Em outubro de 2018, um número considerável de jornalistas, cientistas políticos e historiadores ficou atônito diante do resultado das eleições no Brasil: o país havia elegido, pela primeira vez, um presidente da República de extrema-direita: Jair Messias Bolsonaro. Integrante do chamado “baixo clero” da Câmara dos Deputados – ala composta por políticos inexpressivos e com pequena capacidade de influenciar decisões importantes –, Bolsonaro notabilizara-se por pronunciamentos sobre temas, no mínimo, polêmicos, como os elogios à ditadura civil-militar e ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, a defesa de milícias e, mais recentemente, a popularização do que seria um “kit gay” a ser utilizado nas escolas de educação básica. Antes uma figura caricata, hoje ele foi alçado ao cargo mais importante do país.
Neste momento, portanto, o livro O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro, de Marina Basso Lacerda, adquire uma relevância ainda maior. Mesmo que a obra tenha sido escrita durante uma parte considerável do período analisado, isso não parece ter sido um problema para a investigação com a qual a autora nos brinda. No livro – originalmente uma tese de doutorado em Ciência Política, desenvolvida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) –, a advogada e analista legislativa da Câmara dos Deputados identifica o fenômeno com perspicácia e ilumina esse cenário ainda um tanto nebuloso. Em resumo, a autora nos ajuda a compreender as razões do recente crescimento neoconservador, que culminou com a eleição de Bolsonaro à Presidência.
O trabalho mostra (e é esta a tese principal do livro) que o conjunto de pautas conservadoras defendidas na Câmara dos Deputados nos últimos anos integra o novo conservadorismo brasileiro. Ele constitui uma reelaboração do neoconservadorismo norte-americano, o qual atuava em uma coalizão formada pela direita cristã, por intelectuais conservadores e por republicanos ortodoxos, reagindo ao avanço de movimentos feministas, LGBTQIA+ e dos movimentos que atuam em defesa dos direitos civis e das políticas de bem-estar social. Os neoconservadores agem no parlamento brasileiro por meio de uma sólida coalizão formada pela bancada da segurança pública e pela bancada cristã – dividida entre católicos e evangélicos, mas com esses últimos assumindo um maior protagonismo.
Lacerda analisa a atuação parlamentar dos deputados ligados à bancada neoconservadora. A escolha da Câmara dos Deputados como lócus de pesquisa possibilita que a autora se aprofunde na dinâmica interna do Legislativo Federal e nos ofereça um panorama sólido da atuação dos neoconservadores em Brasília. A autora também leva em consideração o entendimento de que a Câmara expressa anseios sociais. E justamente um dos méritos do trabalho é revelar mais do que apenas a visão dos parlamentares.
Na Apresentação, a autora indica os diferenciais do neoconservadorismo em relação a outros movimentos conservadores. São dois os aspectos elencados: a lógica de reação às transformações vistas como perigosas e a ideia de a família representar “a resposta para toda ordem de disfunções sociais” (Basso 2019, 18).
No capítulo inicial, Neoconservadorismo nos Estados Unidos: histórico e conceito, as escolhas e as definições conceituais são indicadas, e o surgimento do neoconservadorismo nos Estados Unidos é contextualizado. Assim, Lacerda oferece ao leitor os parâmetros necessários para perceber as equivalências entre o movimento neoconservador brasileiro e o norte-americano. O surgimento do novo conservadorismo nos Estados Unidos ocorreu nos anos 1950, em pleno contexto de Guerra Fria, e se consolidou nos anos 1980, o que contribuiu, de modo decisivo, para a eleição de Ronald Reagan à Presidência e, também, para a expansão internacional do movimento. O ideário político neoconservador é centrado na defesa da família patriarcal, no sionismo, no militarismo anticomunista, no punitivismo e no absolutismo do livre mercado.
