O pacto entre Hollywood e o nazismo: como o cinema americano colaborou com a Alemanha de Hitler | Ben Urwand

É bem conhecida a produção de filmes antinazistas pelos estúdios de Hollywood no período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Marc Ferro identifica que enquanto no cinema da França ainda não havia um inimigo definido, se era o nazismo ou o comunismo, nos Estados Unidos a escolha já havia sido feita pelo combate ao nazismo antes mesmo de 1939, sendo este fenômeno mais claro no cinema do que no mundo da palavra escrita, no jornalismo ou na pesquisa.1 Assim, construiu-se uma memória da “resistência” do cinema norte-americano contra o totalitarismo, amplamente aceita e difundida ao longo do tempo.

Indo em uma direção contrária, o livro O pacto entre Hollywood e o nazismo: como o cinema americano colaborou com a Alemanha de Hitler, de Ben Urwand, originalmente de 2013, procura desmistificar a memória da “resistência” de Hollywood na chamada “Era de Ouro” do cinema, contra o nazismo. Urwand é doutor em História dos Estados Unidos pela Universidade da Califórnia, mestre em Cinema e Estudos de Comunicação pela Universidade de Chicago e junior fellow2 da Society of Fellows, da Universidade de Harvard. A ideia para o livro foi a partir de um comentário do roteirista e romancista Budd Schulberg sobre Louis B. Mayer, o chefe da MGM, de que este, na década de 1930, projetava filmes para o cônsul alemão em Los Angeles e cortava tudo aquilo que o cônsul objetasse. (p. 14).

O autor dedicou 9 anos de pesquisa para investigar o tema, utilizando fontes de arquivos dos EUA e da Alemanha, tais como: jornais, cartas, roteiros de filmes, registros de copyright, materiais de departamentos e órgãos de governo dos EUA; cartas das filiais alemãs das produtoras de Hollywood; relatos do cônsul alemão em Los Angeles; e entrevistas. O livro é dividido em 6 capítulos, mais Prólogo e Epílogo.

Urwand identifica uma preocupação dos alemães com os filmes de Hollywood já na década de 1920, momento em que o país tentava se reconstruir após a derrota na Primeira Guerra Mundial: o governo questionava como os filmes retratavam os alemães, seja por meio de estereótipos de vilões brutais com sotaque carregado ou os que depreciavam o exército alemão durante a guerra. Os nazistas também se preocupavam: em dezembro de 1930, fizeram manifestações contra a exibição de Sem novidade no front, sobre a Alemanha no conflito mundial. Já em 1932, o governo estabeleceu no “Artigo Quinze” da “Lei de cotas” que poderia recusar a autorização para exibição de filmes de Hollywood se estes veiculassem “no mercado mundial filmes cuja tendência ou efeito seja pernicioso ao prestígio da Alemanha.” (p. 58). Além disso, enviou um agente para os EUA que tinha contato com as produtoras para investigar e avaliar os filmes que estavam sendo produzidos. Hitler também era um admirador dos filmes norte-americanos: tinha o hábito de toda noite, antes de dormir, assistir a um filme. (p. 17).

A ascensão de Hitler ao poder em 1933 colocou uma nova exigência às produtoras: o afastamento dos judeus que revendiam os filmes na Alemanha. Após várias negociações, as empresas aceitaram essas exigências para manter seus negócios no país, o que o autor denomina de “colaboração”. Urwand aponta o paradoxo de que estas mesmas empresas que negociaram com “o regime mais antissemita da história” foram criadas justamente por imigrantes judeus descendentes do Leste Europeu, como William Fox, fundador da Fox; Louis B. Mayer, diretor da MGM; Adolph Zukor, diretor da Paramount; Harry Cohn, diretor da Columbia Pictures; Carl Laemmle, diretor da Universal Pictures; e Jack e Harry Warner, que dirigiam a Warner Brothers. (p. 75).

