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O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330) | Alain Boureau

Conspirações, redes de heréticos ameaçando a cristandade, demônios dotados de poder e prontos a se fundir com os humanos. Esse é o pano de fundo no qual se desenrola a construção de uma ciência dos demônios, a demonologia, entre o fim do século XIII e início do XIV. O argumento é que essa construção ocorreu no âmbito escolástico. Em síntese é assim que se pode resumir o livro Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330), de Alain Boureau.1 O livro foi publicado originalmente em 2004, na França, sob o título Satan héretique: Naissance de la démonologie dans l’Occident médiéval (1280-1330). A tradução, no entanto, é recente: em 2016, por Igor Salomão Teixeira2, na coleção Estudos Medievais, da Editora da UNICAMP. Esse é primeiro livro de Alain Boureau publicado no Brasil.

Partindo de pressupostos da história intelectual, na relação texto/contexto, Boureau desenvolve o argumento que o nascimento da demonologia ganhou força a partir do final do século XIII e nas primeiras décadas do século XIV junto aos debates escolásticos nas universidades. Demonologia essa que o autor defende ser “(…) a gênese da obsessão demoníaca (…) plenamente provida de procedimentos e de certezas por volta de 1430-1450 (…)” (BOUREAU, 2016: 19) que dá início à “caça às bruxas”. Ao longo dos sete capítulos do livro é discutido como o demônio emergiu fortalecido e capaz de ameaçar a Cristandade. O diabo, e seus poderes sobre os homens, estava cada vez mais presente nas discussões de teólogos e canonistas naquele período. Nessas considerações é possível perceber o que o autor chama de “antropologia escolástica”. A antropologia escolástica seria o entendimento de novas formas para se pensar os homens (sua natureza, sua origem) e que tem este nome de “escolástica” por ser marcadamente oriunda do âmbito universitário europeu entre 1150-1350. O “homem” teria passado a ser, segundo Boureau, o objeto privilegiado nos debates intelectuais universitários (TEIXEIRA, 2014: 3)3.

Essa “antropologia” atuou de forma decisiva na emergência de uma obsessão pelo demônio no cristianismo medieval, entre 1280 e 1330, ao se preocupar com a relação do humano com o sobrenatural e com o mundo natural. Influenciada por reflexões naturalistas e escolásticas, essa antropologia trouxe à tona um sujeito multifacetado mais propenso às ações do sobrenatural (tanto em relação às investidas de deus e suas criaturas benéficas quanto às dos demônios):

A antropologia escolástica, explorando os limites da ação e da consciência, tinha descrito as zonas de vazio e de fragilidade da personalidade humana. Ora, a sobrenatureza, longe de ter horror ao vazio humano, parecia encontrar acolhida exatamente aí. (BOUREAU, 2016: 201)

Na gênese dessa demonologia, estava presente o embate entre duas “antropologias” no âmbito escolástico. De um lado havia uma “antropologia tomista”, oriunda dos escritos de Tomás de Aquino, teólogo da Ordem dos Pregadores (OP). De outro, uma “antropologia neoagostiniana”, oriunda principalmente dos escritos de Pedro de João Olívio, teólogo da Ordem dos Frades Menores (OFM). Segundo Boureau, para Tomás de Aquino os poderes de Satã estavam confinados à manipulação do mundo natural e não tinham efeitos sobrenaturais em relação aos homens. Diferentemente, na concepção de Pedro de João Olívio, Satã era dotado de poderes sobrenaturais, sendo capaz de atuar sobre os homens.

