O mundo muçulmano | Peter Demant
Muito se tem escrito sobre o mundo muçulmano e seu relacionamento com o Ocidente. E não poderia ser diferente, uma vez que o chamado “choque de civilizações”, pelo menos na percepção de grande parte da sociedade ocidental, veio para ficar e se aprofundar, ainda que não se entenda muito bem suas raízes e muito menos a sua cultura. No Brasil, no entanto, talvez por nos abrigarmos no mito do cruzamento pacífico de culturas, pouco se publicou sobre o tema.
É no mundo muçulmano que se encontra o maior grau de participação em episódios de violência social no mundo atual: em 2000, a revista The Economist identificou trinta e dois grandes conflitos em andamento no mundo, sendo que dois terços deles envolviam muçulmanos combatendo muçulmanos ou muçulmanos combatendo não-muçulmanos. Ainda que se possa citar alguns dos momentos mais conhecidos de violência desde a Segunda Guerra Mundial – a repartição entre a Índia e o Paquistão, a Crise do Suez de 1956, as guerras árabes-israelenses de 1967 e de 1973, a revolução iraniana, a guerra civil no Líbano e a invasão do país por Israel, a Guerra Irã-Iraque e a Guerra do Golfo – o atentado contra as torres do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, foi definitivo para que o mundo muçulmano passasse a ser tema de interesse do público em geral. O interesse, que poderia vir se arrefecendo, não decresceu porque as ações espetaculares não param de acontecer: os ataques às estações de Madri, que mataram 190 pessoas e feriram quase 2.000, para não falar, em sentido contrário, o início da guerra liderada pelos Estados Unidos contra o Iraque, em março de 2003.
Tentar compreender o mundo atual é sinônimo, em boa medida, de compreender o mundo muçulmano, objeto de estudo do livro de Peter Demant.
O tema, que entrou no cotidiano do público em geral, é tratado por um dos grandes especialistas sobre o assunto, resultado de anos de pesquisa e debates com interlocutores das mais diferentes correntes e nacionalidades. Como qualquer trabalho histórico ou, mais genericamente, do campo das ciências sociais, o autor fala de algum lugar, no caso o Ocidente. A seu favor, a linguagem equilibrada de quem conviveu com palestinos e israelenses, tentando estabelecer um diálogo construtivo entre comunidades marcadas pelo ódio, mágoa e sofrimento.
Nascido em Amsterdã, Peter Demant é historiador especialista em questões médio-orientais. Obteve seu doutorado em 1988 na Universidade de Amsterdã e morou em Jerusalém de 1990 a 1998, onde foi pesquisador sênior do The Harry S. Truman Research Institute for the Advancement of Peace, na Universidade Hebraica. Nesse período, esteve ativamente envolvido nos diálogos entre acadêmicos israelenses e palestinos. Atualmente, é professor do Departamento de História da USP, lecionando Relações Internacionais e História da Ásia.
Na introdução ao livro, Demant diz que a obra objetiva “proporcionar ao leitor brasileiro uma idéia geral da civilização do islã, tornar compreensível como e por que parcelas significativas do mundo muçulmano vêm se radicalizando, politizando sua religião e agredindo o Ocidente – uma violência que, da perspectiva dos fundamentalistas, constitui apenas uma merecida e justificável resposta às agressões recebidas”. Para ele o elemento fundamental para entender o mundo muçulmano é a compreensão de sua riqueza histórica e de sua crise, que tem na ira contra o ocidente uma de suas manifestações.
O mundo muçulmano, que o controvertido V. S. Naipaul, prêmio Nobel de Literatura de 2001, busca compreender por via dos intrincados caminhos da fé islâmica em sua relação com o mundo secular e a ação revolucionária; esse mundo tremendamente dividido, cruzamento de tantas e diferentes tradições, com um passado glorioso e um presente caracterizado pelo sentimento de impotência e exploração, é o objeto de estudo de Demant, que tem uma abordagem mais sobre os muçulmanos do que sobre o islã, mais sociológica, antropológica, histórica e política sobre grupos humanos específicos do que sobre questões teológicas, ainda que se deva levar em conta, naturalmente, que o islã é mais do que um conjunto de crenças, influenciando, em maior ou menor grau, a vida econômica, política e mesmo as relações internacionais.
Daí a dificuldade do Ocidente moderno – organizado secularmente – compreender as sociedade muçulmana e toda a sua complexidade. Essa é das maiores contribuições do livro de Peter Demant que, além de dedicar-se a explicar o surgimento do islã no século VII, na península árabe, sua expansão durante séculos – o islã, como o cristianismo é uma fé expansionista e monopolista da verdade -, a originalidade de sua inserção em diferentes regiões do mundo (Parte 1), debruça-se também sobre a questão que tanto nos interpela: a relação dessa civilização com a pós-modernidade (Parte 2) e os motivos para o sucesso do fundamentalismo no islã (Parte 3). Ao leitor, as explicações introdutórias do autor: “a ‘volta à religião’ é um fenômeno internacional que se observa entre cristãos e judeus tanto quanto entre muçulmanos. Não há dúvida de que o mundo muçulmano, no Oriente Médio em particular, estava pouco preparado para os controles políticos e econômicos – e para a invasão cultural – que as potências ocidentais conseguiram impor graças à sua supremacia militar . (…) Quando os muçulmanos se viram confrontados pela superioridade ocidental, a humilhação foi provavelmente maior do que a sofrida por outras civilizações, pois o islã considera uma impossibilidade teológica a tentativa de equiparar-se, nesses termos, ao Ocidente.”
O Mundo Muçulmano, ilustrado com mapas e fotos explicativos, é um belo livro. Destina-se a um público amplo e para facilitar a vida do leitor, apresenta uma cronologia, além de uma extensa bibliografia para quem quer se aprofundar sobre temas conexos.
Resenhista
Norma Breda dos Santos
Referências desta Resenha
DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004. Resenha de: SANTOS, Norma Breda dos. Revista Brasileira de Política Internacional, v.47, n.1, 2004. Acessar publicação original [DR]