O primeiro momento crucial apontado pelo autor na colaboração dos estúdios de Hollywood foi o boicote da produção do filme antinazista The Mad Dog of Europe, que tinha um roteiro sobre uma família judia perseguida na Alemanha. Os produtores não conseguiram o apoio necessário para a sua realização. A partir daí, há uma ausência de personagens nazistas e judeus nos filmes da década de 1930, para preservar os interesses comerciais dos estúdios na Alemanha. (pp. 108-109). Nesse contexto, Urwand observa que os nazistas examinaram mais de 400 filmes, separando-os em categorias, como “bom”, “ruim” e “desligado”, as mesmas que Hitler estabelecera desde o início. (p. 109).

Os filmes “bons” eram aqueles que transmitiam ideias que coadunassem com a ideologia do nazismo, como O despertar de uma nação, Lanceiros da Índia e O pão nosso. Os três abordavam histórias sobre liderança: o primeiro, sobre Jud Hammond, um presidente dos Estados Unidos que decretava o recesso do Congresso dos EUA; o segundo, sobre o coronel Stone, chefe de um regimento inglês na Índia colonial; o terceiro, trata da trajetória de John Simms, um homem que administra uma fazenda. Estes filmes receberam críticas positivas nos jornais alemães, e também pelas lideranças nazistas, como o Ministro da Propaganda, Joseph Goebbels. Urwand destaca que ao longo dos anos os estúdios de Hollywood supriram a Alemanha com muitos outros filmes similares, pois “haviam descoberto um mercado especial para seus filmes sobre liderança”. (pp. 143-144).

Já os filmes considerados “ruins” eram proibidos ou censurados pelos nazistas por fatores como a questão moral e racial: Tarzan, o filho das selvas, foi proibido um ano após o seu lançamento, pois mostrava “uma mulher civilizada cortejando, amando e protegendo um homem da selva”; Scarface: a vergonha de uma nação, não foi exibido porque “glorificava a vida criminosa e fazia o crime parecer uma profissão legítima”; os filmes de horror eram vetados porque “tinham um efeito imoral, ameaçador”. (pp. 148-149).

Logo após a chamada “Noite dos Cristais”, em novembro de 1938, com a destruição de lares e lojas dos judeus e a onda crescente de medidas antissemitas na Alemanha, o Ministério da Propaganda emitiu uma “lista negra”, contendo os nomes de cerca de 60 personalidades de Hollywood, que eram judeus ou antinazistas. Filmes que tivessem em seus elencos pessoas da lista eram logo descartados para exibição na Alemanha, o que fez com que apenas vinte filmes de Hollywood fossem exibidos no país em 1939. (p. 164).

Mesmo com o aumento da censura, alguns filmes que traziam questões raciais em desacordo com a ideologia nazista foram exibidos: Ramona e Idílio cigano, que tomavam partido de indígenas e ciganos nos conflitos contra os brancos; e Shangai, cujo personagem principal era filho de um pai branco e a mãe era uma princesa da Manchúria. Como se explica tal situação? Urwand levanta a hipótese de que desde que os censores haviam começado a checar as origens raciais do elenco e da equipe técnica, eles passaram a prestar menos atenção ao filme em si, às vezes esquecendo de levar em conta o conteúdo real, por isso “alguns títulos haviam escapado pelos seus dedos.” (pp. 170-171). Já em O trovador da liberdade, em que havia uma referência crítica velada ao fascismo, os resenhistas do filme fizeram uma interpretação diferente, imaginando que o vilão do filme fosse um judeu. Acerca disto, Urwand aponta a ineficácia dos filmes de Hollywood, pois mesmo com críticas ao totalitarismo, as plateias na Alemanha podiam assisti-los e fazer interpretações que se adequassem aos seus propósitos. (p. 175).

No capítulo “Desligado”, o autor detalha a atuação de Georg Gyssling, membro do Partido Nazista e cônsul alemão nos EUA, na intervenção sobre filmes que pudessem conter uma mensagem antinazista. A narrativa de Urwand surpreende ao revelar a influência de Gyssling nos meios de Hollywood: ele conversava diretamente com produtores e diretores, dizendo quais cenas e falas deveriam ser cortadas por, no seu entender, ofenderem os alemães. A ousadia do cônsul alemão era tamanha que no processo da produção do filme The Road Back ele mandou cartas para cerca de 60 pessoas envolvidas no filme – o diretor, o elenco inteiro até o chefe de guarda-roupa – e advertiu-os que quaisquer filmes dos quais participassem no futuro poderiam ser proibidos na Alemanha. (p. 205).

