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O navio negreiro: uma história humana – REDIKER (H-Unesp)

REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. Trad. Luciano Vieira Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, 456 p. Resenha de: BARREIRO, José Carlos. História [Unesp] v.32 no.1 Franca Jan./June 2013.

A escravidão negra no Brasil é, provavelmente, um dos temas mais pesquisados pela historiografia brasileira. Muito se escreveu sobre o trabalho escravo nas lavouras de cana e café, no trabalho doméstico e nas cidades, com a prestação de pequenos serviços aos senhores, feita geralmente sob a condição de escravos de ganho.

As controvérsias entre as múltiplas formas de abordagem do tema continuam alimentando instigantes discussões entre os especialistas. Há os que defendem a ideia de que, no Brasil, a escravidão foi mais amena, comparada à de outros países. Outras vertentes enfatizam a brutalidade a que os escravos estavam submetidos nas relações de trabalho, o que impossibilitava sua reação ao sistema, eternizando-se sua condição de escravo. Muitos outros historiadores têm ressaltado, mais recentemente, a existência de uma consciência escrava que, embora fragmentária e ambígua, elevava o escravizado à condição de pessoa, como tal, capaz de se colocar como sujeito de sua própria libertação por meio de suas lutas cotidianas ao longo do tempo. Contudo, na maioria das vezes nossos estudos se limitam ao entendimento do escravo desde seu desembarque nos portos brasileiros até sua inserção nas relações de trabalho. São poucos ainda os que investigam as diversas etnias, culturas e linguagens dos habitantes do continente africano.

Marcus Rediker, ao contrário, percorre o caminho completo e complexo da reinvenção da escravidão no mundo moderno. Neste seu livro, desvenda a ação, muitas vezes concertada, das elites daquele continente aliadas ao comerciante europeu e ao capitão de navio e seus ajudantes no aprisionamento e venda dos escravos para as colônias do novo mundo. Estes deixavam suas terras para, amontoados nos porões dos navios negreiros, chegar a seu destino após meses de travessia.

Nesse sentido, a edição brasileira do livro de Rediker parece bastante oportuna para instigar a ampliação de nosso olhar historiográfico no exame da questão da escravidão sob uma ótica mais globalizada. Precisamos de mais pesquisas sobre a escravidão brasileira que a entenda como parte de uma economia atlântica que envolve não só Portugal e Brasil com todas as suas capitanias, mas também várias regiões do continente africano e outros países da América do Sul.

Em seu livro O tráfico negreiro: uma história humana, Rediker estuda a idade do ouro do tráfico negreiro no atlântico norte, ocorrida entre 1700 e 1808, quando 2/3 do total de escravos africanos foram transportados para as colônias inglesas em navios britânicos e americanos. Seu tema consta justamente de conhecer esses navios e sua composição, procurando saber como viviam as tripulações e os cativos durante a travessia atlântica, até a chegada ao novo mundo para o trabalho nas plantations.

Rediker está profundamente envolvido com o objeto que estuda. É sob a perspectiva de uma história militante que o autor elabora uma minuciosa etnografia do navio negreiro, revelando a verdade cruel que setores dominantes da sociedade inglesa do século XVIII procuravam esconder de si mesmos e da posteridade. Neste sentido, a tortura generalizada e o terror que caracterizaram a prática do tráfico e da escravidão transformaram o navio negreiro, diz o autor, em um navio-fantasma que ainda hoje viaja nas fímbrias da consciência moderna.

Nesta linha, é bastante apropriada a forma como constrói seu livro, descrevendo do primeiro ao último capítulo casos impactantes de castigos, epidemias e crueldades que ocorriam durante a travessia. Os acontecimentos do navio Zong, em 1781, capitaneado por Luke Collingwood, são apenas alguns dos exemplos destacados no livro que, segundo o autor, constituiu-se provavelmente na mais terrível das atrocidades ocorridas ao longo dos 400 anos de história do tráfico.

Quando efetuava a travessia, o capitão Collingwood reuniu os marinheiros para ordenar que os escravos atingidos pela epidemia que assolava o navio fossem atirados ao mar para evitar maiores prejuízos com a morte de muitos outros mais. Apesar da oposição de alguns membros da tripulação, prevaleceu a vontade do capitão e, já na primeira noite, a tripulação atirou ao mar 54 escravos de mãos amarradas. Dois dias depois, outros 42 foram arremessados ao mar e, posteriormente, mais 26. Dez escravos assistiram ao pavoroso espetáculo e atiraram-se ao mar por vontade própria (p. 248).

Todo o drama começava com a construção do navio por uma equipe especializada de trabalhadores dos estaleiros, encomendado pelo comerciante com a tonelagem e as especificações adequadas para tráfico e para o transporte das mercadorias que seriam trocadas por escravos nas feitorias da Costa da África. À construção do navio seguia-se a montagem da tripulação, que envolvia a contratação do capitão, do piloto e também geralmente de um médico. Os marinheiros comuns eram arregimentados pelo capitão do navio, que percorria as tabernas encontrando-os quase sempre bêbados e sem dinheiro. Embora sempre querendo esquivar-se do trabalho nos navios negreiros, acabavam, sem alternativa, assinando contratos enganosos e embarcando para a costa da África.

