O Massacre dos Libertos. Sobre Raça e República no Brasil (1888-1889) | Matheus Gato
Matheus Gato I Imagem: CBN Campinas
O Massacre dos Liberto. Sobre Raça e República no Brasil (1888-1889) de Matheus Gato traz para a “sala de estar historiográfica” um acontecimento relegado pela calendário oficial, ocorrido em São Luís do Maranhão, durante o processo de instauração da República Brasileira, chamado “Massacre de 17 de Novembro”. 1
O boato que o golpe militar iria restaurar a escravidão mobilizou a grande população negra da cidade para protestar contra a Proclamação da República, em frente a sede do jornal republicano O Globo. A mobilização foi reprimida pela tropa postada na frente do edifício para garantir a “lei e ordem”, que abre fogo contra a multidão de negros ocasionando mortes e muitos feridos.
O autor considera o evento um acontecimento-chave para se compreender a consolidação no pós-abolição de uma clivagem racial de direitos. Daí a pergunta que: “esquemas culturais foram colocados em risco no conflito que envolveu libertos e outros negros, delegados de polícia, republicanos e administradores, em meio aos desacertos provocados pela instauração da República” (GATO, 2020, p. XIX).
Consciente da especificidade do fim da escravidão no antigo norte do Brasil e do contexto no qual ocorreram os processos sociais de racialização, mobiliza diversas fontes de pesquisa. Entre elas, artigos de jornais – Pacotilha, O globo, O País, O Diário do Maranhão -, anúncios de trabalhos, relatos de memorialistas e romances entre outras.
Nossa recepção do livro será feita em dois tempos, no primeiro, mais longo, colheremos as principais informações presente nos capítulos, para em seguida tecer breves comentários.
Reações populares ao golpe republicano
A notícia do golpe ocorrido no centro do Império contra a Monarquia Brasileira surpreendeu a cidade de São Luís, o governo do estado ficou paralisado e não tomou nenhuma atitude. Em plena desorganização institucional ocorreu o Massacre e dias depois a posse do governo da junta provisório, que durou muito pouco devido aos excessos repressivos por parte da mesma.
Embora o evento de novembro tenha sido silenciado por alguns e não tenha chamado a atenção de muitos especialistas, cronistas e memorialistas, ele foi motivo de preocupação de governadores, políticos, jornalistas e intelectuais contemporâneos aos acontecimentos (p. 9)
Evento, que não pode ser considerado isoladamente, mas justamente com outros ocorridos no interior do Estado do Maranhão, no Rio de Janeiro, em Outro Preto e no Mato Grosso, no âmbito de um contexto mais amplo de insubordinação, gerada pela desconfiança popular de que a República objetivava restaurar a escravidão.
São igualmente reveladoras as diversas referências às supostas motivações raciais e ao passado escravo daqueles que se insurgiram contra a propaganda republicana no ano de 1889 e também o são as menções à resistência contra a consumação do golpe militar que instituiu a nova forma de governo do pais (p. 20).
Matheus Gato para responder a questão como se articula a relação entre posição social, cor e ação política no Massacre e em outros fatos, que se deram no mesmo período, abre um diálogo com Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, José Murilo de Carvalho, Robert Haibert Junior e Ronaldo P. de Jesus entre outros, apontando a contribuição e os problemas da posições de cada um com relação aos tópicos mencionados acima.2
Sua hipótese:
é que a experiência da subordinação racial e a clivagem de direitos, bem como a legitimidade para violência física e simbólica dela decorrente, mediou as escolhas políticas e a expressão pública dos interesses da gente negra no pós- abolição (p. 27).
O medo da reescravidão era uma presença constante na vida de homens e mulheres negras, ou na expressão de Sidney Chalhoub “a liberdade era um direito precário para a população negra, livre ou liberta” (p. 28).3
No entanto, o medo do cativeiro e a alegada “idolatria áulica” não explicam os protestos. Em conflitos semelhantes, ocorridos em outras partes do país, pela mesma razão as pessoas não foram para a rua. “Nesse sentido, o próprio protesto, enquanto forma coletiva da ação social, chama atenção, pois oferece pistas relevantes para a interpretação” (p.29). Teria o processo alguma vinculação com a nova forma de fazer política inaugurado pelo movimentos abolicionistas, que passou a ocupar os espaços públicos?4
“Invenção do ‘problema negro’ no pós-abolição”
Para o autor investigar a especificidade do processo de racialização, que se seguiu a crise do escravismo no Maranhão, ocasionado pela densidade de gente de cor, que suplantava os trabalhadores escravos; pela vastidão do território e pela posição periférica da administração local frente ao governo nacional, reveste-se de importância.
