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O lugar central da teoria-metodologia na cultura histórica | José Carlos Reis

O lugar central da teoria-metodologia na cultura histórica, de José Carlos Reis, é uma reunião de artigos, resenhas, prefácios, aulas, conferências e entrevistas publicados por Reis em coletâneas e periódicos brasileiros ao longo de seu compromisso como professor e pesquisador no Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Lançada pela Editora Autêntica, na seção História & Historiografia, em maio de 2019, justamente por ocasião de sua aposentadoria, a última obra de Reis pode ser definida como uma obra-memória de sua notável atuação acadêmica.

O sentido da obra-memória de Reis está na passagem entre dois modos de praticar história: partindo de um dado reflexivo e existencial, chega a fazer com que entendamos a história como conhecimento e necessidade quase vital. Um modo de pensar e de viver, podemos dizer assim. Como modo de pensar, isso significa que a história é teoria, é trabalho com os conceitos, é escolha de métodos e emprego de linguagens, para conseguir elaborar, mediante o exame das fontes, imagens que sejam representações do passado, representações do passado em vários níveis. Como modo de viver, isso implica buscar entre essas imagens da história, de representações do passado, de formas como esses passados se apresentam para nós, algo que nos ensine a viver. Em síntese: uma experiência. Experiência não diz respeito só a uma história prática, mas também teórica, como uma forma anterior de escolha das coordenadas fundamentais para nos ajudar na relação com o mundo. Mesclar esses dois modos de praticar história foi a tarefa a que José Carlos Reis se propôs em toda a sua vida profissional, como vemos nessa e em outras de suas obras, como História & Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade, verdade (FGV, 2003), História: a ciência dos homens no tempo (EDUEL, 2009), A história entre a filosofia e a ciência (Ática, 2006), História da consciência histórica ocidental contemporânea: Hegel, Nietzsche, Ricoeur (Autêntica, 2011), pois comum a todas elas é a reflexão, o pensamento, enfim, o aprofundamento de questões sobre o passado.

José Carlos Reis não é filósofo por formação, mas, como ele mesmo gosta de declarar, possui “uma vocação filosófica” (175). A imagem sua que seus livros nos revelam, ou que nos convence do seu chamado para a filosofia ou teoria, é mesmo a de um “filósofo que tem como tema a história” (176). Essa imagem que ele próprio escolheu para si é a que nos permite reconhecer seu estilo, pensamento e obra: um estilo individual e com expressão de sínteses, um pensamento abstrato e de cunho existencial, e uma obra que conversa substancialmente com filósofos e teóricos da história. Ao lado desses aspectos, há também outro em Reis, o anseio de historiador: o historiador prático, que “vai ao arquivo com suas questões e as desenvolve apoiando-se nas fontes” (14), que tem “uma atitude crítica mais lúcida para com as fontes” (14), que “formula enunciados, problemas, hipóteses e busca e encontra as provas” (15). O que José Carlos Reis propõe representar de fato é a relação tensa e fecunda ao mesmo tempo entre a filosofia e a história, e é na aplicação prática que ele vai demonstrá-la, e não apenas no modo de pensar sobre a história.

Já todo o programa da obra em tela e da atuação acadêmica de José Carlos Reis é decidido no Capítulo primeiro, intitulado “O lugar central da teoria-metodologia na cultura histórica”. “Este é o problema que vamos abordar nessa comunicação: qual seria o valor e o alcance científico do debate epistemológico-metodológico para a cultura histórica?” (11). Aqui está o tema da presente obra de Reis, assim como de toda a sua pesquisa teórica; aqui está também o tema da sua própria atuação acadêmica: a complexa relação entre a filosofia e a história, ou seja, a reflexão teórico-metodológica. O que é essa reflexão teórico-metodológica? José Carlos Reis mesmo define:

a discussão teórico-metodológica se dirige ao sujeito da pesquisa histórica, ao historiador, ao construtor que formula os problemas, seleciona as fontes, as elabora e obtém os resultados, com o objetivo de ‘cultivar a sua subjetividade’, tornando-os mais hábeis, mais eficientes, menos ingênuos, mais argutos, mais criativos, em sua sofisticada atividade (Reis 2019, 16).