Nesse mesmo capítulo, além desse histórico, Lacerda esclarece suas definições teóricas. Em diálogo com Samuel Huntington, ela define o movimento como conservador situacional, ou seja, um movimento de reação surgido em um contexto específico de mudanças sociais importantes, cujo objetivo é conservar o antigo cenário, que está sendo alterado. Pode soar redundante definir o movimento neoconservador como conservador; no entanto, aqui, a autora mostra mais uma vez a qualidade de sua análise e o domínio sobre os conceitos utilizados. Para Huntington, em declaração de 1957, haveria incertezas programáticas no movimento e, portanto, ele não poderia ser visto como conservador, ao passo que Lacerda, discordando do uso do conceito proposto pelo próprio criador, argumenta que, a partir de 1980, eles sabiam por que atuavam. Por isso, esse movimento deve ser considerado conservador, podendo ser enquadrado nos critérios estabelecidos pelo intelectual americano. Além disso, o movimento é politicamente de direita, pois privilegia pautas que, direta ou indiretamente, penalizam os mais pobres, como defender as políticas de austeridade e não buscar promover a igualdade socioeconômica.
Nos capítulos subsequentes, com exceção do último – que trata de Bolsonaro em particular e apresenta um caráter mais ensaístico –, Lacerda aborda os elementos que compõem o ideário neoconservador brasileiro: a defesa da família patriarcal, o punitivismo, o sionismo, o antibolivarianismo e o neoliberalismo, aspectos semelhantes aos do equivalente norte-americano. Em Defesa da família patriarcal: atuação parlamentar em combate ao feminismo e às demandas do movimento LGBT, a lógica de reação do neoconservadorismo fica bastante evidente, o que é ressaltado nos capítulos posteriores. A partir do começo dos anos 2000, com o início do primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, vislumbrava-se um cenário com importantes modificações no país. Os governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores (PT) abriram espaço para políticas públicas consideradas progressistas, ao mesmo tempo em que movimentos feministas e LGBTQIA+ avançavam, o que indicava mudanças no horizonte político nacional.
Suscitaram forte reação evangélica na Câmara alguns pronunciamentos, vindos do Executivo, favoráveis ao aborto; o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da constitucionalidade do casamento homoafetivo; e, ao fim, a preparação, por parte do governo federal, de um material didático-pedagógico contra a homofobia, para ser distribuído em escolas de educação básica, o qual ganhou de Bolsonaro a alcunha de “kit gay”. É importante assinalar que a reação iniciou antes do crescimento da bancada conservadora, crescimento esse que ocorreu nas eleições de 2014. Ou seja, não é o aumento da bancada evangélica que explica o maior ativismo neoconservador, mas o contrário. A reação evangélica a pautas mais progressistas antecedeu a ampliação neoconservadora na Câmara. O que aconteceu com Bolsonaro é uma clara demonstração disso: quando o capitão deslocou a sua atuação, incluindo em seus pronunciamentos, pautas conservadoras ligadas à proteção da família patriarcal, a sua votação quintuplicou.
Em Idealismo punitivo: atuação parlamentar pelo rigor criminal, Lacerda demonstra a atuação da coalizão neoconservadora na Câmara (entre as bancadas evangélica e da segurança pública), no que se refere às pautas punitivistas, como a redução da maioridade penal e a manutenção dos autos da resistência para policiais. A autora chega aos resultados mediante o cruzamento de informações sobre como os membros dessas bancadas se posicionaram nas votações desses projetos. Com esse procedimento metodológico, ela percebe a afinidade de pensamento e a ação articulada entre esses grupos. A articulação entre as duas bancadas não deve ser explicada somente em virtude do seu pragmatismo – já que, isoladas, ambas são minoritárias –, mas também como uma aliança de valores.
A contrariedade dos neoconservadores ao regime político da Venezuela e o apoio a Israel são os temas desenvolvidos em Bolivarianismo e sionismo: inserção internacional religiosa e anticomunista. O regime bolivariano é encarnado como sendo o socialismo do século XXI, o que levaria a um equivalente brasileiro da luta travada pelos conservadores norte-americanos contra o comunismo da antiga União Soviética.
Porém, há uma diferença importante destacada por Lacerda: enquanto os americanos defendiam ações militaristas para derrotar os soviéticos pela disputa da hegemonia mundial, os brasileiros, diferentemente, defendem a inserção subalterna do Brasil na arena internacional, sob a liderança dos Estados Unidos. A aproximação com Israel é explicada por motivos estratégicos, ideológicos e religiosos. A autora destaca a teoria do dispensacionalismo, segundo a qual a criação do Estado de Israel é um sinal das previsões bíblicas sobre o fim do mundo.
