SOUSA, Flander; FRANÇA, Verônica Alkmim (orgs.). O Olhar Eterno de Chichico Alkmim. Belo Horizonte: Editora. B, 2005. Resenha de: BORGES, Maria Eliza Linhares. Varia História, Belo Horizonte, v.22, n.35, p. 235-239, jan./jun., 2006.
Em fins de 2005 a Editora B lançou O Olhar Eterno de Chichico Alkmim/The eternal vision of Chichico Alkmim. Esta publicação bilingue divulga uma pequena e significativa amostra do trabalho de Francisco Augusto Alkmim: o Chichico Alkmim, fotógrafo mineiro que nos legou um acervo de 5.000 negativos em vidro produzido na cidade de Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, na primeira metade do século XX.
Livros como este são muito cortejados pelo mercado editorial, inclusive internacional. Seu público-alvo é, em geral, formado por aficionados pela história da fotografia, bem como por aqueles que lançam mão da imagem fotográfica para analisar questões da vida social. Como veremos a seguir, esta modalidade de publicação tende a destacar o padrão técnico e estético seguido por fotógrafos dos anos oitocentos e das primeiras décadas do século XX, além de colocar o leitor diante de versões particulares de temas presentes no mundo da fotografia deste mesmo período.
A padronização e a reprodução dos signos fotográficos, bem como a análise de seus usos e suas funções sociais são questões recorrentes entre os estudiosos da história da fotografia. Apenas para exemplificar, lembremos: em 1931, Walter Benjamim (Pequena História da Fotografia) já chamara a atenção para o papel da fotografia na compreensão dos rumos da cultura moderna, mais especificamente da cultura oriunda do capitalismo industrial. Seis anos mais tarde, em 1937, um pesquisador do Museu de Arte Moderna de Nova York, Beaumont Newhall, lançava seu History of photographe. Em pouco tempo este livro viria a se tornar uma espécie de paradigma para se ver, pesquisar e pensar a história da fotografia, sobretudo no mundo ocidental. A partir dos anos de 1960, mais especificamente da década de 1980, o mercado editorial internacional e nacional foi inflacionado por uma série de publicações acerca da fotografia oitocentista e de inícios dos anos novecentos. Este fenômeno não é gratuito. Sinaliza, por um lado, um movimento de valorização da fotografia em outros campos, como a crescente presença da fotografia nas galerias de arte e nos museus; o papel relevante que esta imagem tem tido nos debates sobre a preservação da memória e o patrimônio histórico; o investimento dos arquivos, públicos e privados, na montagem de seus acervos fotográficos; etc. Por outro, ele é contemporâneo das reflexões que hoje se fazem em torno da crise teórico-metodológica que tem permeado o modelo da história da fotografia conforme sugerida por Beaumont Newhall.
No Brasil, instituições como a FUNARTE, o Instituto Moreira Salles, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, dentre outras, têm devotado grande atenção edição de livros sobre a história da fotografia aqui produzida por fotógrafos estrangeiros e nacionais. Simultaneamente, estudiosos independentes ou vinculados s Universidades têm alimentado o mercado editorial nacional com estudos onde a fotografia se constitui num objeto de pesquisa privilegiado. Muitos deles se detêm nos debates teórico-metodológicas relativos aos alcances e limites dos usos da fonte fotográfica para a análise de temas próprios das Ciências Sociais.
Mas o que tudo isso tem a ver com a resenha aqui proposta? Muito, sem dúvida. Os leitores de O Olhar Eterno de Chichico Alkmim/The eternal vision of Chichico Alkmim verªo que o fotógrafo Chichico Alkmim pertenceu linhagem de fotógrafos dos anos oitocentos e das primeiras décadas do século XX. Mais, ainda, a estrutura do livro e os textos que a alinhavam valorizam a fotografia de autoria, uma visão da história da fotografia muito afinada com o modelo proposto por B. Newhall.
