O legado de Marte. olhares múltiplos sobre a Guerra do Paraguai | Marcello José Gomes Loureiro
Marcello José Gomes Loureiro | Imagem: Mondes Americains
Guerras são episódios traumáticos que marcam de maneira indelével países e populações. Por tratar-se do último grande conflito bélico platino e por sua extensão, dramaticidade e sanguinolência, a Guerra do Paraguai marcou a história das Américas. Dela quase todas as quatro nações envolvidas saíram prejudicadas, sobretudo o Paraguai, todas passaram por mudanças, tanto nas relações entre si, quanto nas suas vidas políticas e institucionais internas, e suas populações tiveram as vidas alteradas.
O Brasil não estava preparado para uma guerra de tamanha envergadura como a campanha contra o Paraguai, e teve que mobilizar às pressas a população para constituir um exército, transformando civis em combatentes. Além disto, o governo imperial teve que enfrentar uma série de desafios, militares, diplomáticos e de política interna. Os seis anos do conflito desviaram a atenção do governo das reformas internas; levou a enormes gastos com a luta, gerando um déficit público que persistiu até 1889; explicitou as contradições de uma sociedade que tinha a escravidão como principal instituição; colocou à prova elementos definidores das relações sociais e da cidadania e transformou o exército em importante agente político. Além disto, os historiadores são praticamente unânimes em considerar que a guerra marcou o princípio de erosão do sistema monárquico.
Apesar dos seus desdobramentos para a vida das pessoas comuns, a Guerra do Paraguai sempre ocupou na memória coletiva brasileira um espaço bastante restrito tanto que, dois anos após seu desfecho, ela já havia caído no esquecimento da população. O não cumprimento das promessas feitas aos voluntários, cujos sacrifícios feitos nos campos de batalha permaneceram sem reconhecimento, foi o elemento que ficou gravado na memória de uma população que, nos iniciais da guerra, se manifestou com patriotismo e atendeu aos apelos do governo para a formação de batalhões de voluntários em diversas regiões do país. A guerra não encontrou ressonância junto à população nem mesmo em momentos de efemérides. Basta lembrarmos que, quando o fim do conflito completou 150, apenas uma série na TV Escola, intitulada “A Última Guerra no Prata”, e um documentário, de qualidade bastante questionável, intitulado “Guerra do Paraguai – A nossa grande guerra”, produzido pelo History Channel, foram a ela dedicados.
A apesar de o conflito ter se transformado em evento fundamental para história do segundo reinado, a festa de comemoração oficial pela vitória dos aliados só ocorreu uma vez, em 1870, e a data não foi transformada em feriado nacional. As homenagens às vitórias brasileiras foram perpetuadas em obras realizadas por encomenda oficial, como “A Batalha do Avaí”, de Pedro Américo, e o “Combate Naval do Riachuelo”, de Victor Meirelles.
Em termos institucionais, a Guerra do Paraguai foi um evento rememorado nos anos finais da monarquia pela Marinha e pelo Exército para comemorar suas participações na campanha e seus feitos nas batalhas de Riachuelo e Tuiuti. A partir da República, particularmente nos anos 1930, que se passou a reverenciar algumas batalhas e um ou outro personagem tido como significativo pela memória oficial na nomenclatura de algumas ruas e monumentos erigidos, notadamente estátuas equestres.
Diferente do que ocorreu com as memórias coletiva, oficial e institucional, na historiografia o conflito se tornou espaço de disputas de memórias a começar pelos títulos a ele atribuídos, que carregam vários sentidos e significados, a exemplo de Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, Guerra Grande, Guerra Platina, Grande Guerra, Guerra da Tríplice Aliança, Guerra da Tríplice Aliança e o Paraguai, Guerra Guasú e Guerra Total.
No ano de 1994, quando o início da Guerra do Paraguai completou 130 anos, foi realizado um colóquio na Biblioteca Nacional com o objetivo de refletir sobre as teses clássicas e propor novas abordagens sobre o tema. Na ocasião, o historiador Carlos Guilherme Mota observou que este episódio representava um “nó histórico de nosso passado comum e traumático” (MOTA, 1995, p. 253) cujos silêncios ainda se encontravam à espera de mais estudos e reflexões. Da década de 1990 para cá, pode-se dizer que as pesquisas e publicações, que já vinham ocorrendo desde fins da década anterior, aumentaram significativamente.
Não se trata, nos limites de uma resenha, de traçar um percurso detalhado da extensa historiografia brasileira sobre a Guerra do Paraguai, até porque especialistas no assunto já se incumbiram de fazê-lo com propriedade. Para nossos propósitos basta assinalarmos que poucos temas foram alvo de tantas mudanças de enfoque e deram origem a tantas revisões na historiografia como a Guerra do Paraguai. As interpretações chamadas Nacionalistas Patrióticas, que emergiram logo após o fim da guerra, escritas em sua maioria por protagonistas do conflito, prevaleceram até o final dos anos 1950, quando passaram a ser questionadas pela vertente historiográfica conhecida como Pró-Imperialista. O tema adentrou os anos 1980 tornando-se objeto de pesquisa de historiadores profissionais, o que antes não acontecia, e chegou à década 1990, que estabeleceu um ponto de inflexão nos modelos interpretativos consagrados. A partir de então, o que se constata é que a guerra tem inspirado muitas pesquisas e publicações de trabalhos que começaram a delinear um conjunto de estudos que atingiram as formas de pensar ou repensar temas como, dentre uma série de outros, o recrutamento militar de livres e libertos e seus impactos na economia e na sociedade imperial; a participação de mulheres no esforço de guerra; a profissionalização do exército e seus desdobramentos no processo de instauração da República; as representações patrióticas; a propaganda pela imprensa e a adesão popular ao esforço da guerra.
