O outono da Idade Média | Johan Huizinga
A recente edição em português do magnum opus do historiador holandês Johan Huizinga, publicado originalmente em 1919, se reveste de real importância e nos motiva a uma reflexão sobre a produção historiográfica desse notável medievalista. Apesar de pertencer a uma geração de historiadores que marcaram época – entre eles o seu notável amigo Henri Pirenne –, sua obra, voltada à história da cultura, ficou de certo modo esquecida frente à vertente da história social e econômica que dominou soberana, até bem pouco tempo, no meio acadêmico.
Porém a revisão e a retomada de modelos e concepções historiográficas sob a ótica da contemporaneidade bem como a procura de novos caminhos contribuiu para o resgate e a revalorização da obra de Huizinga, que em seu tempo enfrentou o cientificismo positivista dominante entre os historiadores alemães em cujo debate participou Karl Lamprecht (1856-1915), que chegou a dar seu nome à polêmica conhecida como Methodenstreit (a polêmica sobre o método).
Huizinga começou sua carreira de medievalista pouco antes de 1905, ano em que foi indicado como docente na Universidade de Groningen. Antes disso, havia sedimentado sua formação na área de estudos de Linguística Comparada na Universidade de Leipzig, junto de um conhecimento voltado à cultura da Índia. Como linguista, segundo Jan Noordegraaf, no capítulo intitulado “On Light and Sound, Johan Huizinga and ninenteenth-century Linguistics” de seu sólido estudo The Dutch Pendulum. Linguistics in the Netherlands 1740-1900 1, tinha o domínio do árabe, hebraico, sânscrito, além do grego e latim chegando a elaborar uma teoria própria sobre a origem das línguas, ainda que esta tenha sido rejeitada por seu famoso orientador, Karl Brugmann, que naquele tempo pontificava nessa área de estudos.
Por outro lado, Huizinga era dotado de uma refinada inclinação para assimilar a notável eclosão de literatura, filosofia e artes que caracterizou a Europa central no final do século XIX, conforme se apresenta no método e nas abordagens das questões desenvolvidas em toda a extensão das páginas do O Outono da Idade Média, publicado pela primeira vez em 1919. Essa cultura do fin-de-siècle que o historiador Carl E. Schorske procurou estudar em relação a Viena2, não se limitou apenas àquela cidade, mas atingiu boa parte do continente europeu.
Sob vários aspectos podemos associar a obra de Huizinga, concentrada em boa parte na França e Países Baixos durante os séculos XIV e XV, àquela de outro historiador não menos famoso, Jacob Burckhardt (1818-1897), que marcou época com seu Die Kultur der Renaissance in Italien3, publicado em 1860. Certamente o estudo de Burckhardt, a quem Huizinga considerava “o homem mais sábio do século XIX”, foi um paradigma inspirador para seu próprio livro, permeado de citações do estudioso suíço. Ao falar do ideal de vida bela, da concepção cavalheiresca que “é um ideal essencialmente estético, feito de fantasias coloridas e sentimentos elevados […] que também almeja ser um ideal ético […]” ele cita Burckhardt longamente quanto ao significado do sentimento de honra renascentista (p. 99-100). Também ao falar da devoção popular ao fim da Idade Média, no belo capítulo intitulado “A representação do sagrado”, ele lembrará que “o desenvolvimento das manifestações exteriores da devoção popular no fim do período medieval não pode ser expresso de forma mais concisa do que nas palavras de Jacob Burckhardt em sua obra Weltgeschichtliche Betrachtungen”4 fazendo uma longa citação da mesma (p. 247). Ambos, Burckhardt e Huizinga, são próximos, não somente na percepção da história cultural como imago mundi, mas também na visão de períodos históricos de transição que, em seus crepúsculos, contêm os elementos que possibilitam a criação de um novo renascimento.
Burckhardt ao publicar o Die Zeit Konstantins des Grossen5, tinha como pressuposto teórico a decadência do mundo antigo para a transição da Cristandade que possibilitaria a criação de uma nova civilização. No entanto, diferentemente de Oswald Spengler (1880-1936), em seu Untergang des Abendlandes 6, o termo “decadência” não se constitui, tanto para Burckhardt como para Huizinga, em um movimento cíclico de nascimento, maturidade e morte, invalidando, sob esse aspecto, qualquer influência do pensador alemão sobre esse último, como supõem alguns. Porém, a comentada melancolia que perpassa a obra de Huizinga se diferencia do pessimismo que predomina na obra de Burchkardt, influenciado por Schopenhauer, que o historiador suíço admirava, considerando-se seu seguidor.
