O Negro no Livro Paradidático | Fernando Santos de Jesus

Antes da aplicação e sistematização da Lei 10.639/03 – a qual visa instituir a obrigatoriedade dos conteúdos de História e Culturas Afro-Brasileira e Africana nos currículos de todos os níveis de ensino do país – ainda no século XX, muitos intelectuais negros já questionavam as maneiras pelas quais a população negra era representada na literatura, nas artes e sobretudo, midiaticamente. Levava-se em consideração o histórico recente das teorias racialistas que perpassaram desde o fim da abolição, os debates políticos e intelectuais que, de modo direto, subalternizaram e desumanizaram os africanos e seus descendentes no país.

Tais pressupostos científicos foram elaborados a partir de instituições e políticos renomados que tinham ligações diretas com a aplicação de políticas públicas, tendo como uma das principais consequências a consolidação de estereótipos sobre os negros. Tal como, nas escolas de medicina do Rio de Janeiro, os estudiosos concentravam-se em temas como degenerescência e doenças tropicais associados às pessoas negras (SCHWARCZ, 1993).

Este último assunto, por sinal, foi o que provocou mais discussões e resultados, levando em conta às políticas eugenista que incentivou e guiou políticas públicas que buscavam higienizar o Centro da cidade do Rio. Porque constituir uma nação idealizada nos moldes europeus era integrar um povo branco, higiênico e bem educado, de acordo com os bons costumes e a civilidade. Boa parte destes cientistas, estavam imbuídos da ideologia do branqueamento – materializada pela mestiçagem – e que se manteve como discurso hegemônico desde o final do século XIX até meados do século XX.

Desta forma, alimentou-se um imaginário social racista que se manifesta até os dias de hoje, inclusive no que se refere à participação do negro nas estruturas nacionais de poder. Todavia, a partir destas considerações, qual seria o papel da educação brasileira e os seus mecanismos para tomar consciência do processo ideológico que, por intermédio de um discurso mítico acerca do negro, engendrou uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada, na qual boa parte da população o reconhece?

Problematizando que as escolas da rede pública e a maioria das privadas utilizam livros didáticos e paradidáticos como recursos paralelos às aulas expositivas, é possível, ainda hoje, observar imagens e conhecimentos compartilhados nestes objetos que alimentam o racismo por meio de textos e imagens que não destacam as contribuições civilizatórias de vários grupos étnico-raciais para além do branco. Neste sentido, nos aproximamos das premissas de Bordieu (1998), pois “tudo tende a mostrar que o sistema escolar é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais” (BORDIEU, p.41).

Isto não significa dizer que o meio escolar não transforma um indivíduo a ponto de fornecer olhares para indagar valores do meio social em questão ou que deixamos de acreditar no sistema educacional brasileiro; mas criticar os moldes da escola fincados pelo colonialismo, que se manifesta por intermédio daquilo que entendemos como colonialidade2. Ademais, é importante se opor à escola tradicional como única fonte de se alcançar conhecimento, como geralmente é interpretada e romantizada, o que dá crédito ao mito da escola libertadora.

Tendo em conta algumas destas hipóteses, em 1995, Ana Célia Silva publicou o livro “Desconstruindo a Discriminação do Negro no Livro Didático”, percebendo que ainda era manifestada nos livros didáticos um pensamento que solapava a autoestima da população negra e contribuía, sem desvios, para manutenção do racismo. Visto que, a importação de modelos culturais e estéticos europeu nos livros, engessava outras formas culturais por meio de uma visão colonizada, o olhar da estereotipia e do exotismo. O que acabava por afetar, portanto, a subjetividade e a construção da identidade étnico-racial do negro. E, mesmo após vinte e dois anos, esta tarefa ainda se mostra necessária e muito pertinente. Considerando que dados estatísticos recentes comprovam o quão desigual são os percursos vivenciados por pessoas negras em comparação com as trajetórias de pessoas brancas nos meios políticos, econômicos e sociais.

Por conta destes indícios, o filósofo e pedagogo Fernando Santos de Jesus, lançou a obra “O Negro no Livro Paradidático” pela editora Gramma, no fim do ano passado, com objetivo de analisar, minuciosamente, de que forma a história e as culturas africana e afro-brasileira estão sendo expostas, só que agora, nos livros paradidáticos. Com isso, Jesus contribui imensamente para o processo de reconstrução da identidade e da autoestima do negro, oferecendo inúmeras problematizações aos educadores brasileiros. Sendo, a principal delas, o papel de pessoas negras nas comissões de avaliação e feitura dos livros didáticos e paradidáticos.

