As metamorfoses da acumulação capitalista, do poder político e territorial em escala mundial, na passagem para o século XXI, trazem à baila teorias, conceitos e categorias históricas e geográficas há muito excluídas ou afastadas dos debates e discussões. A geopolítica, a geoestratégia, o imperialismo e o território ressurgem para explicar a política internacional dos Estados Unidos. Autores como Michael Hardt, Antonio Negri, Hannah Arendt, David Harvey, entre outros, revisitam o conceito de imperialismo, agora num outro espaço-tempo, com abordagens e entendimentos diferentes, opostos ou complementares.
David Harvey é um dos mais importantes geógrafos da atualidade, professor da City University of New York, autor de vários livros e artigos que versam sobre a economia, a globalização, a urbanização e as mudanças culturais contemporâneas, em diferentes contextos e escalas espaciais, utilizando o que denomina de materialismo histórico e geográfico como parâmetro analítico. Dentre as publicações do autor destaca-se Condição Pós-Moderna, de 1992, que oferece uma vasta contribuição para o entendimento das transformações político-econômicas do capitalismo do final do século XX.
Na segunda edição brasileira de O novo imperialismo, publicada em 2005, David Harvey identifica as “forças motrizes” das ações políticas e econômicas dos Estados Unidos implementadas nos últimos anos. Neste esforço, propõe uma dupla dimensão de análise: a da lógica capitalista e a da lógica territorial de poder. Estas lógicas do poder, embora diferentes, “se entrelaçam de formas complexas e por vezes contraditórias” (p. 34), e seus resultados diferem em cada lugar.
Com base nesta compreensão, o autor atribui a expansão do poder norte-americano à sua forma peculiar de imperialismo, definida como “imperialismo capitalista”. Esta modalidade de imperialismo caracteriza-se pela fusão contraditória da “política do Estado e do Império”, cujo poder se fundamenta no domínio territorial, com os “processos moleculares de acumulação do capital no espaço e no tempo”, assentados no “domínio e uso do capital”. O primeiro elemento refere-se às estratégias políticas, diplomáticas e militares do Estado ou conjunto de Estados, e o segundo, às maneiras pelas quais os fluxos do poder econômico atravessam e percorrem um espaço contínuo na direção de entidades territoriais.
Para Harvey, o que diferencia este tipo de imperialismo de outras concepções de império é a “predominância da lógica capitalista, embora haja momentos em que a lógica territorial venha para o primeiro plano” (p. 36). Para o autor, esta imbricada convivência das lógicas de poder é perspicazmente explicada por Hannah Arendt, para quem “uma acumulação interminável de propriedade […] tem de basear-se numa acumulação interminável de poder” (p. 36-37).
A partir destas bases explicativas, o autor constrói a sua argumentação evidenciando os cenários externo e interno da política norte americana. A análise do primeiro tem como ponto de partida o exame da influência do petróleo nas decisões americanas, destacando as ofensivas dos EUA contra dois grandes produtores de petróleo: a Venezuela, com o golpe de 2002 contra Hugo Chaves, e o Iraque, com a guerra justificada pelos “princípios universais” de liberdade e democracia. A análise do cenário interno, por sua vez, pauta-se na dialética da sociedade norte-americana, marcada pela forte recessão de 2001, pelo afloramento da solidariedade e do nacionalismo desde os ataques do 11 de setembro, e pelo multiculturalismo da sociedade, “movida por um inflexível individualismo competitivo” (p. 22), que tornam mais aceitáveis politicamente as ações militares abertas e unilaterais deste país. Estes dois campos de análise demarcam a “dialética interior-exterior” desenvolvida por Harvey neste livro.
Ao ater-se às razões das investidas norte-americanas no Afeganistão, na Venezuela e no Iraque (e às possibilidades de investidas contra o Irã), o autor questiona a primazia da tese do “tudo por causa do petróleo”. Harvey não considera desprezível o interesse americano por esta fonte de energia, mas não admite que o complexo político-militar dos EUA ou os interesses corporativos aprovassem uma guerra cujas razões recaíssem exclusivamente sobre o petróleo. Desta forma, propõe uma análise para além da estreiteza da teoria conspiratória. Há, portanto, que se pensar na proposição de Klare, segundo a qual “quem controlar o Oriente Médio controlará a torneira global do petróleo, e quem controlar a torneira global do petróleo poderá controlar a economia global, pelo menos no futuro próximo” (p. 25). Isto faz emergir antigas teorias geopolíticas como a de Halford Mackinder, do “poder eurasiano”, sobretudo em função da resistência francesa, alemã, russa e mesmo chinesa à política dos Estados Unidos com relação ao Iraque em 2003.