Benedetto Croce (1866-1952) em sua obra La Storia come pensiero e come azione7 procede a uma crítica, um tanto ácida, em relação à Burchkardt chamando atenção para a sua tendência de se desvincular do pensamento e da vida negando a concepção da história como processo de atos sempre novos, e afirmando, em lugar disto, o típico, o constante e a eterna repetição. Mas, como bem lembra Peter Burke, ambos rejeitaram o positivismo e deram importância ao papel da intuição – e da imaginação – no entendimento do passado. Burke em seu livro What is Cultural History?8 cita o ensaio de Huizinga “Sobre uma definição do conceito de História”, publicado em holandês em 1929, no qual este último declara que o objetivo principal do historiador da cultura é retratar formas de cultura, em outras palavras, descrever os pensamentos característicos e sentimentos de uma época e suas expressões ou personificações nas obras de literatura e arte. Nesse sentido o historiador desvenda os modelos de cultura estudando os “temas”, “símbolos”, “sentimentos” e “formas”, em uma definição ampla como a procura dos “elementos estéticos na representação histórica”. Podemos afirmar que essa concepção também poderia se aproximar ao que se convencionou denominar “história das mentalidades”, do “cotidiano”, e ainda ao que os alemães costumavam denominar Geistesgeschichte (história das ideias, ou do espírito). É sob essa percepção que podemos explicar o fascínio que nos provoca a leitura de seus escritos, entre outros o livro Homo Ludens: Vom Ursprung der Kultur im Spiel 9, que estuda a natureza e significado do jogo como fenômeno cultural.
Porém a palavra “cultura” continua a se apresentar como um desafio conceitual e teórico. É o que nos lembra Fernand Braudel em uma interessante reflexão em seu livro História e Ciências Sociais10, quando escreve:
Não esqueçamos, na verdade, que os conceitos essenciais, tal como muitas outras coisas, viajam incessantemente, passam de um país a outro, de uma língua para outra, de um autor para outro. Trocam-se palavras tal como se fossem bolas, mas quando voltam, as palavras nunca são, exatamente, as mesmas que no momento da partida. Deste modo, quando de volta da Alemanha – de uma Alemanha admirável e admirada, a da primeira metade do século XIX – cultura chega à França com um prestígio e um sentido novos. Então, este termo que partira com modesta posição secundária converte-se, ou procura converter-se, no conceito dominante de todo o pensamento ocidental.
Do mesmo modo quando lemos a coletânea de Lynn Hunt, A Nova História Cultural11, na qual sequer o nome de Huizinga é lembrado, vemos a distância percorrida por este conceito historiográfico do século XIX aos dias de hoje.
Assim como outros historiadores e pensadores, Huizinga não se manteve isento de críticas. Mesmo Jacques Le Goff, que se mostra inteiramente aberto ao entendimento e compreensão da obra de Huizinga, nas páginas da presente edição que uizingaHuiH reproduzem sua entrevista com Claude Mettra na edição francesa (p. 589-597), não o foi tanto no livro A Nova História12 ao afirmar:
Voltemos, pois, a ler Huizinga numa perspectiva atual, lembrando-nos de que, no passado, ele rasgou o véu de uma história orgulhosamente impossível e de que, para nós, embora possa ser um mestre do erro com os seus “talvez”, o seu estetismo e diletantismo, ele nos abre igualmente as portas que conduzem à história que está ainda por fazer.
Contudo, na coletânea A História Nova13 Le Goff incluirá o seu nome entre os pais da “nova história”: Marc Bloch, Lucien Febvre, Henri Pirenne e Johan Huizinga. Croce14 já havia assinalado, muito antes, que a palavra dilettante também foi utilizada na crítica à obra de Burckhardt sobre o tempo de Constantino. Mas, apesar da usual conotação negativa no uso do termo, não deixa de ser significativa a observação de um notável estudioso de teoria da história, Wilhelm Bauer (1877-1953), que, em parte, poderia ser classificado como positivista, em seu Einführung in das Studium der Geschichte15: “O manejo da técnica científica não é, naturalmente, a única pedra de toque do valor de um trabalho histórico. Na História, igualmente ao que sucede em outros ramos do saber, pode também nascer um impulso poderoso de uma criação de diletante.”
