O modelo espacial do Estado moderno: reorganização territorial em Portugal nos finais do Antigo Regime | Ana Cristina Nogueira da Silva

Ana Cristina Nogueira da Silva integra um grupo de historiadores portugueses de inegável qualidade que, sob a coordenação de Antônio Manuel Hespanha, vem desenvolvendo importantes trabalhos acerca do Estado português, em especial dos séculos XVII e XVIII. Fruto de uma dissertação de mestrado apresentada em 1997, na Universidade de Lisboa, O modelo espacial do Estado moderno: reorganização territorial em Portugal nos finais do Antigo Regime, impressiona positivamente sob vários aspectos: problemática pertinente, rica pesquisa documental, ampla e atualizada bibliografia, análise simultaneamente particular e geral dos aspectos abordados. Nela, a autora propõe interessantes questões acerca da história portuguesa do Antigo Regime e induz à reflexão de pontos mais amplos que podem interessar também aos estudiosos de história do Brasil.

Trata-se de um estudo sobre a “Lei da reforma das comarcas” elaborada em 1790, durante o reinado de D. Maria I, o qual visava a uma racionalização administrativa e judicial do território do Reino. A partir daí, os objetivos de Silva consistem em “falar(…)das formas como essa entidade algo abstrata a que costumamos chamar de Estado moderno pensou o seu espaço num momento histórico determinado – os finais do século XVIII” (p.18), mais especificamente surpreender “a partir dos discursos produzidos pelos agentes de uma reforma territorial experimentada em Portugal(…), um novo imaginário político sobre o espaço que surge nesta época – o imaginário estadual -, bem como a forma como ele foi atuado e apropriado pelos diferentes discursos que se produziram no contexto da discussão desta reforma” para, finalmente, “descrever, com base nos mesmo discursos, as lógicas de organização espacial que tal reforma veio pôr em causa” (p.20).

Ao longo de uma introdução e de seis capítulos, a autora discute o Iluminismo europeu do século XVIII e sua modalidade política reformista portuguesa (capítulo 2); a organização territorial portuguesa do Antigo Regime e sua divisão em diferentes espaços de jurisdição civil e eclesiástica (capítulo 3); as reformas administrativas e judiciais aplicadas e/ou projetadas em Portugal no século XVIII, com a devida contextualização daquela de 1790 (capítulo 4), que é em seguida minuciosamente analisada quanto aos seus termos, critérios de racionalidade, argumentos e contrapropostas (capítulo 5, que ocupa a maior parte da obra). Nos capítulos 6 e 7 são discutidas respectivamente as radicalizações e os obstáculos que acabaram por impossibilitar a efetiva aplicação da Lei de 1790. Por último, uma Conclusão que, através de uma síntese das questões anteriormente expostas, aponta para a persistência até a década de 1820 do problema geral que a Reforma pretendia equacionar; uma bibliografia com os documentos manuscritos, impressos e bibliografia utilizados; e um Anexo com uma relação dos escritos produzidos pelos funcionários reais encarregados de estudos preliminares com vistas à aplicação da Reforma. Vale destacar que a obra é fartamente ilustrada com desenhos de época e mapas elaborados pela autora que auxiliam na compreensão das muitas propostas de racionalização do território analisadas.

De forma coerente e lúcida, a autora conduz sua análise até chegar às conclusões de que a Reforma, reconhecida como necessária pela ótica do Estado português, não conhecia respaldo em poderes locais, os quais encampavam interesses calcados em ancestralidades específicas articuladas com particularidades geográficas, econômicas, populacionais e administrativas (“a geografia ‘real’ dos acidentes naturais” e a “geografia ‘subjetiva’ dos sentimentos de pertença e dos hábitos administrativos e econômicos dos povos”: p.376). As contradições entre estes dois níveis, que expressavam por um lado uma visão global do Reino e por outro uma visão local, levam a autora à hipótese de que “como em outros reinos, também em Portugal a homogeneidade do espaço nacional ainda não era pensada como condição necessária de uma boa política” (p.378).

Eis um sugestivo desfecho que aponta para uma questão pouco explorada pela autora: quais os termos do nacional quando se trata da falta de homogeneidade de um espaço político?

Nestes termos, a discussão acerca das relações entre Estado e território não deve prescindir dos elementos simbólicos que nos quadros do Antigo Regime ajudam a construir a geografia “subjetiva” dos sentimentos de pertença e dos hábitos dos povos, ou seja, a própria nação. Se a contradição – adquirindo sentido de incompatibilidade – entre visões e interesses globais e locais é corretamente apontada em se tratando da tentativa de reforma administrativa do território português em 1790, cabe lembrar que por outro lado – e ao mesmo tempo – níveis de solidariedade tornavam homogêneo aquilo que não era pensado como tal no âmbito das administrações locais. Refiro-me especialmente ao sentimento e prática da vassalagem, da fidelidade ao monarca que, ao conferir coesão a uma sociedade pautada por uma grande diversidade em todos os seus níveis constitutivos, define a própria nação nos moldes do Antigo Regime.

Esta questão poderia passar por tangencial à obra de Silva, que efetivamente tem o centro das atenções em uma história administrativa do Estado português, e não na questão nacional no Antigo Regime. Entretanto, ela revela uma certa superficialidade na discussão das relações entre Estado e território (capítulo 3), cujo maior aprofundamento naturalmente conduziria a autora a uma melhor formulação da problemática das relações entre global e local que fornecem o substrato para o enquadramento das conclusões gerais do trabalho, em especial no que toca às sugestões de sua inserção no contexto vintista. E da mesma forma, colocaria a imperiosidade de não se desconsiderar uma das grandes particularidades do Estado português do Antigo Regime com relação à maioria dos outros europeus: a existência de um ultramar que não apenas é parte administrativa daquele Estado, mas também imprime uma marca de heterogeneidade no “nacional português” do qual, até pelo menos as primeiras décadas do século XIX, também ele fazia parte.

Eis um problema ainda pouco trabalhado por historiadores tanto portugueses como brasileiros, para cuja recolocação no panorama historiográfico dos dois países obras sérias e consistentes como a de Silva são essenciais.


Resenhista

João Paulo G. Pimenta – Mestre e doutorando em História Social pela USP.


Referências desta Resenha

SILVA, Ana Cristina Nogueira da. O modelo espacial do Estado moderno: reorganização territorial em Portugal nos finais do Antigo Regime. Lisboa: Estampa, 1998. Resenha de: PIMENTA, João Paulo G. Diálogos. Maringá, v.5, n.1, 227-229, 2001. Acessar publicação original [DR]

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