Antes mesmo da abolição, a cor era um componente importante na estrutura social brasileira, fortemente estamental e não de classe e o controle da mão de obra difícil, a presença dos inúmeros quilombos espalhados pela província confirma. “Os quilombos ofereciam um estilo de vida muito atraente para parcela do campesinato negro que desejava se livrar do latifúndio, antes e depois da abolição do 13 de Maio” (p. 46). Os pesquisadores são unanimes em apontar a estreita relação entre acesso à terra e liberdade.
A elite maranhense atribua a decadência agrícola da província, ao atraso cultural das “classes inferiores”, população considerada aquém do marco civilizatório europeu.
Para o autor,
a persistência e imponência da cor como critério de distinção e formação de grupos no pós-abolição deve-se à plasticidade e ambivalência dessa forma de classificação que incorporou o significado moderno e oitocentista da raça sem desclassificar inteiramente os valores do passado (p. 39).
Os anúncios de trabalho, antes mesmo da assinatura da Lei Áurea fornecem pistas sobre a revalorização simbólica das categorias de cor, que mais tarde ganhou estatuto cientifico com os trabalhos de Nina Rodrigues e Justo Jansen Ferreira.5
“A cor legitimava a permanência de uma cultura análoga à da escravidão nas relações de trabalho, conferindo, ao mesmo tempo, um novo fundamento para as hierarquias sociais” (p. 55). A persistência dos valores e práticas escravistas nas relações de trabalho revelavam a porosidade das fronteiras entre a escravidão e a liberdade, no dia a dia.
A leitura dos jornais, especialmente, das cartas e artigos de ex-senhores, deixa claro que no pós abolição, o liberto passa a ser um problema social. Incapazes de promover o trabalho compulsório, de estabelecer antigas relações de trabalho, latifundiários mobilizavam estereótipos que acabaram por alterar e ampliar “os significados culturais da cor, intensificando a racialização dos critérios de distinção social na sociedade maranhense” (p. 69).
“Mobilização de classificações raciais como forma de disputa política”
O processo de emancipação ao negar a legitimidade social e política do escravismo brasileiro abriu caminho para a mobilização de categorias raciais para sustentar movimentos civis e reivindicações no espaço público.
O crescimento do Partido Republicano no país, a reivindicação de uma indenização pelos senhores de escravos e o surgimento de um movimento social auto intitulado Guarda Negra implicaram na mobilização das classificações de cor, com novas finalidades (p. 74)
O partido conservador no Brasil, ao assumir no pós-abolição a rearticulação dos interesses escravistas, transformou a crise das instituições imperiais numa crise da abolição, impulsionada por razões políticas. O partido no Maranhão teve a frente o conservador Augusto Olímpio Gomes de Castro, figura política importante na Província.
Outra consequência do processo de emancipação foi o crescimento do Partido republicano e a criação de jornais de perfil republicano na cidade, como O Novo Brazil e o Globo.
A criação da Guarda Negra, na cidade do Rio de Janeiro, em 9 de julho de 1888, também contribuiu para a compreensão das classificações raciais no imediato pós –abolição Tem-se, então que “a generalização do estigma do cativeiro a todos os negros é mobilizada com o fato de lhes imputar uma cidadania de segunda classe, uma restrição de direitos com base na presunção de um despreparo cultural para o bom uso da liberdade” (p.88)
Digno de nota que no Maranhão não ocorreram mobilizações de republicanos de cor como o Rio de Janeiro e em São Paulo, o que confirma ser a causa republicana, símbolo da “liberdade dos brancos”, uma revanche escravista.
O Massacre à luz do estigma racial
A ideia do Massacre foi preservada pela memória coletiva graças a transmissão oral, pois “os rumores não apenas transmitiam os medos e as esperanças em torno dos eventos, mas também constituíam a própria forma de acontecimentos” (p.105). Na verdade, tanto a possibilidade de reescravização como o fato do massacre faziam sentido.
Vários fatores se entrecruzaram na explicação do evento, como a inabilidade das autoridades, a intransigência de Paula Duarte – abolicionista, jornalista -, a ausência de um líder republicano com legitimidade popular.