A definição de Reis parece dizer respeito apenas à prática do historiador profissional, que analisa e interpreta fontes com vistas a produção de um conhecimento histórico mais aprofundado, mas é claro que ele amplia a definição mais adiante: a reflexão teórico-metodológica significa uma “atitude crítica exigida ao historiador e que tem dois momentos inseparáveis, mas distinguíveis: 1) a história é teoria; 2) a história é rigorosa, criteriosa, crítica documental” (19). Para Reis, no primeiro momento, a história é teoria, é “epistemologia, metodologia, gnosiologia, ontologia, ética, política, estética, linguística” (30), e só no segundo momento, é crítica das fontes, e isso “a partir de escolhas, decisões, definições, seleções, reflexões e construções teóricas” (30). A hipótese fundamental do capítulo e da obra “total” de Reis é que a reflexão teórico-metodológica habita um lugar especial na cultura histórica, porque, ele explica:

o nome ‘historiador’ requer um adjetivo, dizer eu sou historiador não é suficiente para definir sua identidade. O interlocutor perguntará: historiador de que tipo?, de qual tendência, em que perspectiva? O historiador terá de se redefinir: sou historiador marxista-leninista ou marxista thompsoniano, sou micro-historiador ginzburguiano ou reveliano, sou historiador estrutural braudeliano ou da 3ª geração, sou historiador positivista rankeano, sou historiador cultural empirista. Aliás, ‘empirismo’ é uma teoria da história, é um conceito que define uma prática, é uma escolha de uma atitude adotada pelo sujeito diante das fontes. Toda obra histórica é uma ‘teoria’ em movimento, implícita e realizada, mesmo não explicitada (Reis 2019, 30-31).

Se seguirmos o itinerário da obra, chegaremos a outros dois importantes temas de pesquisa para José Carlos Reis, o da historicidade e da temporalidade, e veremos que a operação teórica do autor se move no mesmo sentido de Reinhart Koselleck e François Hartog. No capítulo segundo, intitulado “Regimes de Historicidade e Historiografias”, Reis examina Futuro Passado (Contraponto, 2006) e Regimes de Historicidade (Autêntica, 2013), procurando compreender o pensamento dos autores acerca do problema do tempo histórico. Reis parte, de um lado, da metodologia da “história dos conceitos” e, especialmente, dos conceitos de “espaço de experiência” e “horizonte de expectativas” construídos por Koselleck, e, de outro, do conceito de “regimes de historicidade” ou “ordens do tempo” criado por Hartog, para refletir sobre a tensão entre “tempo histórico real-representado e historiografia” (39), para captar a estreita relação entre “a representação/realidade do tempo histórico de uma época e o conhecimento histórico que produz” (39), para mostrar enfim que “os fundamentos epistemológicos, axiológicos, políticos, estéticos, da historiografia se enraízam em uma ‘cultura’ cujo centro é uma determinada representação hegemônica da temporalidade” (39-40).

O objeto e o método da história são mais dois assuntos privilegiados por José Carlos Reis durante a sua atuação acadêmica. O primeiro, trata-se da nova concepção do objeto da história, da nova ideia de temporalidade histórica e da interdisciplinaridade da Escola dos Annales; o segundo, trata-se do método regressivo/retrospectivo de Marc Bloch. Assim, no Capítulo terceiro, intitulado “Marc Bloch, o paradigma da história estrutural dos Annales”, Reis discute as experiências do tempo e os métodos da história, a partir da obra mais conhecida de Marc Bloch, Apologia da História ou Ofício de Historiador (Zahar, 2001). A proposta de Reis é assinalar as contribuições do método regressivo/retrospectivo de Bloch para a nova concepção de história da Escola dos Annales. Segundo Reis, a historiografia dos Annales foi decisivamente influenciada pelo método de Bloch: novos campos, objetos, temáticas e problemas foram descobertos e incorporados às pesquisas dos historiadores (80), o passado passou a ser examinado como “um momento original, considerando suas origens passadas, as tendências futuras e ação atual” (83), a história passou a ser compreendida como “a ciência dos homens no tempo” (84). Nesse sentido, para Reis, a história-problema dos Annales é totalmente devedora do método regressivo/retrospectivo de Marc Bloch.

Outro tema de destaque nas pesquisas de José Carlos Reis é o da constituição do conhecimento histórico. No Capítulo quarto, intitulado “Wilhelm Dilthey (1833-1911)”, amparando-se em obras como A construção do mundo histórico nas ciências humanas (Unesp, 2010), Reis discute que ao conhecimento histórico pertence um tipo de método especial, chamado “compreensão empática” (Verstehen), que tende a integrar a experiência humana à operação cognitiva. Segundo Reis, o histori(ci)sta alemão Wilhelm Dilthey destaca-se, no século XX, em suas elucubrações sobre as ciências histórico-sociais, justamente por defender que o método mais adequado para conhecer o conteúdo da história é da “compreensão empática” (106). Reis esclarece, porém, que “Dilthey não ‘inventou’ esse método ou operação cognitiva” (106). A própria constituição do conhecimento histórico parece pender totalmente para ele. De acordo com Reis, para Dilthey, “a história tem como objeto a ‘experiência vivida’, tanto a do outro, o tu-ele-vós-eles, como a do próprio historiador e do seu presente, o eu-nós” (106). Isso significa, na concepção de Reis, que a ciência histórica é uma composição das relações entre os homens do passado e o historiador em seu presente, e que compreender essas relações separando-as da contemporaneidade basta para conhecer o conteúdo da história, que já aconteceu, que já não é o nosso.

