O percurso do reconhecimento – RICOEUR (FU)
RICOEUR Paul. O percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006. Resenha de: KUSSLER, Leonardo Marques. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.2, p.223-225, mai./ago., 2009.
Em um mundo de diversas discussões, de inúmeras teorias filosóficas, de conceitos, Ricoeur destaca a importância que há em discutir a temática do reconhecimento tal como se discute a do conhecimento. Este foi o impulso final para que Ricoeur compusesse esta belíssima obra: O percurso do reconhecimento. O livro se constitui em um compêndio de conferências proferidas pelo autor, em Viena e em Friburgo, as quais foram cuidadosamente trabalhadas posteriormente. A proposta inicial do autor surge provocando surpresa e perplexidade por não se ter visto um livro filosófico que tratasse diretamente do assunto reconhecimento, como tratam, em inúmeros livros, as muitas teorias e discussões do tema conhecimento. Contudo, a obra lançada anteriormente, A memória, a história, o esquecimento (Ricoeur, 2007), já tratava do tema do reconhecimento de um modo mais abrangente, na última parte do livro ao abordar o tema do o perdão.
O percurso do reconhecimento divide-se em três grandes estudos, para seguir a lógica do autor adotada em suas obras. Primeiramente, o estudo parte de uma análise linguística e lexicográfica da palavra reconhecimento, com base em dois grandes dicionários franceses – o Dictionaire de la langue française, de 1859, e o Grand Robert de la langue française, de 1985 (in Ricoeur, 2006 p. 15 e ss.). Esse primeiro estudo elucida a ideia de reconhecimento enquanto identificação, contando com análises de Descartes e Kant. Em instância primária, o verbo reconhecer comporta o eu que reconhece, enquanto está ativo. Tal identificação parte do identificar-se algo em geral para, posteriormente, chegar a identificar-se alguém. No segundo grande estudo, surge o agente (agency, diz Ricoeur) que revela a capacidade do homem enquanto ser capaz da ação de reconhecer. Nesse ponto, o autor liga essa capacidade à noção de narratividade daquele que pode reconhecer, à qual liga também as noções de memória e de promessa – mais bem explicitadas na obra A memória, a história, o esquecimento. Ricoeur fala do agir e do agente no mundo grego, aos quais relaciona o reconhecimento de si por outra pessoa que não o si mesmo. Nesta ocasião, existe uma bela, porém pequena, análise do reconhecimento de Ulisses na grande obra Odisséia, de Homero (in Ricoeur, 2006, p.90-91), nos dois momentos: o primeiro, em que Ulisses é reconhecido, e o segundo, o momento em que se faz reconhecer. Ricoeur também analisa as distinções de Aristóteles, no início da obra Ética a Nicômaco (in Ricoeur, 2006, p.97). A narrativa é trabalhada nesse segundo estudo com mais clareza, em que se marca o poder dizer, atrelando-o ao poder fazer e ao poder narrar-se – e também o poder ouvir-se, pois sempre se pressupõe o ser ouvido ao narrar-se. Estes temas são ligados à noção jurídica de memória enquanto promessa – a visão do falar de testemunhas, por exemplo, ou simplesmente a da promessa de um indivíduo ao outro, um simples pacto. Posteriormente, ainda no segundo estudo, é levantada pelo autor a ideia de esquecimento dos dados memoriais, da lembrança – a famosa anamnésis grega –, temas desenvolvidos mormente em sua obra, a qual trata diretamente do esquecimento.
No terceiro grande estudo, o autor procura mostrar a relação do eu que reconhece ou se faz reconhecer com o tema do reconhecimento mútuo. Nele são discutidas as teorias de Hobbes, por exemplo, em sua temática da organização social que, indiretamente, parece relacionar-se com o reconhecimento de si, pois se trata, como explica Ricoeur, no estado de natureza, de todos contra todos, de uma busca de reconhecimento de cada indivíduo pelo outro. Nesse estudo, também é reservado um grande espaço para as análises de Hegel sobre o reconhecimento. Existe uma boa relação, nos escritos hegelianos da época do livro Fenomenologia do espírito (in Ricoeur, 2006, p.178), por exemplo, entre servo e senhor, que, explica, na mesma linha, paralela ao reconhecimento de cada indivíduo em Hobbes, de forma diferente, a relação dialógica, por assim dizer, do servo com o senhor – também assinalada por Ricoeur como a luta de classes sociais e econômicas, embasadas em Thévonot e Boltanski (in Ricoeur, 2006, p.237-238). Vale ressaltar que, nessa relação, como se sabe, um deles se faz reconhecer, e o outro se submete a sua posição por não ter se arriscado tanto quanto o outro; oprimido, portanto, e tem seu reconhecimento comprometido. Partindo desse reconhecimento em Hegel, no período de Iena, Ricoeur relaciona o reconhecimento com o sentimento de amor, por exemplo, nessa temática de reconhecimento mútuo, em que se busca a reciprocidade, a alteridade nesse reconhecer. Nesse terceiro estudo, trabalha-se, junto à temática do amor propriamente dita, o conceito de agápe na tentativa de reconciliação, de mutualização desse reconhecimento. Também se discute o tema da relação de equidade ou equivalência no plano jurídico que, de certa forma, trata de uma igualdade, de uma mutualidade, de uma respeitabilidade. Nessa tentativa de se mutualizar o reconhecimento é importante ressaltar o papel da discussão do desconhecimento, caro à Ricoeur, pois mostra a dificuldade de se reconhecerem mutuamente os indivíduos, sem que ninguém seja desconhecido, esquecido, transpassado. A parte final do livro reserva a temática de dom, entendido como a possibilidade de se reconhecer alguém e trocar dons. Com isso, surge a ideia de gratidão, trabalhada de acordo com a tendência de retribuir o reconhecimento que se recebe, reconhecendo de volta o outro indivíduo. Essa mutualidade, equidade, respeitabilidade, alteridade são possíveis em um dito estado de paz, diz Ricoeur. Para o pensador francês, é somente esse estado de paz que pode, de fato, possibilitar essa troca de reconhecimentos enquanto dons, que têm sua expressão mais forte na troca sem compromisso, ou seja, no doar-se sem esperar o reconhecimento de gratidão de volta – algo um tanto cristão, como bem aponta o autor. Ricoeur também desenvolve, em parte, as teses de Lévinas (in Ricoeur, 2006, p.74 e ss.) sobre o reconhecimento do outro, que retratam a dissimetria entre o eu e o outro para um reconhecimento recíproco, de uma ética primordial que assegure esse tratamento mútuo.
Por fim, é de suma importância ressaltar que, por se tratar de um livro recente, e uma das últimas obras de Ricoeur, alguns temas estão aí indexados com pressuposições de leituras anteriores, algo mais refinado, por assim dizer, posto que o livro traz temas de algumas de suas obras anteriores. A obra apresenta-se, portanto, como uma síntese de determinadas teses, compactadas nesse belo volume. Entretanto, isso não reduz a importância, a novidade e o compromisso do autor ao trabalhar um tema de especulação constante como é o reconhecimento que, como ele mesmo diz em sua análise, não foi tomado com a devida seriedade até o presente momento. A leitura do livro é altamente válida, uma vez que se mostra como uma tendência forte na atualidade e, por ser um livro composto sistematicamente por Paul Ricoeur, prima pela qualidade das análises desenvolvidas, resultando em um ótimo referencial teórico nesse âmbito pouco discutido.
Referências
RICOEUR, Paul. 2007. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, Editora da UNICAMP, 535p.
Leonardo Marques Kussler – Unisinos, São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: leonardo.kussler@gmail.com
[DR]