O livro é dividido em três capítulos, cujo os títulos seguem a ordem: “Os negros e as suas possibilidades de ser: breves reflexões sobre a construção do ser negro”; “As produções e os usos dos livros didáticos e paradidáticos: onde estão os negros nessa história?”; e “O negro no livro paradidático: uma análise das obras complementares do PNLD 2013”. Além desses temas, o autor inseriu, em cada capítulo, três partes, numa espécie de eixos, os quais pretendo discorrer, de maneira crítica, ao longo deste texto.

Com exame profundo e uma análise científica rigorosa, com a pretensão de alertar o leitor para entendimento de suas propostas, Jesus enumera, de início, seus principais problemas, objetivos e métodos utilizados para realização do trabalho. O problema central que atravessa a obra é entender se depois da Lei 10.639/03, os livros paradidáticos ainda estão sendo influenciados pelas teorias racistas que perduraram por mais de três séculos na história do ocidente. E, além disso, se os contrapontos conceituais elaborados pela intelectualidade negra estão sendo levados em consideração pelos editais e comissões de livros didáticos no Brasil e qual seria a participação destes pensadores, se suas obras e inúmeras contribuições para educação das relações étnico-raciais estão sendo tratadas nos livros paradidáticos.

Para tal, o autor faz análises sobre três livros paradidáticos – Capoeira, Chiquinha Gonzaga e A Vida em Sociedade – utilizando alguns critérios específicos, tal como a área de conhecimento, que neste caso, é das ciências humanas. Dedicando um eixo específico só para explicar estes parâmetros, Jesus menciona que localizou as obras que contemplassem a temática racial ou que privilegiassem a questão da formação social mais ampla.

Jesus elucida que o livro paradidático é transversal ao didático, isto é, serve como apoio complementar que pode servir ou não para os conteúdos pendentes. Assume-se como uma literatura de expressão mais livre e menos direcionada “para funcionamentos fechados acerca de temas que visem compor ordenamentos teóricos indispensáveis para o aprofundamento de ideias cruciais a saber-se” (p.254).

No primeiro capítulo, englobando três eixos, o autor argumenta sobre os processos de produções de sentidos sobre o negro, em uma discussão a partir do século XVIII, entendendo que a criação das teorias raciais a partir deste século, no contexto europeu e norte-americano, foi, posteriormente, importada e aplicada à realidade brasileira, difundindo-se novas interpretações raciais que persistem até os dias de hoje.

A perspectiva utilizada pelo autor para entender o racismo enquanto um fenômeno complexo e multifacetado é singular. Uma vez que, muito por intermédio das interpretações históricas e sociológicas sobre o surgimento do racismo, e pela consolidação das escolas de pensamento póscolonial e decolonial, a invenção da raça e por consequência, o racismo é visto ora como fruto da modernidade europeia, ora como gerador desta modernidade, que sem a escravização de pessoas africanas este processo não seria possível. Estas teses são, digamos de maneira direta, as mais aceitas no universo acadêmico, apesar de serem construídas de modos distintos.

Citando caso análogo, Mbembe (2014) entende que a modernidade produziu uma espécie de delírio, onde o negro e a raça foram cimentados com designações perturbadoras e como sinônimos na mentalidade europeia “de verem seus corpos e pensamentos operados a partir de fora e de se verem transformados em espectadores de algo que, ao mesmo tempo, era e não era a sua própria existência” (MBEMBE, 2014, p.21). Portanto, só seria possível pensar em modernidade por intermédio da invenção da raça e da escravização de pessoas africanas. Sendo o negro, o único de todos os humanos que tivera a carne transformada em coisa e seu espírito em mercadoria.

A razão negra, segundo Mbembe (2014), designa tanto uma coleção de discursos que “consistiu em inventar, contar, repetir e pôr em circulação fórmulas, textos, rituais, com o objetivo de fazer acontecer o Negro enquanto sujeito de raça e exterioridade selvagem, passível a tal respeito de desqualificação moral e de instrumentalização prática” (2014, p. 58). Deste modo, em sua perspectiva, funda-se a “consciência ocidental do Negro”.

Jesus, de outro modo, oferece-nos uma interpretação de conflitos raciais a partir da antiguidade ocidental, operando por uma mudança de paradigma que nos permita enxergar o racismo na história de outro modo. Dialogando com as teses de Carlos Moore (2007) e Kabengele Munanga (2003), o autor menciona que, desde a antiguidade, muitos povos disputavam territórios e as guerras e carnificinas ocorridas tinham como pano de fundo apelos raciais, pois diferentes grupos identificavam os outros grupos e a si mesmos pelos traços fenotípicos, fazendo, ideologicamente, emergir o ódio pelo diferente.