Ao examinar a forma peculiar de expansão do poder americano, o autor evoca o conceito de “hegemonia” como exercício do poder político que se realiza em três planos: pela liderança e consentimento, pelo domínio via coerção e pela combinação de coerção e consentimento. Todavia, declara corroborar com o pensamento de Arrighi, de que a supremacia de um grupo ou de uma nação-Estado pode manifestar-se de duas maneiras: como dominação ou como liderança moral e intelectual. Esta última ocorre ora pela emulação de outros Estados, ora pela condução do sistema de Estado numa direção desejada.
Para Harvey, a análise da história política dos EUA permite entrever que a hegemonia norte-americana é exercida tanto por meio da dominação e coerção (interna e externa) quanto pelo consentimento e cooperação, pois “se não fosse possível exercer a liderança de uma maneira que gerasse benefícios coletivos, havia muito o país teria deixado de ser hegemônico” (p. 41).
No plano prático, avalia o autor que a dominação e a coerção têm se expressado tanto internamente, pela Lei Patriota e pela Lei de Segurança Doméstica, quanto externamente, pelos golpes militares, em diferentes países, com a participação da CIA e do FMI. Já a cooperação e o consentimento se revelaram, e ainda se revelam, na Declaração dos Direitos Humanos (criada pela ONU), nas ações de segurança das democracias européias, na reconstrução das economias do Japão e da Alemanha Ocidental, na ajuda para a recuperação da economia mexicana, dentre outros.
Apesar dos mecanismos de dominação e coerção, a hegemonia norte-americana não passa imune ao longo do século XX. Desde os anos de 1930, os EUA enfrentam crises como a “Grande Depressão”, superada com o desenvolvimento de uma forma personalizada de imperialismo cujas âncoras se assentam, por um lado, na dedicação do poder político ao individualismo e defesa da propriedade privada e na taxação de lucros e, por outro, na forma de governo voltada para os interesses de classe corporativos e industriais.
Já a crise de sobreacumulação da década de 1970 é enfrentada com mudanças nas engrenagens capitalistas, que deslocam o poder das atividades produtivas para as instituições financeiras e estabelecem um sistema monetário desmaterializado e uma hegemonia por meio das finanças. É no âmbito destas mudanças – que atingem em cheio o trabalho, o espaço e o território – que a expansão geográfica e a reorganização espacial constituem-se em alternativas para a superação da crise de sobreacumulação, por viabilizar novas oportunidades lucrativas para o capital. Para tanto, há que suprimir as barreiras espaciais e acelerar as taxas de giro do capital, tarefas que contam, há muito tempo, com a atuação expressiva do Estado.
Isto posto, Harvey propõe o uso da teoria da “ordenação espaçotemporal” para o entendimento da mobilidade do capital e da atuação do Estado pelo território com vistas à acumulação capitalista e à acumulação do poder político. Defende, assim, a tese de que as ordenações espaço-temporais, em diferentes escalas geográficas, materializam a atuação desigual e combinada do capital e do poder político, por meio da mediação das estruturas e dos poderes financeiros e institucionais. Este processo reforça a existência de uma produção econômica do espaço.
Para o autor, essas ordenações buscam, incessantemente, ajustes na acumulação de capital, o que provoca oscilações de curto, médio e longo prazos, podendo resultar na ascensão e vulnerabilidade, em tempos diferentes, de territórios. Os países do leste e sudeste asiático ilustram este processo. Esta instabilidade nas ordenações espaço-temporais leva a crer que “a paisagem geográfica da atividade capitalista está eivada de contradições e tensões […] é perpetuamente instável diante de todos os tipos de pressões técnicas e econômicas que sobre ela incidem” (p. 87).
Entretanto, para o autor, a afirmação do “novo imperialismo” se dá não apenas por meio desta forma de acumulação puramente econômica, tratada no livro como “opressão via capital”, mas também pela “acumulação via espoliação” e pela “coerção consentida”.
Para analisar o imperialismo sob a ótica da “acumulação por espoliação”, Harvey retoma as contribuições de Rosa Luxemburgo acerca do processo de acumulação capitalista, que considera as “relações entre o capitalismo e os modos de produção não capitalistas” como um outro aspecto da acumulação, cujos métodos utilizados são a pilhagem, a opressão, a fraude, a guerra, entre outros. Ademais, o autor acredita ainda que as características da acumulação primitiva de Marx não se encerraram na “etapa original” do capitalismo; ao contrário, estão presentes nos dias atuais e podem ser notadas sob diferentes perspectivas: na expulsão de populações camponesas e na formação de um proletariado sem terra (México); na privatização de recursos; na supressão de formas alternativas de produção e consumo; na substituição da agropecuária familiar pelo agronegócio, entre outras.
Da mesma forma, o autor adverte que os mecanismos que viabilizam este tipo de acumulação ainda permanecem e, em alguns casos, foram aprimorados ou recriados. São apontados como exemplos desse processo: o sistema de crédito e o capital financeiro; os direitos de propriedade intelectual nas negociações da OMC; a biopirataria; a transformação em mercadoria de formas culturais, históricas e da criatividade intelectual; a corporativização e privatização de bens públicos; a regressão dos estatutos regulatórios destinados a proteger o trabalho etc. Observa-se que estes mecanismos são criados ou contam com forte apoio do Estado ou conjunto de Estados.