Outros filmes que foram afetados por Gyssling: em A vida de Emile Zola houve o corte nas referências ao personagem Dreyfus ser um judeu; em O lanceiro espião, o cônsul achou que os oficiais alemães não eram retratados de forma positiva; em Três camaradas, a versão final não atacava os nazistas e nem mencionava os judeus; Personal History, que tratava da perseguição de Hitler ao judeus, foi adiado em 1938, e quando lançado em 1940 com o título Correspondente estrangeiro, teve seu roteiro alterado para um típico filme de aventura ambientado em Londres. (pp. 201-219). Além da atuação de Gyssling, um fato que destacava a proximidade dos grandes estúdios, como a MGM, com o regime de Hitler, foi a visita de dez editores de jornais nazistas aos estúdios da empresa em 1939. (pp. 222-223).

1939 também representou um início do distanciamento com os nazistas, com o anúncio da produção da sátira de Hitler feita por Charles Chaplin, o filme O grande ditador; e o lançamento em maio de Confissões de um espião nazista, pela Warner Brothers, que era baseado em um caso real de espionagem nazista nos Estados Unidos. O filme foi alvo de reações violentas, com cinemas vandalizados, críticos foram pressionados a escrever resenhas negativas e Hollywood foi denunciada como uma conspiração judaica. O Ministério do Exterior alemão conseguiu proibir o filme em mais de vinte países (pp. 231-233).

O cenário se altera de vez com em setembro de 1939, com o início da Segunda Guerra Mundial, que afeta drasticamente as rendas dos estúdios de Hollywood. Apesar disso, Urwand ressalta que a guerra “pelo menos era promissora num aspecto: constituía um assunto fabuloso para futuras produções.” (p. 236).

Em junho de 1940 foi lançado pela MGM Tempestades d’Alma, “o primeiro filme antinazista verdadeiramente significativo” (p. 243), sobre uma família de judeus na Alemanha. Mas, mesmo rompendo um padrão ao mostrar os nazistas, o filme teve várias cenas cortadas nas quais os personagens faziam referências ao orgulho de serem judeus. Tal procedimento criava um precedente perigoso: o de que Hollywood deveria atacar os nazistas sem se envolver em nenhuma defesa especial dos judeus. (p. 244). A produção deste filme foi o bastante para o rompimento das relações: em julho de 1940, o governo alemão, baseado no Artigo Quinze, ao considerar que Tempestades d’Alma depreciava a imagem do país, proibiu a distribuição dos filmes de Hollywood, não só na Alemanha, mas nos territórios dominados, como Noruega, Dinamarca e Bélgica.

Na nova conjuntura, entre 1942 e 1945, período da participação dos EUA na guerra, mais de 800 filmes produzidos diziam respeito de algum modo ao conflito mundial. (p. 252). Urwand destaca a influência de um órgão criado pelo governo Roosevelt, o Office of War Information – OWI (Escritório de Informação de Guerra), que continha uma divisão de cinema e examinava os roteiros de Hollywood.3 Nesse contexto, o autor destaca filmes como Casablanca e Rosa de Esperança, que transmitiam mensagens contra o nazismo. Porém, embora antinazistas, Urwand ressalta que os filmes não expuseram o sofrimento dos judeus nos campos de concentração, resquício de anos de colaboração dos estúdios com os nazistas. Mesmo a visita dos executivos de Hollywood à Alemanha derrotada e aos campos de extermínio em julho de 1945, não foi o suficiente para sensibilizar os estúdios para esta questão, que ainda foi ausente dos filmes no pós-guerra. Somente em 1959, com O Diário de Anne Frank, o holocausto judeu surge como tema nos filmes de Hollywood.

