deixar levar por ela. Por vezes, é até mesmo difícil evitar esse arrebatamento. Simon Schama alerta que muitas vezes a obra deve ser vista pessoalmente para que ela expresse todo o seu poder, e, mesmo assim, como no caso da Guernica de Pablo Picasso, ela pode ser tão poderosa, tão magnética, que é necessário escondê-la dos olhos das câmeras televisas para que sua mensagem não subverta a ideia da necessidade de uma guerra, como aconteceu em 2003, no pronunciamento do ex-secretário de Estado americano, Colin Powell, sobre a urgência de uma intervenção bélica no Iraque.
É isso o que Simon Schama quer reavivar aos olhos dos leitores: o poder magnético que as obras de artes têm sobre os homens. Um poder que, na maioria dos casos, se dilui nas análises acadêmicas e que deve ser resgatada principalmente nas formações de licenciaturas de Arte, História e História da Arte. Pois para que a arte continue e seja preservada é fundamental que ultrapasse os muros da academia tornando-a acessível—e sensível!—a todos, rejeitando a alcunha de peça de exibição inerte e sem sentido.
Referência
GOMBRICH, Ernest. A História da arte. 16. ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 1999 [1950].
Resenhista
André Cabral Honor – Doutorando em História.
Referências desta Resenha
SCHAMA, Simon. O poder da arte. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Resenha de: HONOR, André Cabral. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v.5, n. 10, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]
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