Para Harvey, “as leis férreas do processo econômico” conduzido pelos EUA, no âmbito da acumulação por espoliação, são encontradas em diferentes intensidades e contextos: na “venda predatória” dos mercados de habitação norte-americano, na “terapia de choque” pós-colapso da União Soviética, na virada para o capitalismo pela China, dentre outros exemplos. A execução destas leis tem sido garantida pela abertura forçada de mercados, sobretudo pelas “pressões institucionais exercidas por meio do FMI e da OMC, apoiados pelo poder dos Estados Unidos (e, em menor grau, pela Europa) de negar acesso ao seu próprio mercado interno aos países que se recusam a desmantelar suas proteções” (p. 147).
Este cenário leva o autor a corroborar com a avaliação de Arendt, de que, assim como a burguesia britânica, a burguesia norte-americana redescobriu que “o pecado original do simples roubo […] tinha eventualmente de se repetir para que o motor da acumulação não morresse de repente”. Sendo assim, o novo imperialismo é uma “revisitação do antigo, em tempo e lugar distintos” (p. 148).
Simultaneamente, a acumulação por espoliação tem deflagrado “batalhas políticas e sociais e […] vastos golpes de resistência”. Estas lutas se expressam no movimento antiglobalização ou de globalização alternativa, anticapitalista e antiimperialista, espalhadas em várias regiões, embora concentradas nas regiões mais vulneráveis e degradadas, cujas políticas de resistência possuem uma natureza complexa, de cunho socialista, comunista e estatista ou com variadas combinações conflitantes entre eles. Para Harvey, esta tendência multifacetada dos movimentos se contrapõe à idéia de “multidão”, defendida por Hardt e Negri, que assenta as lutas contra a espoliação sob um “estandarte homogeneizante”.
Em última análise, o novo imperialismo se afirma ainda mediante a “coerção consentida”, tanto internamente, pela sociedade americana, quanto externamente, pela emulação de Estados pautada nos princípios de liberdade, democracia, respeito à propriedade privada, ao indivíduo e ainda às leis universais de conduta. Desse modo, as relações “interiores e exteriores” do Estado capitalista e suas vinculações com as formas de imperialismo são minuciosamente analisadas por Harvey. Tendo as formas de imperialismo dos EUA como parâmetro, identifica uma modalidade neoliberal e outra neoconservadora.
A versão neoliberal seria orquestrada (o autor considera que, após a eleição de Bush, houve uma conversão para a modalidade neoconservadora) sobretudo pelo complexo Wall Street-Tesouro-FMI, subsidiado pelo poder econômico via capital financeiro, e a versão neoconservadora se imporia pelo estabelecimento da “ordem e respeito” aos seus princípios, tanto no plano interno quanto externo, exigindo forte liderança e hierarquia de poder. O imperialismo neoliberal e o imperialismo neoconservador são exaustivamente examinados por Harvey para evidenciar os seus rebatimentos na sociedade norte americana e no exterior.
A rigor, tanto os neoliberais quanto os neoconservadores, embora com divergências no plano tático, coadunam com os mesmos objetivos imperialistas. Esta constatação faz com que o autor não visualize mudanças, por meio da alternância de poder nos EUA, no curso da política norte-americana para o controle das regiões petrolíferas.
Harvey polemiza mais ainda, ao defender a tese de que as ofensivas dos EUA contra o Iraque decorrem antes de uma posição de fraqueza econômica e política do que de força. E, ao contrário do que se imagina, podem antecipar o final da hegemonia norte-americana ao invés de assinalar o início de uma nova hegemonia global dos Estados Unidos.
A leitura do livro e os eventos mundiais recentes suscitam várias questões: será pertinente a idéia de que a supremacia econômica dos EUA não carece de supremacia política para a manutenção do seu poder? Os recentes sinais de fragilidade da economia americana, que provocam instabilidade nas principais bolsas de valores do mundo, são indícios de que a tese defendida por Harvey será concretizada? O acordo do biodiesel EUA-Brasil seria uma alternativa de fato à dependência da economia americana ao petróleo ou uma tentativa de obnubilar os reais interesses políticos da pax americana?
Certo é que os eventos recentes parecem ora atestar, ora refutar as idéias de Harvey. Mas, apesar das incertezas, a densidade teórica de O novo imperialismo garante durabilidade às suas análises, visto que não se mostram vulneráveis às mudanças no cenário político e econômico mundial.
Resenhista
Miriam Cléa Coelho Almeida – Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Mestre em Geografia pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). E-mail: miriamclea@gmail.com
Referências desta Resenha
HARVEY, David. O Novo Imperialismo. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005. Resenha de: ALMEIDA, Miriam Cléa Coelho. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 6, n. 1, p. 251-257, 2006. Acessar publicação original [DR]
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