As manifestações de 17 de Novembro ocorreram em dois momentos, pela manhã, a reação contra a conferência a ser feita por Paula Duarte no prédio do jornal O Globo e no início da noite no Largo do Carmo, onde uma multidão se reuniu.
Para o autor, os três principais relatos memorialísticos e ficcionais publicados na Primeira República, “narrem esse embate do ponto de vista do povo, condenando ou lamentando o uso da violência e – o mais importante – visando conferir inteligibilidade às motivações e à organização do protesto de libertos e outros negros” (p.116). 6
A violência não ficou circunscrita ao conflito de 17 de Novembro, a junta provisória prolongou-a por um mês, perseguindo os populares envolvidos no conflito, prendendo, intimidando e praticando tortura. “O fuzilamento, as amputações e as torturas eram avalizadas, num contexto de persistência da cultura da escravidão” (p.128).
Ao longo dos 29 dias de governo da junta provisória duas medidas simbólicas foram tomadas para diminuir a tensão e legitimar a novo governo Republicano. A destruição do Pelourinho, em 25 de Novembro, e a criação da bandeira estadual do Maranhão, sinalizando o novo pacto social da República ao convidar os libertos “a deixar para trás a sua experiência e a sua memória da escravidão, integrando-se como pessoas e cidadãos plenamente livres na nova ordem social” (p. 133).
O novo contrato social passava a ter como base a fusão e fraternidade sem abdicar da hierarquização entre os grupos sociais. Hierarquização simbolizada na disposição e quantidade de faixas da bandeira, “são quatro listas brancas, três vermelhas e duas negras, revelando a aposta no estatuto desigual entre brancos, indígenas e negros” (p. 139).
Pontuações
Muitos silêncios se fazem presentes na história política do Brasil, Matheus Gato resgata um desses eventos silenciados, ocorrido na periferia do Império, na cidade de São Luís no Maranhão, que ficou conhecimento popularmente como o Massacre de 17 de Novembro. Em O Massacre dos Libertos. Sobre Raça e República no Brasil (1888-1889) acolhe o desafio não só de tirá-lo do esquecimento, mas de compreendê-lo sob nova chave de leitura, a da racialização.
Opção, que levou o autor a realizar alguns deslocamentos: analisar o processo de instauração da República não nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo – caminho tradicional da historiografia -, mas olhar sua instalação numa província periférica e decadente do Maranhão; realçar a participação do “povo”, mostrando seu posicionamento frente ao golpe republicano ocorrido na capital do Império, isto é, abandonando de vez a ideia tão presente de um “ povo” inerte, “ bestializado” frente a proclamação da República e , principalmente, trazer a luz do dia a marca d’água presente no novo pacto social republicano, o resgate político da cor.
Para Gato, “é espantoso como acontecimentos particulares, enraizados em conjunturas locais e periféricas, podem explicar características e transformações de vulto numa sociedade” (p. 135).
O Massacre dos Libertos confirma e reitera o modo com as elites políticas brasileiras trataram e tratam os movimentos populares ao longo de nossa história. Eles são desvalorizados, ridicularizados e depois esmagados pela violência do Estado, que justifica estar agindo em nome da “lei e da ordem”. Os exemplos estão aí Canudos, Contestado, Pau de Colher para citar os mais conhecidos. Para a psicanalista Taciana de Melo Mafra Vasconcellos, AME do Toro- Escola de Psicanálise (Maceió), a “belíssima e trágica história de Canudos, ícone da barbárie do poder sócio-político-religioso em nosso país, que encontra, particularmente nessa passagem, os elementos que revelam o tecido podre com o qual foi tecida a nossa República” (VASCONCELLOS, 2020, p. 158). 7
No pós-abolição, a elite escravocrata, parte dela abolicionista de última hora, aprofundou um movimento que vinha sendo gestado em reação ao movimento abolicionista que crescia a olhos vistos no país, o de atribuir o atraso, a decadência econômica das Províncias a presença negra no Brasil. Para efetivar tal processo passou a atribuir a cor negra uma conotação política. Dinâmica assumida e efetivada pela política republicana que acabou por implantar o racismo estrutural no coração do processo de modernização do país.
