O debate sobre a medicina no Brasil tem estado quase sempre fundamentado na razão técnica que, baseando a ética profissional, se desdobra, com iguais doses de normatividade, tanto nos projetos neoliberais quanto nos mais diversos projetos estatizantes. Variando a ênfase, ora posta nas condições de trabalho dos médicos, ora nas condições para o consumo efetivo pelos pacientes, sempre se supõe que o objeto da discussão, o ato médico, consista em aplicações tecnológicas impessoais das ciências médicas, por referência às quais a historicidade, a sociedade e a individualidade só apareçam sob a forma de condicionantes externos, menos ou mais indesejáveis. Portanto, para além da ética profissional, os projetos políticos e ideológicos supõem sempre a instrumentalidade neutra da técnica como fundamento, pretendendo em todos os casos legitimar-se como decorrência imperativa de sua verdade absoluta.
O estudo de Lilia Blima Schraiber tem, entre outras qualidades, o mérito de contribuir para a possível mudança desse estado de coisas, ao se situar distante tanto de qualquer aversão ou compromisso apriorísticos por referência ao ideário liberal, quanto de toda fobia ou simpatia de princípio e sem reservas por um suposto igualitarismo e uma pretensa racionalidade que seriam inerentes às ações estatais.
O estudo tem sua origem, conforme nos informa a autora, na constatação do dado imediato da exigência de autonomia técnica como premissa para a realização do adequado exercício, pelos médicos, de seu trabalho, e coloca sob exame essa autonomia, simultaneamente como ideal de prática, representação continuamente reelaborada pelos médicos, e como característica efetiva dessa prática, forma de articulação do técnico no profissional que terá demandado, necessariamente, profundas readequações de sua base e de seus modos de realização. Visa assim reconstruir o processo histórico de constituição da autonomia profissional, tomando-a tanto como premissa da prática quanto como seu resultado transitório, mantendo por pano de fundo o conhecimento das grandes transformações havidas na medicina com a maciça incorporação de novas tecnologias e a correlata redivisão técnica do trabalho entre os médicos, com a mudança nas condições de apropriação dessas tecnologias e dos pressupostos necessários para sua efetiva utilização no trabalho, com as alterações nas relações entre os médicos e suas clientelas, com o amplo processo de socialização da medicina que coincide com — e se deve em parte a — a passagem das formas liberais de exercício da profissão às formas empresariais sustentadas pelo Estado.
Nesse contexto, a autora supõe como hipótese operativa que os agentes do trabalho, dada sua mais do que aparente continuidade histórica, tenham tido sucesso em transformar o exercício de sua profissão conservando, ao redor da noção de autonomia e de suas contrapartidas práticas necessárias, um núcleo de reprodução de valores e de necessidades sociais. Transformar, conservando; conservar, transformando. Será com o desenvolvimento e a progressiva particularização dessa fórmula que a autora dará conta de suas aproximações ao empírico, de seus procedimentos de procura de explicações sintetizadoras.
Para especificar sua hipótese, a autora utiliza-se, além de abundantes fontes secundárias, da produção de dados primários através de entrevistas semi-estruturadas com médicos paulistas formados entre 1930 e 1955, e que teriam transitado, em suas vidas de trabalho, de um a outro momento de realização daquela autonomia. Esse material, que por si só já garante o interesse historiográfico do estudo, surpreende e até mesmo encanta pela força vivificadora que é então imprimida ao que poderia ser apenas um trabalho acadêmico bem realizado: a escolha de seus médicos não entre os grandes vultos da profissão, mas entre os ‘homens comuns’, desvela com uma humanidade às vezes comovedora a delicada trama cotidiana, individual e social do processo histórico de permanente reestruturação da prática, em um de seus momentos de aceleração.
Após apresentar, no Capítulo 1, as características teórico-metodológicas de sua pesquisa, no Capítulo 2 a autora nos dá, interpretando-os na medida e no sentido do desenvolvimento de sua hipótese, os resultados das entrevistas, que abrem os aspectos a serem explorados nos Capítulos 4 e 5, após o interlúdio representado pelo Capítulo 3, em que trata de apresentar um apanhado geral sobre os processos macrossociais de transformação da prática médica na sociedade brasileira, durante o período do estudo.
O tratamento dado às relações entre o empírico e o teórico obedece sempre a uma recíproca busca de referências confirmadoras, a um contraste oscilante entre o achado e a procura de novas determinações. Essa perspectiva desdobra-se em um sem-número de dualidades que a autora trata de resolver, sem negá-las, sem ignorá-las: o todo e a parte; o ‘interior’ técnico e o ‘exterior’ sócio-histórico da prática; as relações médico-paciente e as relações paciente-médico; o singular e o geral; a ciência e a arte; o pessoal e o profissional; o objetivo e o subjetivo; o tempo e o espaço; a permanência e a mudança. Essas ‘figuras’, em que vai reaparecendo progressivamente determinada a noção inicial de autonomia, vão-se fundindo em direção à conclusão do estudo, sem que se corra o risco de reencontrar o absoluto, enquanto as formas de historicidade e socialidade da prática vão-se abrindo para um futuro em que parecem poder ser superadas, sem que apareçam jamais como um imperativo racional ou técnico, os modos e os sentidos dessa superação.
Leitura proveitosa para médicos, historiadores, antropólogos, sociólogos e filósofos, entre outros, o estudo não cabe, todavia, em nenhuma das fragmentações disciplinares tradicionais do conhecimento. Não se tome essa característica como defeito, mas como qualidade provocante, reveladora da feição peculiar que pode assumir a saúde coletiva como campo de conhecimento ao mesmo tempo interdisciplinar, transdisciplinar, pós-disciplinar.
Resenhista
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves – Departamento de Medicina Preventiva – USP.
Referências desta Resenha
SCHRAIBER, Lilia Blima. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec, 1993. Resenha de: GONÇALVES, Ricardo Bruno Mendes. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.1, n.1, jul./out. 1994. Acessar publicação original [DR]
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