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O outono da Idade Média – HUINZINGA (VH)

HUINZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac & Naify, 2010, 656 p. Resenha de: BAGOLIN, Luiz Armando. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.

Se confiasses teu barco ao sabor dos ventos, não navegarias para a direção desejada, mas para onde eles te levassem; se jogasses tuas sementes nos campos, haveria a alternância entre os anos bons e ruins. Tu te abandonaste ao domínio da Fortuna: deves submeter-te aos caprichos de tua mestra. Pretendes sustar a rápida revolução de sua roda? Oh, insensato! Então a Fortuna não seria mais a Fortuna.

Boécio, A Consolação da Filosofia

Extraída de A Consolação da Filosofia, de Boécio (livro II, 1), a citação acima repropõe a imagem da Fortuna (Týche) como circular, produzindose desde a História de Heródoto, na qual a Fortuna é roda, que não cessa de girar, alternando, no alto e no baixo, vitoriosos e derrotados, elevados e decaídos, luz e treva, verão e inverno. Johan Huizinga a revisita, a roda da Fortuna, em seu livro O Outono, recolhendo-a nas histórias de Chastellain, Froissard, Eustache Deschamps, Meschinot, Mathieu d’Escouchy, Jean Gerson, Dionísio Cartuxo, Ruysbroeck, Eckhart, Suso, Tauler, assim como nas pinturas dos Van Eyck e de seus sucessores, para a construção de sua história das formas de vida e de pensamento presentes na Borgonha, na França e nos Países Baixos durante os séculos XIV e XV. O cronista assemelha-se a um pintor que traz para o seu quadro certamente um colorido artificial, mas que imita as cores naturais. A moderação implícita na crônica, não sua exatidão, implica que se considerem as diferenças entre aquele tempo e o nosso, dele muito distante. O príncipe era visto de forma esquemática, simplificada e ao mesmo tempo fantástica, sendo o imaginário político do público afetado diretamente pela canção popular e pelo romance de cavalaria.

Não dominando os gêneros retóricos implicados na constituição destes discursos enquanto crônicas, Huizinga, confere a eles um grau de realismo, ainda que reconheça que este seja bem menor que o proposto para o documento oficial utilizado pelo medievalista tradicional. Como media res ou posição intermediária na roda, o mal que para o historiador, seguindo os cronistas, existiu, pode tanto seguir seu curso rumo à sua extinção pelo bem, pela luz, quando o movimento for ascendente, quanto, o contrário, seguir para a escuridão extrema, no descendente, lugar da crueldade, do terror e da miséria. Diante de um mundo mesquinho, cruel e miserável, ao homem medieval, segundo Huizinga, restaram apenas três saídas, três caminhos: o da “renúncia”, o do melhoramento do próprio mundo e o do “sonho” ou da aspiração por um mundo inundado de beleza no qual arte e vida se serviriam mutuamente.

Como ideal de vida bela, a “estética cavalheiresca” traduz-se pelo desfile de belos trajes e sentimentos elevados de honra, nobreza e virtude representados pelo orgulho em enfrentar o perigo. O topos que circula é o do aristoi, o herói despojado, casto, defensor das mulheres a quem honra por amor e cujo exemplo é Jean Le Meingre, le maréchal de Boucicaurt. Degenerando o teatro da vida idealizada por detrás da viseira do cavaleiro, dá-se lugar ao sentimento da vida pastoral, às formas do gênero campestre em que se canta a tranquilidade do bucólico, não sem que se desconsidere ou cesse a imposição da presença da morte ou de sua lembrança recorrente (memento mori) como imagem da deterioração e do apodrecimento. As danças da morte expõem-se quase nunca fantasmagóricas, porque os cadáveres exibem os seus ventres abertos, rindo de escárnio de nobres e plebeus por entre nesgas de carne e vestes pendentes, como na figura da morte no Cemitério dos Inocentes.

Não havendo escapatória à morte, pois seus dignitários escabrosos estão prontos a ceifar toda a inveja, mas também todo orgulho, atenuam-se as fronteiras entre o sentimento religioso e o erótico, que faz do primeiro, dentro dos limites de uma inconveniência proposital, um sentimento vicário. Huizinga vê, no entanto, o cruzamento do erótico com o religioso como “irreverência blasfema para com o sagrado” tornada possível graças às incongruências, aos descompassados do “espírito medieval”. Como exemplo, acolhe o Díptico da Madona de Antuérpia ou Díptico de Melun, pintado por Jean Fouquet, particularmente quanto à representação da Madona, mostrando-a, com um dos seios desnudo e redondo como um pequeno perfeito melão, lívida como o manto branco que recobre seus ombros e costas, deixando à vista o seu colo, alvíssimo, apertado por um corselete muito justo de fino veludo cinzento que se abre na altura de seu diafragma. Para o autor, “apenas uma sociedade totalmente permeada pelo sentimento religioso, e que aceita a fé como algo óbvio, conhece todos esses excessos e degenerações”. Portanto, os inúmeros exemplos, raros na arte, mas corriqueiros nas crônicas de época, de devassidão e desrespeito aos lugares e signos sagrados, não podem ser interpretados como ateísmo, mas como uma forma estranha, controversa, de devoção.