Assim sendo, diferente da perspectiva anterior, o racismo não surgiria e nem se organizaria em torno do conceito biológico de raça, e muito menos, a partir da escravização das pessoas africanas, mas sim a partir de um dado universal inegável: o fenótipo. Possuindo uma profundidade histórica maior que os últimos quinhentos anos da hegemonia ocidental e prolongando, por conseguinte, suas raízes nas estruturas pré-capitalistas e pré-industriais ainda na antiguidade.

Não obstante, com estas discussões e ao falar dos impactos das teorias racialistas no Brasil, Jesus, indiretamente, contribui para criticarmos a recente banalização e a trivialização da escravidão racial e do racismo em geral, sobretudo no Brasil, corriqueiramente atribuído à classe social3. O racismo antinegro, muito por conta de novas pautas aderidas pelos recentes movimentos sociais no país, se confunde com outras formas de opressões. Ora, podemos entender como desonestidade intelectual, uma mera ingenuidade ou como necessidade puramente ideológica. Na verdade, o que é demonstrado, é a confusão entre racismo e preconceitos, que pode legitimar e consolidar a posição do segmento racial dominante4.

Logo, propor outras leituras do racismo que não a hegemônica, é entender que o racismo não se trata, em si, de um preconceito, mas ele gera os piores e mais violentos preconceitos, onde a “gênese deste fenômeno não parte de elaborações intelectuais conscientes, mas de conflitos longínquos cujas origens se perdem no fundo do tempo, persistindo na consciência contemporânea sob forma fantasmática, simbológica e atemporal” (MOORE, 2007, p.209).

Após discorrer sobre estes pontos, o autor, no segundo capítulo, fundamenta um panorama sobre o mercado editorial e os livros paradidáticos, naquilo que, no meu olhar, seria o foco inovador e a parte central do livro. Jesus faz uma abordagem histórica sobre os livros didáticos e paradidáticos no país, desvendando como as políticas e as comissões se comportaram e se comportam frente as discussões das relações étnico-raciais. Cabe salientar, que neste capítulo, o autor menciona, de modo constante, aspectos do primeiro capítulo para descrever como o Estado brasileiro comportou-se na produção dos livros com conteúdos racistas ao longo de nossa história, tendo em conta as teorias racialistas dos séculos anteriores.

O que, segundo ele, como consequência destes processos, se materializou na exclusão do debate racial por muito tempo, bem como na restrição de pessoas negras a ocupar os espaços de decisão dos conselhos editoriais. “O resultado traduz-se em problemáticos livros didáticos e paradidáticos no que tange o lido da questão racial, afirmando estereótipos na intencionalidade de manter os negros afastados desses espaços” (p.5).

Posto isso, com a exclusão dos espaços decisórios de poder para compor as comissões de avaliação e feitura dos livros didáticos, é comum que as demandas dos povos negros não estejam sendo contempladas e materializadas nos livros, visto que as pessoas negras não fazem parte da composição destas comissões. Por consequência, isto implica na não contestação das rotulações que desqualificam as mesmas. Infelizmente, por essa não participação, é possível, assim como constatou Jesus na análise das obras por ele selecionadas, livros que desqualifiquem o “outro” encarados como normais. Os efeitos destes livros levam a resultados desastrosos no âmbito educacional, sobretudo na subjetividade de crianças negras.

Notas

2 Na perspectiva de Quijano, a colonialidade é um dos elementos constitutivos de um padrão mundial eurocêntrico, que consolida a “concepção de humanidade segundo a qual a população do mundo diferenciase em inferiores e superiores, irracionais e racionais, primitivos e civilizados, tradicionais e modernos” (QUIJANO, 2010, p. 86).

3 No Brasil é muito recorrente, a partir de uma abordagem marxista, a interpretação das questões raciais por intermédio da classe. Este aspecto é abordado desde as primeiras contribuições sociológicas das relações étnico-raciais e colabora, decisivamente, para a permanência de alguns traços das desigualdades raciais. Visto que, o primeiro aspecto da branquitude é ressaltar a classe para não assumir o racismo, por isso é muito presente o argumento do “branco pobre”, inclusive este argumento foi muito utilizado para deslegitimar as ações afirmativas para negras e negros no Brasil. A tese de que nossos problemas raciais refletem determinadas relações de classe, ao meu ver, é insuficiente, pois explica apenas aspectos parciais da questão.