A atenção de José Carlos Reis, no Capítulo quinto, intitulado “Identidade e Complexidade: Ricoeur, Foucault, Bauman”, centra-se na reconstrução do tema da “identidade” nas obras O si-mesmo como outro (Papirus, 1991), de Paul Ricoeur, no capítulo Nietzsche, a genealogia e a história, constante em A Microfísica do Poder (Paz & Terra, 2015), de Michel Foucault, e Identidade (Zahar, 2005), de Zygmunt Bauman. Segundo Reis, nas três obras analisadas podem se perceber os ecos de posições conflitantes, divergentes e fecundas sobre a questão “quem sou eu?”. Ricoeur considera que é possível conhecer a si mesmo, pela observação, pelo pensamento e, sobretudo, pela interpretação e narrativa de si, que nos dariam consciência mesmo da presença (125). Foucault prossegue em direção oposta à hermenêutica do soi, de Ricoeur. Para Foucault, não é possível conhecer a si mesmo, nem pela consciência nem pelo sujeito, porque não há nem um e nem outro. Não existe uma identidade estável, coerente e serena, o que existe é um “eu” descentrado, múltiplo e em disputa, que se manifesta em uma sucessão de máscaras (133). Já Bauman ultrapassa a genealogia de Foucault adaptada de Nietzsche e defende que a identidade pessoal é definida na e pela história, o sujeito não tem autonomia para determinar quem ele mesmo é, porque a resposta possível é condicionada pelo regime de historicidade da época em que ele vive (138). Reis insiste nessa linha de pensamento seguida por Bauman. Todas as perguntas colocadas por Reis na conclusão do capítulo gravitam em torno da posição de Bauman acerca da identidade pessoal, em torno daquilo que, para Reis, pode levar à mudança do mundo globalizado, e é essas perguntas que temos de voltar o foco de nossa lente, especialmente para aquelas que carregam o germe da resposta de Reis para o problema da identidade/alteridade hoje.

Outra questão que ocupa o pensamento de José Carlos Reis é a do conflito entre memória e história da historiografia brasileira. O Capítulo sexto, intitulado “Qual foi a contribuição do historiador mineiro Francisco Iglésias (1923-1999) à historiografia brasileira?”, é uma resenha, ao mesmo tempo crítica e elogiosa, do livro A universidade, a história e o historiador: o itinerário intelectual de Francisco Iglésias (Alameda, 2018), de Alessandra Santos. Nesse breve capítulo-resenha, Reis reconhece a pertinência da pesquisa de Santos e abertamente duvida de sua crítica à memória canônica e às contribuições de Francisco Iglésias à historiografia mineira e brasileira. Já o Capítulo sétimo, intitulado “A civilização brasileira está destinada ao fracasso?”, é um prefácio, em alguma medida elogioso, do livro Pensamento social brasileiro: de Euclides da Cunha a Oswald de Andrade (Alameda, 2018), de Ricardo de Souza. Nesse brevíssimo capítulo-prefácio, Reis sublinha a relevância e a felicidade do projeto de releitura dos clássicos do pensamento histórico-social brasileiro de Souza e endossa a sua visão pessimista acerca da história e da cultura brasileira. A nosso ver, a pretensão de Reis com esses dois capítulos menores é uma só: nos convidar a fazer uma análise muito séria da produção intelectual de historiadoras e historiadores brasileiros.

Também um tema em que José Carlos Reis concentra energias é o da História do Direito. No Capítulo oitavo, intitulado “História do Direito: Por quê? Como? Para quê?”, Reis tenta aproximar as ciências da História e do Direito, além de definir as tarefas de cada uma. De acordo com Reis, se comparada à ciência do Direito, a ciência da História tem um componente a mais: a preocupação com a temporalidade sob a forma de perguntas formuladas ao presente pelo historiador. Na visão analítica de Reis, a História do Direito só pode ser feita com auxílio da ciência da História porque, recorrendo aos métodos históricos, “o advogado com pretensões intelectuais” (161) consegue “oferecer a inteligibilidade das formas, discursos e instituições jurídicas no presente” (160). Sem esse auxílio, sem as ferramentas da história, sem a distância temporal do passado, sem o olhar voltado ao presente, o Direito “é enigmático, opaco, incapaz de se pensar e procurar as melhores soluções para os problemas jurídicos” (161). Assim, para Reis, a tarefa dos pesquisadores da história do Direito deve ser a de qualquer historiador: formular questões ao Direito, com o dever ético de servir ao presente.