Tomás de Aquino desenvolve sua “antropologia” na relação entre o humano e o sobrenatural em diversos tratados teológicos. O principal desses é De malo (“Sobre o mal”), redigido por volta de 1272, durante a segunda regência de Tomás em Paris. No De malo o teólogo discute a natureza dos demônios e as circunstâncias de sua queda. Além disso, Tomás se preocupa com as capacidades dos demônios após sua queda e os seus poderes sobre os homens. Nisso, os demônios são descritos como seres sem muita vivacidade, limitados na sua ação ao mundo natural. Sua incapacidade de atuar sobre os humanos de forma sobrenatural deve-se ao uso, por Tomás, de uma psicologia aristotélica. Nessa, é defendida a unidade do sujeito, com o humano composto de uma forma, dada pela alma intelectiva, e uma matéria, isto é um corpo. Portanto, para Boureau, na concepção tomista, a pessoa é vista como substância individualizada da natureza racional. Esta forma de “antropologia” é definida por Boreau como um “‘individualismo substancial’” (BOREAU, 2016: 223). O homem, então teria uma personalidade una, selada por Deus, fazendo com que possuísse uma forma substancial única. Por isso, a alienação de alguma faculdade diminui o poder espiritual e cognitivo do homem. Ou seja, a possessão anularia qualquer possibilidade de ação do sujeito.

Oposta a essa “antropologia tomista” há uma “antropologia neoagostiniana”. Nessa, Pedro de João Olívio apresenta em sua Suma sobre as Sentenças, de Pedro Lombardo, os demônios dotados de possibilidades de atuar sobrenaturalmente em relação aos homens. Neste texto Pedro Olívio ataca os pressupostos lançados por Tomás no De malo. Para o frade Menor o demônio possuía uma capacidade real de ameaçar o homem pelas suas capacidades sobrenaturais. A capacidade que o demônio tem de atuar sobre os humanos deve-se ao uso, pelo franciscano, de uma psicologia agostiniana. Essa é marcada por uma teoria pluralista na qual o sujeito possui uma estrutura federativa ou confederativa, sendo composto de diversos estratos. Além disso, a alma é concebida com certa autonomia sobre o corpo, tendo lugar no interior do indivíduo o confronto entre o divino e o mal. Nisso o homem possuiria, portanto, uma forma substancial múltipla na qual convivem diversas personalidades. O que gesta uma “antropologia” marcada pela ideia de “‘individualismo acidental’” (BOREAU, 2016: 223). Boureau complementa: Com o homem dotado de passividade e descontinuidade na sua pessoa é possível inferir que a sua alma coabitasse tanto com o divino quanto com os decaídos. O demônio, portanto, figura como uma extensão da personalidade de alguns homens. É esse limite cognitivo e espiritual que abre a possibilidade da possessão.

Segundo Boureau esses embates teológicos gestaram a demonologia no âmbito escolástico. Sendo que “(…) a oposição entre Tomás de Aquino e Pedro Olívio nos mostra os contornos da nova cartografia demonológica.” (BOREAU, 2016: 118). É, portanto, principalmente, a partir das considerações desses dois teólogos que se desenvolvem os argumentos de uma demonologia escolástica.

Para pensar como essas considerações, do final do século XIII, são recebidas nas duas primeiras décadas do século XIV, o autor parte das atas de processos de canonização para “(…) encontrar um eco das novas preocupações demonológicas que dominam o início do século XIV e (…) marcam a ação dos papas Clemente V e João XXII.” (BOREAU, 2016: 146). Nesses processos o autor identifica uma relação próxima entre o louco e o possesso. De um pontificado ao outro, casos semelhantes, que antes eram tratados como cura da loucura, passam a ser cada vez mais considerados como exorcismo de demônios.

Nos processos iniciados pelo pontífice Clemente V, como o de Tomás de Cantilupe (1307-1320) e de Luís de Anjou (1308-1317), Boureau identifica a presença de cura de casos de loucura. Porém, nenhum de possessão demoníaca. Essa situação muda durante o pontificado de João XXII com relatos de combate contra o demônio em inquéritos de canonização de santos como Tomás de Aquino (1319-1323). Outro caso, desse mesmo pontificado é o de Nicolau de Tolentino (1325-1446), com diversos casos de possessão e exorcismo, além de fraca presença de casos de loucura nas atas do inquérito, é descrita a luta do santo contra demônios.