As várias tribos do continente africano viviam em estado de guerra permanente mesmo antes da chegada dos europeus, e os capitães de navio entravam em contato com as elites negras para adquirir suas presas em troca de armas e outras mercadorias. Por exemplo, em alguns momentos históricos, os fons ou os axantes estendiam seus domínios sobre povos vizinhos. Havia também “guerras permanentes” entre grupos menores, como os conflitos entre os golas e os ibaus. Assim, a maioria dos africanos que se encontravam em navios negreiros teve esse destino porque eles haviam se transformado em prisioneiros de guerra vendidos aos traficantes por chefes de tribos poderosas da África. As guerras ocorriam com muita frequência entre as tribos africanas. Mas muitas vezes elas eram estimuladas pelos traficantes europeus e americanos e começavam assim que um navio negreiro aparecia na costa.

Os comerciantes locais, com a ajuda – e armas – do capitão do navio negreiro, preparavam pequenos destacamentos que eram conduzidos por canoas ao interior do continente para fazer guerra e recolher os escravos, que eram depois vendidos ao financiador da expedição.

Um dos pontos fortes da pesquisa refere-se à parte em que o autor reconstitui o vigoroso movimento abolicionista inglês para conseguir o fim do tráfico de escravos na Inglaterra, cujo pico ocorreu por volta dos anos 1788-1789. A partir de então, esse grupo de homens tomou consciência de que os horrores do tráfico de escravos eram moralmente indefensáveis e essa violência devia ser conhecida em todos os portos africanos de embarque e também nos principais portos e cidades inglesas e americanas.

Rediker reconstitui minuciosamente o movimento dos abolicionistas e reúne farta documentação produzida por aqueles homens em sua intensa militância. Com esse material, consegue desvendar aspectos importantes de toda a cadeia do tráfico, desde o porto de embarque até seu destino final, utilizando-se de pesquisas e depoimentos que os abolicionistas ingleses prestaram ao parlamento britânico, à época do esforço que empreendiam para a cessação do tráfico. Com sua luta, eles conseguiram tornar o navio negreiro uma realidade palpável, por meio da produção de muitos pronunciamentos, palestras, poesias e recursos visuais.

É particularmente notável a luta, a liderança e o trabalho do abolicionista Thomas Clarkson que, junto com seus companheiros, percebeu que o movimento não podia avançar sem provas. Clarkson percorreu as associações comerciais e as alfândegas de Bristol e Liverpool, lá encontrando listas de chamadas pelas quais computou os índices de mortalidade dos escravos, além de nomes de 20 mil marujos, para saber o que acontecera com eles. Reuniu ainda contratos salariais para verificar as condições de trabalho e emprego daquela gente. Mas, acima de tudo, ao trabalhar como um historiador social e adotar uma abordagem baseada na história oral, Clarkson foi ao encontro das pessoas na zona portuária para entrevistá-las.

Seguindo a narrativa de Rediker sobre a luta dos abolicionistas ingleses (viva e bem documentada), é impossível não nos perguntarmos a respeito do caráter relativamente inexpressivo do movimento abolicionista brasileiro, se comparado à luta incomensurável dos ingleses, que acabaram vencendo o lucrativo e tenebroso negócio do tráfico no Atlântico Norte. Se história de tal intensidade existiu no Brasil ela ainda espera, adormecida, por historiadores que a ressuscitem dos empoeirados arquivos brasileiros e portugueses.

Além da documentação produzida pelos abolicionistas, Rediker encontrou inúmeras memórias de capitães de navios negreiros, registros e depoimentos de médicos que faziam parte da tripulação do navio, diários de viagens para a África, bem como depoimentos e biografias de marinheiros comuns. Chama atenção a acuidade com que a documentação é analisada, principalmente quando se trata de registros mais conhecidos, como a biografia do marinheiro comum Olaudah Equiano. Rediker compara os vários estudos já existentes sobre Equiano peneirando eventuais exageros contidos na biografia ou separando o que ali existe de ficção e realidade.

É possível entender o valor informativo e crítico da obra de Rediker não apenas pela farta documentação que conseguiu encontrar, mas também por ter se beneficiado com uma volumosa massa de pesquisas sobre a África produzida por historiadores ingleses e americanos, divulgadas nas últimas três décadas em forma de livros e revistas especializadas.

Da versão atualizada dos trabalhos de David Eltis, Stephen D. Behrendt, David Richardson e Herbert S. Klein, A transatlantic slave trade: a database on CD-ROM, Rediker utilizou-se de dados quantitativos importantes que serviram de complemento e sustentação à documentação de caráter mais qualitativo. Mas seria impossível pensar no êxito dessa empreitada de Rediker sem sua sensibilidade e envolvimento com a causa que abraçou.

José Carlos Barreiro – Professor Titular de História do Brasil do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, UNESP. Av. Dom Antônio, 2.100, Jardim Universitário, CEP 19 806-900, Assis-SP.

Itamar Freitas

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