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O pequeno x: da biografia à história – LORIGA (RBH)

LORIGA, Sabina. O pequeno x: da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. 231p. Resenha de: ARIENTI, Douglas Pavoni. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.33, no.66, JUL./DEZ. 2013.

Em obra publicada na França sob o título de Le Petit x: de la biographie à l’histoire, que foi recentemente traduzida e publicada no Brasil pela Editora Autêntica, integrando a coleção “História e historiografia”, sob o título de O Pequeno x: da biografia à história, a historiadora e professora da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), de Paris, Sabina Loriga revisita a historiografia do século XIX e nos brinda com um trabalho que discute o espaço destinado ao indivíduo no Século da História. Retomando a discussão sobre biografia, já trabalhada no capítulo “A biografia como problema”, publicado no livro organizado por Jacques Revel e traduzido no Brasil como Jogos de escala, a autora se aprofunda e nos oferece uma análise acerca da atualidade de obras soterradas em nome de uma história mais científica.

Com uma produção acadêmica conhecida no Brasil, seu primeiro trabalho traduzido foi “A experiência militar”, publicado no livro História dos Jovens, organizado por Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt. Destaquemos aqui também o capítulo “A tarefa do historiador”, do livro Memórias e narrativas (auto)biográficas; o artigo “A imagem do historiador, entre erudição e impostura”, da coletânea Imagens na história: objetos de história cultural; o artigo intitulado Ser historiador hoje, publicado pela revista História: debates e tendências, e duas entrevistas: para a revista Métis: história e cultura, realizada por Benito ­Schmidt e intitulada “Entrevista com Sabina Loriga: a História Biográfica”, e outra mais recente, realizada por Adriana Barreto de Souza e Fábio Henrique Lopes, professores da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e disponível na Revista História da Historiografia, intitulada “Entrevista com Sabina Loriga: a biografia como problema”.

Profissional atenta ao estado atual do debate historiográfico, a autora tem se dedicado a compreender os desafios e os limites do trabalho historiográfico e as tarefas da história nos aspectos epistemológicos e teóricos, a relação entre história e biografia, memória e história e construção do tempo histórico. Assim, O Pequeno x se junta a outros trabalhos que se dedicam a discutir a tão em voga relação entre história e biografia, como, por exemplo, o trabalho de François Dosse, publicado no Brasil em 2009 sob o título de O desafio biográfico. Embora tanto Dosse como Loriga centrem suas discussões na relação biografia-história ou indivíduo-coletivo, as duas obras se distinguem principalmente pelo foco: a autora opta pelo século XIX, ao passo que o historiador francês passa pelo gênero biográfico de maneira mais geral, dos gregos à publicação de sua obra. Com o objetivo de discutir do ponto de vista teórico o que é escrever uma vida, o autor identifica três tipologias que, apesar de não serem estanques, permitem localizarmos temporalmente os diferentes gêneros de narrativas biográficas: os modelos heroico, modal e hermenêutico. Segundo Dosse, a biografia modal “consiste em descentralizar o interesse pela singularidade do percurso recuperado a fim de visualizá-lo como representativo de uma perspectiva mais ampla … O indivíduo, então, só tem valor na medida em que ilustra o coletivo” (Dosse, 2009, p.195).

Esse momento que o autor intitula de “eclipse da biografia”, localizado no século XIX, período em que a disciplina se aproxima das outras ciências sociais ávidas por cientificidade, principalmente da sociologia durkheimiana, contribui para o desdém dos historiadores (mas não só destes) em relação à biografia. É exatamente esse o período em que se centra a obra de Sabina Loriga. Ao recuperar autores como Carlyle, Humboldt, Meinecke, Burckhardt, Dilthey e Tolstoi, ela nada contra a corrente e busca perceber a importância das individualidades em um período marcado por explicações totalizantes, cujas preocupações obscureciam os sujeitos históricos ou até os excluíam das narrativas.

Tomando o indivíduo como mote do seu trabalho, embora não se restrinja a discutir somente aspectos referentes à biografia, Loriga escreve uma história da historiografia em um período posterior aos abalos provocados pelo linguistic turn na História, e chega a ser bastante ácida nas suas críticas aos relativismos da pós-modernidade. Assumindo explicitamente que não se trata de um “retorno à ordem”, acredita ter encontrado no século XIX trabalhos heurísticos ainda úteis aos historiadores contemporâneos, obras essas que a autora analisa de uma perspectiva hermenêutica.