Esse último caso, o de Nicolau, é interessante já que leva 121 anos para a finalização do processo. Boureau argumenta que isso se deve, principalmente, à prudência da cúria quanto às canonizações de santos muito envolvidos no combate aos demônios. Além disso, argumenta que, apesar das virtudes eclesiológicas de um santo, naquele período no qual ainda estava se consolidando uma demonologia, poderia levar os leigos a perigosos diálogos. Para o autor, essa mudança ocorrida entre os dois pontificados estava relacionada aos problemas que João XXII enfrentou nas décadas de 1310, 1320 e 1330:as contendas em relação ao espirituais franciscanos, defensores ferrenhos da pobreza evangélica de Cristo e grandes críticos do papado de Avignon. De ambos os lados, tanto dos frades quanto do papado, partem acusações de envolvimento com o Satã. João XXII era considerado o Anticristo místico, proposto no comentário de Pedro de João Olívio. Segundo o franciscano, o anticristo estaria disfarçado de papa e desvirtuaria a Igreja, preocupado apenas com enriquecimento desta. Uma vez que João XXII foi um dos papas que mais enriqueceu a Igreja, durante o século XIV4, os espirituais acusavam-no de ser a encarnação e Satã. Por outro lado, estes frades eram acusados de envolvimento com o demônio, por armarem conspirações e eram considerados hereges que voltavam junto ao diabo para assombrar os fiéis. Sobre os espirituais choveram condenações de heresia, sendo seis deles queimados em 1318, e ordenada a destruição da obra de Olivi em 1326.

Portanto, essa demonologia, desenvolvida no âmbito escolástico, esteve muito associada às tentativas de deslegitimar adversários políticos e ao ataque aos poderes estabelecidos. É isso o que discute Alain Boureau no capítulo um do livro, quando demonstra como o desenvolvimento teológico de uma demonologia durante as últimas décadas do século XIII foi utilizado para dar base à associação entre magia, demônio e heresia. Segundo o autor, é principalmente durante o pontificado de João XXII, no início do século XIV, que se tem “(…) um novo desenvolvimento judiciário (…)” (BOUREAU, 2016: 24).

Nesse período, o conteúdo doutrinal acerca do pacto com o diabo recebeu uma nova abordagem, na qual foi valorizada a ação universal dos demônios. Ou seja, o diabo perdia a limitação de seu poder ao mundo natural, para ganhar novos poderes, capaz de agir sobrenaturalmente, ameaçando a cristandade. Nesse desenvolvimento judiciário, Boureau demonstra a importância da bula Super illius specula e da comissão sobre a magia, reunida pelo papa João XXII, em Avignon, em 1320. A bula, promulgada entre 1326 e 1327, foi, para o autor, o texto fundador da obsessão demonológica e do interesse do papa pela magia. Nela, João XXII incrimina práticas mágicas, como o uso de imagens e utensílios, que derivavam da adoração aos demônios por meio da associação entre a invocação destes com as aquelas práticas, sendo ambos referidos como dogma. Porém, a grande novidade da Super está no desenvolvimento de um novo conceito relacionado a construção processual deste pontificado. É nessa bula que o papa traz a noção de “feito herético” (factum hereticale), a partir do qual a heresia deixava de ser apenas matéria de opinião, passando a estar relacionada também à ação. Apesar da originalidade da bula ser passível de discussão, a questão do fato herético já figurava na consulta de 1320 sobre a magia. Nessa, a noção de fato herético estava presente nas questões propostas à comissão. Na consulta o papa perguntou a teólogos e canonistas se era possível associar práticas como o batismo de imagens e outras práticas mágicas à heresia, que, poderia ser considerada crime de lesa-majestade divina, punida com o máximo de rigor pela purificação por meio das chamas. Apesar dessa associação encontrar resistência nas respostas da maior parte dos teólogos chamados para a consulta, resoluções, como a do franciscano Henrique de Carretto, deram crédito à tese do fato herético.

