VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. [Zahar, 1995. 193p.]. Resenha de: GOMES, Tiago de Melo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.42, 2001.
À medida que a década de 1990 se encaminha para o final, torna-se evidente por si só a importância deste trabalho de Hermano Vianna a respeito das relações entre samba e identidade nacional. Possivelmente em nenhum momento estas duas temáticas tenham sido debatidas com a amplitude que vem ocorrendo ultimamente, e uma parte do crédito deve ser dado a este livro. Os motivos para o seu sucesso e influência são facilmente reconhecíveis mesmo em uma leitura menos atenta. O autor inicia o texto expressando sua estranheza em relação à narrativa mais tradicional da história do samba, que aponta dois momentos na trajetória deste que é tido como o ritmo nacional por excelência. Em um primeiro momento, o samba teria sido perseguido pelas elites como bárbaro e incivilizado, para em seguida transformar-se no símbolo nacional que conhecemos hoje. Esta narrativa, como Hermano Vianna aponta com acerto, tem sido há muito tempo partilhada por pesquisadores não acadêmicos, cientistas sociais, jornalistas e historiadores, em um arranjo multidisciplinar que tem mostrado grande vitalidade e que busca explicar a formação de símbolos nacionais a partir da resistência popular à opressão das elites, até o momento da vitória final, com a transformação de uma “cultura popular” em “cultura nacional”. A partir deste estranhamento, Hermano Vianna coloca o problema que ocupará seu livro: como se deu a passagem entre estes dois momentos na história do samba?
O autor identifica, com indiscutível acerto, esta questão como potencialmente de grande interesse para se compreender o processo de construção de uma identidade nacional, dentro da qual o samba foi um fator de grande destaque na identificação de “o que é ser brasileiro”. Para Hermano Vianna, o samba teria sido elevado ao status de símbolo nacional favorecido por um contexto cultural (não situado temporalmente de forma clara, mas aparentemente delimitado entre as décadas de 1910 e 1930) em que ganhava força o interesse por “coisas nacionais”. Beneficiando-se deste interesse, o samba teria chegado à sua condição atual, o que teria sido possibilitado na prática pela ação de “mediadores culturais”, que levariam fragmentos da “cultura popular” a uma “cultura de elite” que desconheceria em boa parte os elementos desta “cultura popular”. Neste sentido, o livro é organizado em torno de uma noitada que reuniu intelectuais interessados na construção de um projeto de identidade nacional (incluindo Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda), com alguns “portadores” desta “cultura popular” prestes a ser alçada ao status de símbolo nacional (entre eles, Pixinguinha e Donga). Por suas características (intelectuais em busca de “coisas brasileiras” reunidos com sambistas, sendo esta ligação feita pelo poeta modernista europeu Blaise Céndrars), este encontro é visto pelo autor como um símbolo do processo que pretende retratar em seu livro.
A riqueza da temática proposta por Hermano Vianna garantiu, com justiça, o sucesso de seu livro. Escapando da armadilha de tratar a cultura como decorrência do contexto socioeconômico, o autor propõe uma articulação entre música popular e identidade nacional visando a compreender a permanência da utilização do samba como elemento aglutinador da nacionalidade. Neste sentido, uma breve discussão sobre os limites da abordagem deste livro revela-se de grande interesse para historiadores e cientistas sociais que se preocupam com questões por ele tratadas. A principal questão que se pode apontar como limitadora do enfoque de Hermano Vianna é a problemática das fontes utilizadas, ou, no caso deste livro, da ausência das mesmas. O autor pretende renovar o debate sobre o tema sem levar a cabo novas pesquisas, buscando meramente reinterpretar elementos levantados por outros pesquisadores dentro dos parâmetros teóricos que adota. Ou seja: o autor se apropria de dados utilizados pela bibliografia existente (que os utilizou para demonstrar a opressão sofrida pelo samba), pensando-os como demonstradores de uma permanente interação cultural entre diversos segmentos sociais, interação esta fundada na ação dos “mediadores culturais”. Isto acaba por levar O Mistério do Samba a algumas limitações. Em primeiro lugar, torna o autor um prisioneiro da mesma bibliografia que pretende criticar, posto que é exatamente esta bibliografia que vai fornecer-lhe as situações em que sua análise é baseada. Com isto, Hermano Vianna acaba sendo levado a debates antigos e pouco produtivos, como a busca por demonstrar que o violão nunca foi um instrumento totalmente desprestigiado, um debate recorrente na tradicional bibliografia sobre música popular do início do século, e que lida com os dados desta mesma bibliografia, em uma discussão de pouco relevo para a análise desenvolvida. Com este debate, o autor pretende demonstrar que o fosso entre “cultura de elite” e “cultura popular” nunca foi tão grande quanto a bibliografia aponta. Mas fazer isto sem acrescentar novos dados à discussão é irrelevante, apenas poupando o leitor de fazer por si só a reinterpretação de algo que já está disponível em uma série de outros livros.