4 Nesta direção, Jesus nos mostra, perpassando pelas ideias racialistas, que o racismo produzido pelo colonizador europeu em relação aos povos africanos é diferente de outras formas de relações racistas vivenciadas na história da humanidade, pois, o que fundamentou as bases desta relação racista foi a perspectiva de superioridade e inferioridade, incluindo o antagonismo humanidade e não humanidade. Assim, os africanos e seus descendentes eram mais do que inferiores, eram não humanos.

Nesta direção, mesmo com as mais variadas pressões exercidas pelos movimentos sociais negros em todo este período, considerando a lei 10.639/03, os intelectuais negros foram isolados nestes processos de legitimação de conteúdo a serem ensinados nas escolas, “entendendo que o currículo e livro didático são os dois pontos cruciais no modelo controlador de educação que se estabelece nas escolas brasileiras” (p.253). Assim, Jesus analisa o atual plano nacional do livro didático e, posteriormente, questiona, fazendo uma breve análise, dos editais de compras de livros e como as questões sobre relações raciais estão sendo configuradas e apresentadas desde a instituição desta nova etapa de política de livros.

Na linha argumentativa desenvolvida pelo autor sobre os livros selecionados e suas considerações finais a respeito dos temas suscitados, é apresentada uma discussão teórica com relação às teorias raciais do século XVIII e os seus efeitos na sociedade brasileira por intermédio do processo de escolarização que tem como base o livro paradidático. Dado que, o autor procura entender como se processa o pensamento social brasileiro nos dias de hoje e se os livros selecionados ainda manifestam e reproduzem as mesmas perspectivas alimentada pelo estado brasileiro ainda no século passado.

Apesar de dois, dos três livros selecionados pelo autor apresentar um balanço positivo no que se refere às relações étnico-raciais, as obras aparentavam alguns problemas. Contudo, é possível dizer que a Lei 10.639/03 surtiu alguns efeitos, em que os livros atuais podem operar sob o signo da luta antirracista, valorizando a cultura afro-brasileira. Mas para tal, faz-se necessário incorporar apenas essas obras, bem como pessoas negras no espaço de seleção dos livros atribuídos às escolas.

Os livros, de maneira geral, carecem, na perspectiva do autor, de notas explicativas que situem o leitor sobre a condição da população negra em todos os campos possíveis de modo acessível e direto, sobretudo no epistemológico, pois algumas premissas ainda esvaziam a discussão sobre o racismo e engessam outras maneiras de conhecer e observar às relações sociais. Há uma necessidade de pluralizar os debates a partir da criação de novos conceitos, novos personagens e novas biografias.

Dito de outra forma, a partir das considerações de Deleuze e Guatarri, o autor propõe que, mesmo não havendo uma pessoa negra num determinado evento em um dado contexto histórico, é importante inseri-la criando personagens conceituais, para que outras populações façam parte daquele plano histórico e que não fique destinado somente as pessoas brancas, mesmo que o personagem não tenha existido. Entretanto, é de suma importância sinalizar que estes personagens não podem alimentar ou difundir imagens preconceituosas, eles devem romper com estereótipos.

Porque, se levarmos em consideração a exclusão política do negro em vários processos importantes na história do país, ou até mesmo, em processos mais simples, a inserção de um personagem negro com características positivas assumiria um imenso sentido valorativo. Estes personagens melanodérmicos “seriam somente os responsáveis por fazer as interfaces do conhecimento que ficam obsoletos nas biografias que se pretendem oficiais” (p.258).

Todavia, para que esses processos ocorram e para que haja, efetivamente, o rompimento com determinadas características que ainda subalterniza a condição do negro nos livros paradidáticos, é imprescindível conceder oportunidades para pessoas negras participarem ativamente das comissões que compõe políticas de produção desses livros. Assim, haverá mais precisão nas produções das obras, deixando de lado aquelas que ainda reproduzem aspectos negativos sobre os negros, e por outro lado, por em destaque as outras que ressignifiquem e recontem as histórias dos negros que prestaram incomensuráveis e substanciais contribuições ao Brasil.

Referências

BORDIEU, Pierre. A Escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014.

MOORE, Carlos. Racismo & Sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. Mazza, 2007.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa & MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010, (p.84-130).


Resenhista

Rhuann Fernandes


Referências desta Resenha

JESUS, Fernando Santos de. O Negro no Livro Paradidático. Rio de Janeiro: Gramma, 2017. Resenha de: FERNANDES, Rhuann. Revista Outrora. Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 251-258, jul./dez. 2018. Acessar publicação original [DR]

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