Sem dúvida O outono da Idade Média provocou esse “impulso poderoso” seminal em historiadores da cultura que efetivamente o leram atentamente e a ele sucederam reconhecendo seu papel pioneiro como pensador da cultura. Entre muitos outros vale lembrar as palavras do excelente historiador da arte medieval Jean Wirth, L’image medievale, naissance et développements (VIe-XVe siècle)16, ao se referir à familiaridade com o sobrenatural, “sur cette familiarité, les pages célèbres de Huizinga se lisent toujours avec profit”. Em uma resenha sobre o livro do notável historiador da arte, Francis Haskell, History and Its Images: Art and the Interpretation of the Past17, publicada no Contemporary Sociology (v. 24, n. 1, p. 122-124, 1995), Philip Rieff lembra que Haskell,
opens and closes with respectfull glosses on the work of the great Dutch historian Johan Huizinga. Huizinga’s masterwork, The Waning of the Middle Ages, represents historical scholarship itself as a work of art. It appears that Haskell has chosen Huizinga as the respectful object lesson of his own cautionary history of historians because Huizinga himself came to doubt the truth of his own achievement. Through Huizinga’s doubt, the reader can see Haskell’s own high quality of doubt18
À margem cabe observar que ao contrário da pretensão e aparente segurança de certos estudiosos de nossos dias nos parece que a “dúvida”, seja ela metódica ou não, faz parte e se revela um traço de personalidade dos verdadeiros e criativos homens de ciência.
Huizinga vivenciaria tempos em que a palavra Kultur provocaria a conhecida e brutal reação do ministro nazista Goebbels que, ao ouvi-la, afirmava ter vontade de sacar sua arma, assim como a consagração dos temas völkisch da pseudo-metafísica do não menos nazista Heidegger, magnificamente analisada por Emmanuel Faye, em seu livro Heidegger, l’introduction du nazisme dans la philosophie19. Após ter sido obrigado a deixar a docência universitária em 1942 pelos ocupantes nazistas, Huizinga terminou seus dias confinado em um campo, um “exilado em seu próprio país”. Sua posição anti-totalitária era conhecida, expressa em várias ocasiões desde 1933, quando foi reitor da universidade de Leiden e se opôs à presença de uma delegação alemã liderada por um reconhecido autor de um panfleto antissemita.
No final de sua vida Huizinga assistia ao cenário que havia descrito a Pirenne ainda em 1914, utilizando a frase extraída de um poema de Franz Grillparzer, poeta austríaco do século XIX: “Der Weg der Menschheit geht von Humanität, durch Nationalität, zur Bestialität”20.
Notas
1 Münster: Nodus Publikationen, 1996, p. 130-158.
2 Viena fin-de-siècle. Política e Cultura. Campinas: Unicamp; São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
3 A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
4 Reflexões sobre a história universal, 1905.
5 A época de Constantino o Grande, 1853.
6 A decadência do Ocidente, 1918-1922.
7 A História, pensamento e ação. Rio de Janeiro: Zahar, 1962. Cf. p. 86-87. [original de 1938]
8 Cambridge: Polity, 2008. Cf. p. 09.
9 Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura, 1938. Edição brasileira: São Paulo: Perspectiva, 2010 (6.ed.).
10 Braudel, F. História e Ciências Sociais. Lisboa: Presença, 1972, p. 163.
11 São Paulo: Martins Fontes, 1992.
12 Le Goff, J. A nova história. Coimbra: Almedina, 1990, p. 287.
13 Le Goff, J. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 21.
14 A História, pensamento e ação. Rio de Janeiro: Zahar, 1962, p. 88.
15 Introdução ao Estudo da História, 1921. Versão espanhola: Barcelona: Bosch, 1957, p. 43. (3.ed.).
16 Wirth, J. L’image medievale, naissance et développements (VIe-XVe siècle). Paris: Meridiens Kliencksieck, 1989, p. 365, nota 51.
17 New Haven: Yale University Press, 1993.
18 Rieff, Ph. Review. Contemporary Sociology, v. 24, n. 1, p. 122-124, 1995.
19 Paris: Albin Michel, 2007.
20 “O caminho da humanidade vai do humanismo, ao nacionalismo, à bestialidade”. Citado por Marc Boone: “The autumn of the Middle Ages: Johan Huizinga and Henri Pirenne ou ‘plusieurs vérités pour la même chose”, University of Ghent. Disponível em: www.rpe.ugent.be/Boone_paper.doc.
Resenhista
Nachman Falbel – Professor da Universidade de São Paulo (USP).
Referências desta Resenha
HUIZINGA, Joahn. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2010. Resenha de: FALBEL, Nachman. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 11, n.1, p. 261-266, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]