Organizado em dez partes, das quais fazem parte uma apresentação, uma introdução e uma parte final com informações sobre a vida profissional do fotógrafo, o livro, propriamente dito, se inicia e se encerra com dois retratos do autor: o fotgrafo Chichico Alkmim. A primeira foto foi feita por sua esposa na década de 1920; a outra, clicada por seu filho, não tem data, mas certamente retrata o fotógrafo décadas depois. Entre uma e outra, os autores ordenaram as cinco partes do livro, cujos títulos já antecipam um pouco da trajetória temática percorrida por este fotografo nascido em 1886 na Fazenda do Sitio, no município de Bocaiuva/MG.
Em Silenciosa luminosidade, dos 13 retratos de adultos, individuais e em grupo, 12 mostram o trabalho de estúdio> Apenas um foi feito no local onde provavelmente viviam as retratadas: um convento de freiras. Para a parte intitulada Photografia, os autores privilegiaram a infância em suas faces religiosa e lúdica; em Eternidade, a fotografia mortuária-infantil exalta a dor da perda, celebra a memória do último ciclo da vida: a morte. Em Diamantina passava por Chichico, nossos olhos passeiam por representações de tipos físicos e sociais locais. Dentro ou fora do estúdio do fotógrafo, todas as poses foram meticulosamente estudadas e produzidas; ressaltam, cada uma delas, um aspecto específico do retratado: a virilidade, a posição social; a afinidade com alguns signos da modernidade, como a bicicleta, ou com a permanência da tradição, como o casamento, por exemplo. Paisagens humanas, paisagens urbanas, como o próprio título indica, foi composta a partir de vistas urbanas de Diamantina e de cenas de convívio social, as quais dão a ver “a alta sociedade diamantinense”; sua banda de música; seus jovens ilustrados; o aprendizado infantil da dilapidação de diamantes, o garimpo, o mercado central; as igrejas, as festas, a arquitetura colonial, etc. Após A mão que colhia rosas, que apenas contem o retrato do fotógrafo, clicado por seu filho, segue-se Um retrato retocado, como dito antes, ai o leitor se depara com informações sobre seu ofício de fotógrafo.
Á medida que passamos as páginas deste belíssimo livro e nos deparamos com cada uma de suas imagens, fica uma certeza: seus autores não mediram esforços para apresentar uma fração do que há de melhor deste fotógrafo cuja iniciação no mundo da fotografia parece datar de 1902, quando ele contava apenas com dezesseis anos de idade. Incentivado pelos mestres Padre Manuel González e Passig, ainda na fazendo do Caetermirim, o jovem Francisco Augusto Alkmim começou a aprender os mistérios da captação e criação dos fragmentos de vida refletidos nas lentes de sua máquina fotográfica. Como tantos outros fotógrafos de sua Época, Chichico Alkmim foi um autodidata. Juntamente com seus negativos de vidros, sua família localizou o Manual Prático de Photographia, de autoria de Adalberto Veiga, datado de 1910, e um livreto da Kodak brasileira: o Kodaks Graflex e acessórios, produzido no Rio de Janeiro e datado de 1926. Além de seguir suas instruções, sabe-se, também, que o fotógrafo frequentou o ateliê de Igino Bonfiolli que, nos idos de 1920, foi um dos espaços fotográficos mais respeitados da capital mineira. Depoimentos orais com membros da família Alkmim ainda nos informam: o fotógrafo de Diamantina era leitor voraz de revistas ilustradas como Careta, A Noite Ilustrada e Ilustração. Este conjunto de práticas, aliado ao seu talento pessoal, informou o manuseio que ele fazia de sua câmera de fole 13×18 com objetiva.
Uma vez radicado em Diamantina, por volta de 1917, Chichico Alkmim, manteve-se fiel a esta câmera até 1955, ano em que encerrou sua carreira de fotógrafo.
Tal fidelidade nos permite algumas provocações. Sabe-se, por exemplo, que em 1927 a Leica já se encontrava disponível no mercado; na década de 1930, sua venda chegou a mais de 100.000 exemplares. Por que será que o profissional Chichico Alkmim não abriu mão de sua câmera de fole 13×18 com objetiva? O que este dado que merece ser melhor pesquisado estaria sinalizando? Seu apego a uma tradição técnica e/ou estética? Um distintivo em relação a outros fotógrafos da região? Sabemos, por outras fontes, que Chichico Alkmim não foi o único fotógrafo de Diamantina. Por volta dos anos de 1920, viveu nesta cidade um outro fotógrafo: Francisco Manuel da Veiga.