Além disto, ao organizar o livro em torno dos elementos que julga importantes para a ascensão do samba, Hermano Vianna produz capítulos como “A Unidade da Pátria”, “O Mestiço” e “Gilberto Freyre”, compostos de breves e superficiais resumos de argumentos alheios a respeito de temas de ampla importância. No mesmo sentido, o autor acaba, na necessidade de se basear em dados levantados por outros pesquisadores, por vezes se afastando perigosamente do contexto estudado. Como a bibliografia sobre o contexto cultural carioca dos anos 20 não é das mais extensas, o autor acaba sendo obrigado a ir buscar no modernismo paulistano muitos exemplos de um “interesse por coisas nacionais” que não necessariamente seria igual nas duas cidades. Flagrante neste sentido é o caso, destacado pelo autor, da encenação em São Paulo, no ano de 1919, de uma peça de conteúdo nativista em que os membros das mais tradicionais famílias paulistanas se vestem de sertanejos. Este evento, estudado por Nicolau Sevcenko1, é bastante ilustrativo de um processo da construção de uma identidade paulista, mas pouco ou nada diz a respeito da elevação do samba ao status de símbolo nacional. Porém, na falta de exemplos do mesmo porte disponíveis na bibliografia sobre o Rio de Janeiro no mesmo período, o autor foi levado a buscar, em função de sua opção de não realizar sua própria pesquisa, exemplos que dizem respeito a um outro contexto, ainda que no mesmo período.
Sendo levado a um contexto diferente do que aquele que deveria lhe interessar, Hermano Vianna deixa de atentar para múltiplas experiências da cidade do Rio de Janeiro, que tiveram seu papel na difusão do samba e de sua concretização como elemento aglutinador da identidade nacional. Uma delas, a ligação entre modernistas cariocas e a “cultura popular”, balizada por outras questões relativas ao contexto da Capital Federal2. Outro lado desta moeda é a flagrante ausência da cultura de massas — central na veiculação dos símbolos nacionais — em O Mistério do Samba. A relativa escassez de bibliografia a respeito da massificação cultural no Rio de Janeiro na primeira metade do século impediu o autor de ver a importância deste fenômeno, expresso de modo evidente no caso do teatro de revista, que debatia diariamente a questão da identidade nacional para um público o mais amplo possível em meio à execução de música de todos os tipos, inclusive o samba Aparentemente Hermano Vianna concebe o debate sobre a identidade nacional como um privilégio de poucos intelectuais, sem atentar para o fato de que, para estar envolvido neste debate, bastava viver no Rio de Janeiro entre as décadas de 20 e 30. Este debate estava na imprensa, no teatro de revista, nos circos e em uma série de veículos que atingiam todos os segmentos da população, ao contrário do que sugere o termo “pré-cultura de massas”, com o qual o autor conceitua a difusão cultural no período (p. 22). Em resposta ao pouco papel dado pelo autor à cultura de massas, pode-se lembrar o fato de que no mesmo momento em que o samba explodia como ritmo de grande sucesso, outros ritmos sincopados, bastante apropriados para a dança, também chegavam ao sucesso pela via da cultura de massas, como é o caso flagrante do jazz e de outros ritmos americanos, que corriam o mundo, incluindo o Brasil, naquele momento. As exigências da cultura de massas por ritmos “dançáveis” é um elemento que não deve ser subestimado ao se estudar o sucesso do samba.
Talvez em função de desconhecer a profundidade da importância deste processo de massificação cultural no debate sobre os símbolos nacionais, o autor tenha atribuído um papel tão grande ao pensamento de Gilberto Freyre em um livro sobre o samba. É certo que, como Hermano Vianna observa, Gilberto Freyre teve um papel central no processo de criação de uma unidade nacional “mestiça” (p. 14). Contudo, associar tão fortemente a ascensão do samba a Freyre acaba por refletir uma idéia muito genérica de “busca por coisas nacionais”, que acaba por englobar o regionalismo de Freyre, o nativismo sertanejo que se destaca em São Paulo, e a glorificação do samba como símbolo nacional no Rio de Janeiro, três movimentos ocorridos em um mesmo período centrados na valorização do que seria “tipicamente brasileiro”, mas que não necessariamente refletem projetos que mantenham uma concordância de princípios entre si. Assim, esta genérica “busca por coisas nacionais”, com que Hermano Vianna busca explicar todo o debate sobre o “nacional” e o “popular” nas décadas de 10, 20 e 30, acaba por explicar pouco ou nada. Haja vista que se o nativismo paulista também é parte de um contexto de valorização do “nacional”, serviu também como origem de duras críticas a uma “cultura carioca”, na qual o samba estaria incluído por parte de setores do modernismo paulistano3.
Outra opção teórico-metodológica do autor, que acabou por limitar o alcance de seu livro, é a pouca atenção dedicada ao samba, que acaba funcionando como mero representante de um contexto cultural mais amplo de “busca por coisas nacionais”, contexto este que determina totalmente os sentidos do samba como símbolo nacional nos anos 20 e 30. Aqui não se nega a possibilidade de realizar um estudo que utilize o samba como “campo privilegiado onde é possível perceber determinados aspectos do debate sobre a definição da identidade brasileira” (p. 33). Contudo, é necessário sublinhar o fato de que nenhuma especificidade é conferida à música popular no amplo contexto cultural que Hermano Vianna desenha, acabando por dissolver esta importante manifestação artística em um processo mais amplo que lhe determina totalmente o sentido. Com isto, o autor acaba transformando seu objeto em um mero representante de um contexto mais amplo, transformando o tradicional determinismo socioeconômico — com que a bibliografia tende a retratar a identidade nacional e a música popular — em um determinismo sociocultural, menos distante do objeto, mas que igualmente lhe retira qualquer grau de autonomia.