A essa tese estavam associadas outras práticas jurídicas de João XXII. O uso da fama para determinar a qualidade das ações dos que estavam sendo acusados de heresia, a utilização do processo sumário nos casos de julgamento relacionados à invocação de demônios e o recurso a tribunais especiais do papado, para cuidar destes casos. Segundo Boureau, essas práticas demonstram não só a desconfiança de João XXII quanto a Inquisição, mas também que frente a ameaça dos demônios era necessário uma ação rápida e eficaz. Assim, o autor propõe que a forma de agir do papa demonstrava que “(…) em matéria de sortilégios, antes de reprimir, importava (…) reunir opiniões em relatórios complexos unindo a magia, a invocação de demônios e a heresia.” (BOUREAU, 2016: 53).

O livro Satã Herético não é uma leitura simples, fazendo-se difícil para iniciantes que ainda não tiveram contato com tema das ordens mendicantes e sua relação com as universidades. Boureau traz como subentendido que seu leitor deve ter alguma noção sobre o contexto do papado de Avignon, do âmbito universitário dos séculos XIII e XIV e do método escolástico. Apesar desses pontos, que podem dificultar a leitura, a forma como autor relaciona as discussões escolásticas com o fazer político dos jogos de poder no período é interessante, e importante em termos metodológicos. Pois, permite ao historiador, que deseja se debruçar sobre as questões políticas do período, montar o contexto linguístico, do qual parte o conteúdo dos vestígios aos quais se dedica.

Notas

1. Alain Boreau atualmente é diretor do Groupe d’Anthropologie Scolastique (GAS) da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Também, atua como co-diretor das coleções Histoire e Bibliothèque scolastique da editora Les Belles-Lettres. Além de ser membro do comitê de redação da revista Penser/rever. Informações obtidas em: http://gas.ehess.fr/document.php?id=122

2. Igor Salomão Teixeira é professor de História Medieval no departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

3. TEIXEIRA, I. S. “Antropologia histórica e antropologia escolástica na obra de Alain Boureau”. In: Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre. Auxerre, França. Vol. 18, n. 1, 2014. pp. 1-13. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/103476 Último acesso em: 27 de abril de 2017.

4. Cf. LE GOFF, J.A Idade Média e o dinheiro: Ensaio de antropologia histórica. RJ: Civilização Brasileira, 2014. Para mais sobre o contexto do papado de João XXII e as disputas com os espirituais ver: AGAMBEN, G. Altíssima pobreza. SP: Boitempo, 2014; BÓRMIDA, J. (OFM Cap.). A não propriedade: uma proposta dos franciscanos do século XIV. Porto Alegre: Edições EST, 1997; BURR, D. “The Correctorium Controversy and the Origins of the Usus Pauper Controversy” In: Speculum. EUA: Medieval Academy of America, 1985, n. 60 (2). pp. 331-342; DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003; FLOOD, D. (OFM). “Poverty as Virtue, Poverty as Warning, and Peter of John Olivi” In: BOUREAU, A. e PIRON, S. (dirs.). Pierre de Jean Olivi (1248-1298): Pensée scolastique, dissidence spirituelle et société. France: Librairie Philosophique J. VRIN, 1999. pp. 157-173; NOLD, P. Pope John XXII and his Franciscan Cardinal: Bertrand de la Tour and the Apostolic Poverty Controversy. Oxford: Oxford University Press, 2003; e TEIXEIRA, I. S. Como se constrói um santo: A canonização de Tomás de Aquino. 1. ed. Curitiba: Prismas, 2014.

Luiz Otávio Carneiro Fleck – Mestrando pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: lotaviocf@gmail.com


BOUREAU, Alain. Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330). Campinas: Editora da UNICAMP, 2016. Resenha de: FLECK, Luiz Otávio Carneiro. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 171- 177, 2017. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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