Tendo conhecido outra parcela das fotografias deste fotógrafo, sabemos ser o esmero de Chichico Alkmim uma constante da maior parte de seus cenários e de suas poses. Contudo, como toda obra, a sua também é desigual. Explicar suas raízes, bem como tentar compreender os porquês de seu possível apego à tradição técnica e/ou estética dos anos oitocentos, é um convite e também um desafio a ser enfrentado por aqueles que certamente se dedicarão, no futuro próximo, ao estudo de seu acervo.
Não poderíamos encerrar as informações sobre este belo livro sem antes chamar a atenção para outro aspecto importante mas nem sempre considerado na avaliação de publicações como esta. Referimo-nos, em especial, às técnicas utilizadas tanto em sua composição, quanto na digitalização de suas imagens. Como lembram os teóricos da história do livro e da leitura, a análise das escolhas relativas impressão de um livro é um dos aspectos cruciais para se compreender os alvos pretendidos pelos editores. Segundo informações do fotógrafo e professor de fotografia, Tibério França, a impressão de O olhar eterno de Chichico Alkmim/The eternal vision of Chichico foi feita em papel couchê, em tritone, o que implicou em duas impressões do preto, para as áreas de sombras profundas e outra mais clara para os meios tons, cor escolhida da escala pantone, uma variação do branco, quase creme, com um tom um pouco mais quente na impressão. Para a digitalização das imagens foi utilizado o definition and resolution. Cada original de vidro foi escaneado três vezes, sendo uma para luzes, outra para sombras, e outra, ainda, para os tons médios. Outro software foi utilizado para recuperar os detalhes de luzes, sombras e meios tons.
Por fim, faz-se necessário informar alguns aspectos sobre a descoberta do fotógrafo Chichico Alkmim. Sabe-se que em 1978, data de seu falecimento, a família herdou um acervo de 5.000 negativos em vidro, minuciosamente organizado pelo próprio fotógrafo entre os anos de 1950 e 70. Segundo os autores de O olhar eterno de Chichico Alkmim/The eternal vision of Chichico, em 1980, a cidade pôde, por primeira vez, conhecer e avaliar uma fração do conjunto de seu trabalho. A exposição de algumas de suas imagens, no salão do Museu do Diamante, durante o 16o Festival de Inverno/UFMG, despertou o interesse, de pesquisadores e autoridades, para o trabalho de Chichico Alkmim. A partir da estavam criadas as condições para o início do trabalho de higienização, digitalização, indexação e identificação de seus negativos em vidros, a cargo da FEVALE (Fundação Educacional do Vale do Jequitinhonha). Em parte, pode-se dizer que esta atividade, iniciada em 1998, no Centro de Memória Cultural do Vale do Jequitinhonha, em Diamantina- mediante financiamento da FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais) e apoio da Universidade do Estado de Minas Gerais, propiciou a confecção e a publicação do livro ora resenhado.
Muito provavelmente, sua circulação estimular a produção de estudos e análises tanto sobre seu acervo, quanto sobre sua obra propriamente dita. Ao pesquisador da história da fotografia e também dos diferentes campos do saber histórico, investigar este acervo equivaler a imiscuir-se no universo de problematizações sobre a cultura da fotografia de ateliê, praticada nos moldes da fotografia oitocentista e de primeiras décadas dos anos novecentos. Permitirá, quem sabe, compreender e avaliar seus alcances e limites, bem como sua inserção no sistema perceptivo da época.
A beleza das imagens que compõem este livro, as histórias e os mistérios que ele encerra e os desafios analíticos nele contidos são, por si sós, um convite à sua leitura.
Maria Eliza Linhares Borges – Doutora em Sociologia e Professora do Departamento de História/UFMG. E-mail: liliza@uai.com.br
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