Pouco contextualizados, por vezes lançados num vazio, segundo a visão dos menos íntimos da historiografia europeia do século XIX, tais autores aparecem como figuras valorizadas sob uma análise interpretativa crítica. A autora dá voz à imaginação ao aproximá-los às preocupações atuais dos historiadores – são obras do seu tempo lidas por um olhar do século XXI. Além do trabalho de transposição temporal e de inserção desses autores em um debate contemporâneo, Loriga aproxima-os dos problemas enfrentados atualmente na escrita da história, sem deixar de nos apresentar os limites, contradições e paradoxos presentes em suas obras. Todavia, inegavelmente, advoga em favor deles com base em fontes convencionais para quem trabalha com historiografia, principalmente livros e conferência, por vezes cruzados a missivas. Dessa forma, a autora lê e interpreta, mergulha nas obras e proporciona um debate entre autores em que ela atua como árbitro, selecionando e orientando as falas, criando coesões e dando sentido aos textos, pinçando os pontos positivos aos olhares do historiador contemporâneo e elucidando projetos distintos daqueles vencedores, ou cristalizados como vencedores, que expulsaram os indivíduos das narrativas históricas no século XIX.

Apresentando-nos esses velhos historiadores como sábios anciãos, Loriga demonstra que muitas críticas e preocupações consideradas pós-estruturalistas já estariam presentes nesses autores do século XIX: como as críticas de Droysen à ideia de origem, comungada por Tolstoi, e a assumida perspectiva hermenêutica do autor, assim como o posicionamento acerca da impossibilidade de reconstrução do passado, apregoada pelo autor a partir da metáfora de que a justaposição de todos os cacos de um prédio não o recriaria. Também nos expõe as denúncias de Hintze às naturalizações e de Meyer às generalizações, além da valorização da subjetividade do historiador como fonte de conhecimento por parte de Meinecke. O assumido posicionamento de Dilthey acerca da impossibilidade da racionalidade humana pura e da sua perspectiva analítica que considerava a dinamicidade da vida, e que por isso não deveria ser fragmentada na escrita da história, também entra na pauta da historiadora. Já para Carlyle, como a vida não era coesa, não era função dos historiadores atribuírem sentido a ela.

Humboldt, por sua vez, valorizava a imaginação do historiador, mas se afastava da ficção, o que, para a autora, pressupõe o dever do historiador. Loriga também analisa Dilthey com base na assumida postura do autor diante da relação entre indivíduo, meio e temporalidade, suas relações estabelecidas com as expectativas do futuro, suas memórias e seu presente. O historiador da arte Burckhardt também nos é apresentado com base em sua relação com o tempo, ou melhor, em seu problema com o próprio tempo. Além da valorização dos mitos por parte do autor suíço, suas críticas à ideia de progresso – uma vez que para ele o único ponto positivo da modernidade seria a consciência histórica –, a autora mobiliza fragmentos da sua obra que ilustram a sua descrença na existência de um método universal para a história e destaca a importância da imaginação do historiador, ideia comungada por Humboldt quando este se refere aos preenchimentos lacunares.

Em O Pequeno x, a perspectiva multicausal de Tolstoi também é valorizada. Ademais, as diferenças existentes entre a realidade e a narração histórica, o passado compreendido como inacessível e as causas dos fenômenos inalcançáveis à razão, as relações do autor com a memória e o testemunho, a possibilidade de alcançar a liberdade apenas como experiência interior e suas estratégias narrativas, possibilitam uma leitura heurística das obras de Tolstoi. A lucidez desses autores, ou a lucidez dos desenhos criados por Loriga desses intelectuais é surpreendente.

Partindo desses autores, Sabina Loriga retorna ao século XIX e, longe de propor uma análise acusatória contra historiadores que excluíram os sujeitos da história, pinça os que atuaram na valorização das individualidades e escreveram histórias que se aproximavam do que a autora aprecia atualmente no fazer historiográfico, sobretudo com base na atual importância adquirida pelas biografias. Por mais que existam silenciamentos, recortes e por vezes uma demasiada valorização dessas obras, o livro de Loriga possibilita questionarmos a pretensa hegemonia das explicações que excluíam as atuações individualizadas dos sujeitos no século XIX e problematizarmos a construção e valorização de uma memória científica da História. Além disso, sua leitura proporciona o debate sobre as atuais análises críticas ao modelo científico de história que tem proliferado nos trabalhos que discutem historiografia e que excluem de suas narrativas obras que fogem aos modelos que buscavam bases científicas, estáveis e objetivas para a história, seus alvos principais.

Douglas Pavoni Arienti– Mestrando, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista CNPq. douglasarienti@gmail.com.

Itamar Freitas

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