A força da narrativa tecida pelo autor se faz presente num duplo movimento, que ocorre simultaneamente no convite a olharmos o passado e o presente da sociedade brasileira. Deixando claro que a compreensão crítica de eventos ocorridos no passado ilumina por dentro os problemas atuais da sociedade brasileira.
A violência, ainda, é o fator regulador das relações sociais no Brasil. Violência visibilizada de múltiplas formas como no feminicídio, racismo e discriminação de grupos minoritários. Mas, o esforço da elite brasileira para sustentar a cultura da escravidão como forma de controlar homens e mulheres está sob questionamento.
É só acolher o convite para olhar o nosso presente, para constatar a abertura para o novo que vem acontecendo no país, isto é, um acolhimento ainda que tímido pela sociedade brasileira de um pluralismo étnico, cultural e religioso, cuja ponta do iceberg é a luta contra o racismo, que vem ganhando maior espaço no Brasil e no mundo. O caminho é longo, pede a participação de todos que almejam um país mais justo no qual todos sejam cidadãos de primeira classe.
A leitura cuidadosa de O Massacre dos Libertos aponta veredas a serem trilhadas.
Notas
1 GATO, M. O Massacre dos Libertos. Sobre Raça e República no Brasil (1888-1889). São Paulo; Perspectiva, 2020.
2 FREYRE, G. Ordem e Progresso. São Paulo: Global, 2004.FERNANDES, F. A integração do Negro na Sociedade de Classe. São Paulo: Global, 2008. [1975]; Raça e Sociedade: O preconceito Racial em São Paulo. Rio de Janeiro: Zahar, 1976; JESUS, R. de. Visões da Monarquia: Escravos, Operários e Abolicionistas na Corte. Belo Horizonte: Argvmentum, 2009. 3 CHALHOUB, S. A força da Escravidão: Ilegalidade e Costumes no Brasil Oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Visões de Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras. 1990. Para resenhas ver BRITO, Ê. J. da C. Leituras Afro- Brasileiras. Ressignificações Afrodiaspóricas diante da condição escravizado no Brasil. Vol. 1. Jundiaí: Paco Editorial, 2018, p. 87-94; Leituras Afro- Brasileiras. Reconstruindo Memórias Afrodiaspóricas entre o Brasil e o Atlântico. Vol. 3. Jundiaí: Paco Editorial, 2019, p.105-115.
4 ALONSO, A. Flores, Votos e Balas: O Movimento Abolicionista Brasileiro (1868-1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Para uma resenha ver BRITO, Ê. J. da C. O primeiro grande movimento social brasileiro: a campanha abolicionista (1868-1888). HORIZONTE, v.15, n.47, p.1056-1073, Jul/Set, 2017.
5 RODRIGUES, Raimundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2011; FERREIRA, Justo Jansen. O Parto na Espécie Negra. Rio de Janeiro: Tipografia Lammert, 1887.
6 CORREA, Viriato. O Brasil dos meus avós. Rio de Janeiro: Nacional, 1927.ABRANCHES, Dunshee de. A Esfinge do Grajaú. São Luís: Alumar, 1993; Memórias de Um Histórico. Rio de Janeiro: Tipografia Oficial do Jornal do Brasil. 1895. MARQUES, Astolfo. A Nova Aurora. São Luís: Tipografia Teixeira, 1913.
7 VASCONCELLOS, T. de M. M. Antonio Conselheiro; Um sujeito com Estilo. Antigona 13. p.157- 193. Maceió: EDUFAL, 2020.O artigo da Taciana de Melo Vasconcellos nasce clássico pelos dados que fornece para compreensão psicológica de Antonio Conselheiro e pela profundidade da crítica apresentada a visões redutivas da vida e obra do Conselheiro.
Resenhista
Ênio José da Costa Brito – Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma. Professor titular do programa de estudos pós-graduados em Ciência da Religião da PUC-SP. Vice-Coordenador do Centro de Estudos Culturais Africanos e da Diáspora. Pós-Doutor em História pela PUC-SP. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7730-0760
Referências desta Resenha
GATO, Matheus. O Massacre dos Libertos. Sobre Raça e República no Brasil (1888-1889). São Paulo: Perspectiva, 2020. Resenha de: BRITO, Ênio José da Costa. Marco na formação da cidadania negra no Brasil: o massacre de 17 de novembro de 1889. Projeto História. São Paulo, v. 73, p. 387- 395, jan./abr. 2022. Acessar publicação original [DR]