A rigor, é possível mesmo notar que o autor se interessou muito pouco em conhecer a fundo os processos específicos da música popular que estuda. Talvez isto possa ser considerado secundário, mas não é difícil identificar que o autor em diversas passagens torna-se presa de seu diminuto conhecimento dos matizes do universo musical da capital federal, ao diluir toda a música feita por negros na categoria “samba”. É muito fácil notar que este termo estava longe de ter um sentido claro nos anos 20, e ainda era aplicado a ritmos rurais ou utilizado no sentido mais amplo de festa ou dança. Uma conseqüência disto é o grande destaque dado a Pixinguinha, Donga e os Oito Batutas, compositores e executores de uma infinidade de ritmos rurais, urbanos e estrangeiros, que nunca tiveram ênfase no samba em suas carreiras. Porém, sendo negros e cariocas, o autor apressadamente os enquadrou como “sambistas”, apontando Pixinguinha, Donga e Patrício Teixeira como definidores da música que seria considerada “a partir dos anos 30, como o que o Brasil tinha de mais brasileiro” (p. 20). Infelizmente o autor não poderia listar 3 ou 4 sucessos destes três músicos cariocas que pudessem ser tidos como sambas, em especial no período apontado, a década de 30. Com isto, valoriza como decisiva na consolidação do samba a atuação de compositores de choros e valsas, como Pixinguinha. Aqui tem-se a prova do risco indiscutível da ausência de reconhecimento de fatores que são específicos ao objeto estudado. Com tudo isto, é bastante possível que ao fim do livro, o leitor de O Mistério do Samba se sinta plenamente convencido de que havia, no período estudado, uma demanda por um ritmo que pudesse ser enquadrado como “tipicamente nacional”. O que fica no ar é a pergunta: E por que o samba veio ocupar este espaço, em vez de qualquer outro ritmo urbano ou rural existente na mesma época? Havia no período uma enorme diversidade de ritmos “populares”, e o fato de a primazia de “ritmo nacional por excelência” ter sido dada ao samba não é algo que se explica por si só. Aparentemente tal idéia não ocorreu ao autor, que unifica toda esta diversidade musical popular do período sob o rótulo “samba”.
Um último elemento a ser ressaltado é a ausência de um sentido mais acurado de contexto histórico ou espacial da parte do autor. Buscando demonstrar a plausibilidade da presença de membros da elite na produção do samba como símbolo nacional, Hermano Vianna nos leva a uma descrição de uma festa em Salvador no ano de 1802 (p. 37), no intuito de mostrar uma “tradição” de contatos entre elite e música popular. Contudo, é possível notar que o autor opera com um conceito restrito de “tradição”, pois a existência de interação cultural na Bahia Colonial em nada garante a existência do mesmo fenômeno em tempos e espaços inteiramente diversos. Não é necessário aqui argumentar longamente a favor da idéia de que qualquer tradição é dinâmica e pode ser alterada por conjunturas específicas. Na verdade, um mérito do autor é demonstrar o tipo de espaço em que se deram estas interações ao longo do tempo. Mas não reconhece que isto pouco nos informa sobre o Rio de Janeiro nos anos 1920 e 1930.
Ausência de pesquisa em fontes originais, pouco interesse pelas especificidades do objeto estudado (como a massificação cultural, no caso do samba), contextualização histórica insuficiente. Estes são alguns problemas da abordagem realizada por Hermano Vianna. Porém, estes problemas, que devem estar na mente de qualquer pesquisador interessado em qualquer pesquisa na área de história ou ciências sociais, materializaram-se concretamente apenas quando este autor finalmente livrou-se da aplicação dos velhos esquemas economicistas na música popular. Por muito tempo acreditou-se que o abandono de determinismos no estudo da música popular e a adoção de novos pressupostos seria o caminho para o avanço na pesquisa sobre identidades sociais e música popular. Ao trilhar este caminho, Hermano Vianna resolveu de vez este problema. Entretanto, acabou revelando novos problemas em sua abordagem, e o desafio que se impõe é o da superação dos problemas aqui apontados na constituição futura de uma nova bibliografia a respeito deste assunto importante e intensamente discutido em tempos recentes.
Notas
1 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 240-244.
2 Ver o caso de Manuel Bandeira em GARDEL, André. O Encontro Entre Bandeira e Sinhô. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1996.
3 Ver o exemplo de VELLOSO, Mônica. “A ‘cidade-voyeur’: o Rio de Janeiro visto pelos paulistas”. In Revista Rio de Janeiro. Niterói, 1986, nº 4, pp. 55-65.
Tiago de Melo Gomes – Doutorando Unicamp/Fapesp.
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