Exprimir o “inexprimível”, eis o que se lia na palavra de São Paulo aos Coríntios, por exemplo: “videmus nunc per speculum in aenigmate, tunc autem facie ad faciem”. “Ver face a face”, entretanto, não é expressão que deva ser interpretada como designativa de um ato empírico, fruto de um “pensamento causal”, oposto ao “simbólico”, conforme propõe Huizinga. “Do ponto de vista do pensamento causal”, diz Huizinga, o simbolismo é considerado um curto-circuito intelectual. O pensamento procura a conexão entre duas coisas não ao longo das sinuosidades ocultas de seus vínculos causais, mas sim saltando por cima das conexões de causa. A conexão não é um elo entre causa e efeito, mas entre significado e objetivo.

Como metáfora estendida ou continuada, a alegoria é um tropo de pensamento que substitui um pensamento em causa por outro, por relação de semelhança a ele. Por um lado, a construção da representação, como fala e escrita, por outro, uma hermenêutica, ambas reguladas quanto à adequação entre um sentido figurado e um sentido próprio. Adepto aparentemente da visão romântica, segundo a qual a alegoria é vista como artificial e fria, um invólucro vazio e exterior, oposta, portanto, ao símbolo, autorrepresentativo, signo ou manifestação de uma qualidade interior, não nominativa, Huizinga propõe a alegoria como sendo um “simbolismo projetado num poder de imaginação superficial” com “o potencial de ser reduzida a um pedante lugar-comum e ao mesmo tempo reduzir uma ideia a uma imagem”. Mas e a arte? Uma das motivações de Huizinga ao escrever O Outono foi a de perceber como as formas de vida da cultura franco-borguinhã do final do século XV poderiam ser compreendidas a partir da pintura dos Van Eyck, assim como de Rogier van der Weiden e Memlinc, e da escultura de Sluter. Mas entendido pelo autor como um “poslúdio sem fim”, a poluição visual do “estilo flamboyant gótico” revelaria o esgotamento de um sistema de representação formal aliada ao horror vacui, “que dá a cada detalhe uma elaboração contínua, a cada linha, a sua contralinha”.

Como expressão tardia da arte do período, a pintura dos Van Eyck exibe “a imaginação terrena do divino” a partir do mais extremado “naturalismo” consoante às representações textuais a ela contemporâneas, tais como os sermões de Johannes Brugman ou as descrições de Dionísio Cartuxo. Huizinga acredita que a pintura permaneceu na “seriedade dos trípticos e do retrato”, enquanto a “literatura” escancarava “o sorriso voluptuoso da sátira erótica e do horror monótono da crônica”. Refém da “elaboração irrefreada de detalhes”, a pintura torna-se um gênero subordinado ao cômico, ao burlesco, segundo o autor, mas ainda neste terreno, ela é ultrapassada pela palavra.

A pintura do norte do século XV, diferentemente do que acontece com a italiana do Trecento, da época de Giotto, não busca o sentido de coesão dos elementos representados, carecendo de ritmo e perspectiva. Retórica, oratória e poética são vistas pelo autor como temas que passam a comparecer nos escritores franceses do século XV, principalmente, aliando aos antigos cronistas, Chastellain, La Marche, Molinet e outros, os novos representantes de um estilo humanista, como Villon, Coquillart, Henri Baude e Carlos de Orléans.

Enrijecido por uma visão evolutiva de acordo com a história das mentalidades sob a qual não disfarça a teleologia aplicada à produção artística, Huizinga não consegue visualizar a pintura que tanto o encantou como uma máquina retórica para a qual a alegoria, como parte da elocução, é importantíssima, encarecendo pelo ornatus o discurso. É esta máquina, longe de ser um tropeço para o pensamento, que faz circular a metáfora por toda a parte onde a Fortuna se apresente.

Luiz Armando Bagolin – Professor Doutor Docente e pesquisador da área de história da arte Instituto de Estudos Brasileiros – IEB/USP, lbagolin@usp.br.

Itamar Freitas

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