A opção do autor em escrever com suas próprias palavras as informações contidas nas fontes do que apenas transcrevê-las, e a escolha da editora em utilizar “notas de fim” torna a linguagem da obra bastante atraente e acessível, visando um público amplo, sem perder o rigor acadêmico. O texto de Urwand transporta o leitor para o terreno das ações humanas, mostrando personagens com seus interesses e suas ambiguidades num período delicado da história mundial, oferecendo ao leitor um sentimento de expectativa a cada capítulo para conhecer a continuidade dos acontecimentos relatados.

Ao longo de todo o livro, Ben Urwand demonstra uma militância em defesa dos judeus, se posicionando de forma bastante crítica em relação às ações dos estúdios de Hollywood na década de 1930 em colaborar com o regime nazista. O autor questiona que, mesmo tendo executivos judeus e mesmo sabendo das perseguições e massacres que os nazistas faziam ao seu povo, amplamente divulgados na imprensa norteamericana, os donos dos estúdios aceitaram as imposições do regime de Hitler em troca de preservar seus lucros e interesses no mercado cinematográfico alemão, investindo até mesmo em noticiários nazistas e na produção de armamentos no país. Nesse contexto, baseado em farta documentação, o termo “colaboração” utilizado pelo autor faz todo o sentido, pois Urwand consegue demonstrar a estreita ligação entre os interesses financeiros de Hollywood e a importância que o regime de Hitler dava à propaganda e ao cinema, como forma de transmitir uma imagem positiva do nazismo para o mundo.

Para um país como os Estados Unidos, que se orgulha de seu patriotismo, sua democracia e sua liberdade – expressos em muitos dos filmes de Hollywood que propagam o american way of life – o livro de Ben Urwand se apresenta como uma obra ousada e incômoda a uma memória constituída há décadas, a da “resistência” da indústria do cinema do país contra o totalitarismo.

Notas

1 FERRO, Marc. Sobre o antinazismo americano (1939-1943). In: Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

2 Nomeação dada a acadêmicos de grande destaque e com excepcional habilidade intelectual. (URWAND, 2019).

3 Podemos mencionar também em 1940 a criação de outro órgão, o Office of the Coordinator of InterAmerican Affairs (OCIAA), coordenado pelo multimilionário do petróleo Nelson Rockefeller (1908-1979), voltado para as relações com a América Latina, como forma de afastar a influência do Eixo nesta região, na chamada “Política de Boa Vizinhança”. A OCIAA, que tinha uma Divisão de Cinema, investiu fortemente em propaganda. Rockefeller acreditava que o sucesso dos empreendimentos americanos na América Latina dependia da venda não só de produtos americanos, mas também do “modo de vida americano” (american way of life). O sucesso no campo econômico tornava necessária uma base sólida no campo ideológico. Ver TOTA, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Para uma análise das animações da Disney neste período, a criação do personagem brasileiro Zé Carioca, e suas potencialidades para o ensino de História, ver MENEZES NETO, Geraldo Magella de. Disney, Segunda Guerra e “Boa Vizinhança”: filmes animados nas aulas de História. In: BUENO, André et al. (orgs.). Aprendizagens Históricas: mídias, fontes e transversais. União da Vitória/Rio de Janeiro: LAPHIS/Edições especiais Sobre Ontens, 2018.


Resenhista

Geraldo Magella Menezes Neto –  Professor de História da Secretaria Municipal de Educação de Belém (SEMEC). Professor de História e Estudos Amazônicos da Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC). Atualmente é doutorando em História Social da Amazônia na UFPA.


Referências desta Resenha

URWAND, Ben. O pacto entre Hollywood e o nazismo: como o cinema americano colaborou com a Alemanha de Hitler. Trad. Luis Reyes Gil. São Paulo: LeYa, 2019. Resenha de: MENEZES NETO, Geraldo Magella. Desmistificando a “resistência” do cinema de Hollywood contra o nazismo na década de 1930. Crítica Histórica. Maceió, v. 12, n. 23, p. 484- 490, julho, 2021.

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