Ajudam a explicar a aproximação evangélica com o neoliberalismo, a Teologia da Prosperidade – doutrina segundo a qual a reciprocidade e a fé serão recompensadas nesta vida – e a ideia de valorizar a família e o âmbito privado, a fim de se eliminarem os problemas sociais. A forte convergência entre as agendas neoconservadoras e neoliberais é o tema tratado em Neoliberalismo: atuação parlamentar por desnacionalização, desregulamentação, privatização e valores de mercado. Nesse capítulo, Lacerda mostra como a coalização neoconservadora age para aprovar projetos de acordo com os princípios do livre mercado. Apoiadores desse receituário costumam não admitir que as políticas de Estado mínimo trazem prejuízos para os trabalhadores mais precarizados; pelo contrário, eles afirmam que elas trarão benefícios para todos.
Lacerda apresenta um dado curioso sobre a atuação evangélica em relação à reforma trabalhista aprovada em 2017, durante o governo de Michel Temer: o engajamento da bancada evangélica foi sensivelmente menor, quando comparado ao ocorrido com outras pautas neoliberais. Esse dado sugere que, provavelmente, devido ao fato de a base evangélica ser consideravelmente mais pobre, ela sentiria imediatamente os efeitos prejudiciais da reforma, o que tornaria mais difícil defendê-la. Isso indica um receio dos deputados com possíveis reflexos negativos dessa reforma na própria base de sustentação eleitoral.
A autora dedica o derradeiro e ensaístico capítulo, Jair Bolsonaro e neoconservadorismo quarenta anos depois, para oferecer possíveis explicações para a ascensão do novo conservadorismo. Lacerda analisa os pronunciamentos de Bolsonaro na Câmara e identifica que, no passado, os assuntos mais abordados por ele foram os militares e – por meio de críticas – o Partido dos Trabalhadores (PT), Lula e Dilma Rousseff, não havendo propriamente manifestações sobre pautas conservadoras. Foi apenas no primeiro mandato de Dilma, entre 2011 e 2014, que a atuação dele sofreu uma mudança, ao incorporar temáticas neoconservadoras em seus discursos. Nas eleições seguintes, sua votação aumentou cinco vezes. Dessa maneira, ele abriu caminho para se lançar como candidato à Presidência da República, em uma campanha que, como sabemos, foi vitoriosa.
Marina Lacerda nos oferece um texto fluido e de leitura agradável; a sua escrita segura torna possível percebermos o desenvolvimento de seu raciocínio a cada capítulo. Contribui para isso a estrutura do trabalho, construída com coerência à sua problemática. Além da qualidade textual, o livro é sólido empiricamente. A cada questionamento, a autora apresenta inúmeros documentos legislativos, que corroboram com as suas asserções. Ela revela um vasto conhecimento sobre as fontes documentais com as quais trabalha e, também, a respeito dos processos legislativos da Câmara (o fato de ela ser funcionária da casa seguramente contribuiu para isso).
Embora Lacerda se restrinja à Câmara dos Deputados, essa escolha demonstrou ser sensata, pois possibilitou um domínio sobre a documentação. A pesquisadora trouxe informações importantes, como, por exemplo, o fato de Jair Bolsonaro ser um dos deputados neoconservadores mais ativos em termos de pronunciamentos, ao contrário do amplamente divulgado: pertencente ao “baixo clero”, ele praticamente não havia proposto nada. De fato, ele propôs poucos projetos de lei; porém, proferiu uma grande quantidade de discursos. Isso ajuda a explicar como ele se tornou a principal referência neoconservadora do Congresso e também o fenômeno eleitoral que viria a ocupar o Palácio do Planalto. Certamente, o livro de Marina Basso Lacerda representa uma luz para ajudar a explicar estes nossos tempos sombrios.
Referência
LACERDA, Marina Basso. O Novo Conservadorismo Brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Zouk, 2019.
Resenhista
Artur Duarte Peixoto – Doutorando e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autor da dissertação “Jogar com a História: Concepções de tempo e História em dois jogos digitais baseados na temática da Revolução Francesa.” Temas de pesquisa: ensino de história e teorias da história. E-mail: clio.ardupe@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-6951-9834
Referências desta Resenha
LACERDA, Marina Basso. O Novo Conservadorismo Brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Zouk, 2019. Resenha de: LACERDA, Marina Basso. O neoconservadorismo norte-americano bate às portas do Brasil. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.27, n.2, p. 414-419, 2021. Acessar publicação original [DR]
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