Mais um tema fundamental no livro de José Carlos Reis é o que diz respeito à historiografia das ciências. No Capítulo nono, intitulado “A ‘historiografia das ciências’ é ‘historiografia’: por que é preciso explicar essa tautologia?”, Reis fala à vontade e em tom provocativo discute com os historiadores das ciências que não consideram a historiografia das ciências historiografia stricto sensu. Neste último Capítulo, Reis refuta a ideia arrogante dos profissionais das ciências de que “o campo da historiografia das ciências é autônomo, independente, e não precisa dialogar com a história da historiografia” (167). De acordo com Reis, se a historiografia das ciências não pertence ao campo da história da historiografia, se ela é algo completamente diferente da historiografia propriamente dita, se ela constitui um campo específico do saber científico, então ela não tem o direito de usar o nome “historiografia”. Ela teria de se designar de outra forma (167). Para Reis, ao utilizar a etiqueta “historiografia”, a historiografia das ciências revela a sua essência histórica. Sendo assim, a historiografia das ciências compartilha dos mesmos objetos, métodos, problemas e abordagens da ciência da história. Se os objetos, os métodos, os problemas e abordagens são os mesmos, por que não podemos dizer que historiografia das ciências é historiografia stricto sensu? Reis encerra depois o raciocínio com a opinião peremptória de que o campo da historiografia das ciências é um domínio da ciência da história.

Falemos sobre a outra metade da obra. José Carlos Reis não pôs as entrevistas em segundo plano no seu livro. Para Reis, ao contrário, as conversas com jovens historiadores têm a mesma importância dos capítulos. As cinco breves entrevistas são quase autobiográficas e constituem uma coleção de ideias densas, sinceras e heterogêneas de Reis sobre Teoria da História e Historiografia. Mas elas são sobretudo textos de uma espessura considerável, em que podemos sempre encontrar novos sentidos, novos significados. Acreditamos que duas delas devem ser colocadas em posição de destaque, “Há uma crise de ‘paradigmas’ na historiografia?” e “A teoria da história deve dialogar com a filosofia? Ou não?”, que correspondem às principais ideias desenvolvidas por Reis em suas pesquisas. “Há uma crise de ‘paradigmas’ na historiografia?” é uma conversa sobre historiografia dos Annales, crise dos paradigmas na disciplina histórica, hermenêutica histórica, narrativa histórica, tempo histórico; e “A teoria da história deve dialogar com a filosofia? Ou não?” apresenta todo o emaranhado do problema da relação entre a filosofia e a história e como esse problema se transformou em atuação acadêmica. São dois exemplos de entrevistas com conteúdo, de entrevistas que expressam obstinadas posições teóricas, metodológicas, epistemológicas, até políticas, em que predomina o esforço de Reis de compreender seu próprio trabalho, de explicar a sua vida profissional. Deixaremos de lado as outras três entrevistas de Reis, “O impacto da teoria de Lévi-Strauss além das fronteiras da antropologia e a superação do estruturalismo”, “A historiografia e o ‘mercado cultural’ da sociedade pós-1989”, “Os limites da historiografia para ‘representar’ os movimentos sociais atuais”, mesmo com todo o valor de seus conteúdos, porque entendemos que o nosso tema-condutor “José Carlos Reis entre a filosofia e a história” não se operou nelas plenamente.

Em O lugar central da teoria-metodologia na cultura histórica, José Carlos Reis convida-nos a um modo de fazer teoria da história e historiografia diferente do que é feito da atualidade. Isso significa que ele quer ser lido como um filósofo-historiador ou historiador-filósofo à moda antiga, que cada artigo, resenha, prefácio, aula, conferência, entrevista, cada movimento de suas ideias sintetiza pensamento e prática, reflexão e ação, sem cessar. É uma maneira de nos apresentar a realidade, de vivê-la, de apreendê-la, de estudá-la, de entendê-la, de compartilhá-la; e no fato de tê-la alcançado com grandes êxitos – por meio de sua atuação acadêmica – reside o valor dessa e de outras obras de Reis hoje no Brasil.


Resenhista

Raylane Marques Souza – Universidade de Brasília. Brasília | Distrito Federal | Brasil. E-mail: marques.raylane@gmail.com


Referências desta resenha

REIS, José Carlos. O lugar central da teoria-metodologia na cultura histórica. 1 ed. Belo Horizonte MG: Editora Autêntica, 2019. Resenha de: SOUZA, Raylane Marques. José Carlos Reis entre a Filosofia e a História. Revista de Teoria da História, v.23, n.2, p.366-370, 2020. Acessar publicação original

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Itamar Freitas

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