O legado de Marte. Olhares múltiplos sobre a Guerra do Paraguai, publicado em 2021, é um dos frutos desta renovação historiográfica que ainda se encontra em curso. A coletânea toma seu mote a Os deuses de casaca, de Machado de Assis, peça teatral encenada em um sarau da Arcádia Fluminense e publicada em pleno calor da guerra. Mantendo Machado de Assis como mote, citamos um ensaio seu, bastante conhecido, intitulado “Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade”. Nele Machado diria que o que se deveria “exigir de um escritor, antes de tudo, é um certo sentimento íntimo que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço” (ASSIS, 2008, p. 1205). Historiadores, poderíamos acrescentar, são profissionais que vivem às voltas com entender como pessoas de outros tempos e lugares viveram e, em função da natureza do seu ofício, produzem textos que estão diretamente relacionados aos anseios, expectativas e inquietações do seu próprio tempo.
Historiadores são homens do seu tempo e do seu país e, neste sentido, podese dizer que O legado de Marte é, ainda que essa não seja uma intenção explícita dos autores, uma resposta às inquietações de um tempo em que as mídias digitais se expandiram de forma vertiginosa e potencializaram as demandas por história por parte de um público não especializado levando, simultaneamente, a uma “fúria contra a historiografia acadêmica e [a uma] gana mercadológica pela história” (MALERBA, 2014, p. 36). Aos desafios do seu tempo, os organizadores e autores da coletânea responderam reafirmando os procedimentos do seu ofício e da história-conhecimento escrita a partir de pesquisas empíricas sólidas com o objetivo de compreender as marcas e as mudanças permeadas por conflitos e tensões construídos no campo de debates e embates travados pelos homens em outras épocas.
Pluralidade é, como o próprio subtítulo da obra indica, a palavra que sintetiza o alvo perseguido na coletânea. Mas pluralidade, é bom que desde logo seja dito, não é nela sintoma de fragilidade, de ausência de espírito crítico, nem tampouco de explicitação de certos modismos que muitas vezes se instalam na academia. Um dos pontos positivos desta pluralidade chama atenção logo que se percorre o sumário: a constatação de algo pouco comum na academia, que é a presença, lado a lado, de nomes de estudiosos com posições diferentes e às vezes conflitantes. Além de indicar a maioridade intelectual dos organizadores ela é, a nosso ver, benvinda, porque é da diversidade de posições nem sempre concordantes que a pesquisa e a escrita da história se enriquecem e contribuem para a constituição do espírito crítico no leitor.
Outro ponto que nela merece destaque diz respeito às relações dos historiadores profissionais com questões militares. Embora relativamente novas, posto que por longo tempo condicionadas a uma rejeição à história militar em função de um passado histórico recente do país, bem como à filiação de historiadores aos Annales ou à historiografia marxista, que relegaram as guerras a fenômenos de segunda categoria, estas relações têm sido um dos campos de pesquisa que mais tem crescido nos programas de Pós-graduação de várias instituições de ensino brasileiras nas últimas duas décadas. Mais: as aproximações entre pesquisadores civis e militares tem trazido para a historiografia da Guerra do Paraguai resultados importantes. Em O legado de Marte isto é constatado por meio da presença de quatro autores que são professores da Escola Naval e/ ou nela foram formados sendo um deles, inclusive, um dos organizadores da coletânea.
O diálogo com historiadores estrangeiros e as conexões entre diferentes campos da História tais como a História Social, a História Política, a História Militar, a História Cultural, a História Comparativa e a História das Relações Internacionais também são também um ponto de destaque da coletânea. Esta disposição em atrelar os temas a dimensões, enfoques e domínios diferentes chama atenção para algo que Vitor Izecksohn observou, em 2014, quando argumentou que a história da Guerra do Paraguai precisava sair do “casulo disciplinar da História Militar, aprofundando abordagens multidisciplinares que absorvam contribuições de outras áreas das ciências sociais e da própria história” (IZECKSOHN, 2014, p. 6). Em todos os capítulos da coletânea, a guerra não é vista como fenômeno universal ou categoria atemporal, mas como atividade humana e como fenômeno histórico e social, o que convida à superação da excessiva vinculação da história militar ao político, mostrando simultaneamente que a história militar não se esgota nas guerras as quais só podem ser compreendidas numa perspectiva plural.
Utilizando-se de um rico corpus documental e de uma vasta bibliografia especializada, os autores exploram grandes blocos temáticos nas quatro partes em que a coletânea está dividida. Na primeira delas, eles se debruçam sobre a historiografia da guerra mostrando seus avanços desde o século XIX. Na segunda são as relações entre políticas nacionais e internacionais o tema que agrega os textos. A terceira e quarta partes abordam a tecnologia naval, os armamentos, a propaganda na imprensa, a música e as práticas de medicina. Neste movimento percebe-se consideráveis contribuições, elaboradas por análises refinadas, para se pensar determinadas questões como, por exemplo, os limites que as abordagens nacionais imprimem ao tratamento da guerra que muito tem a ganhar com a adoção de perspectivas comparativas e das relações internacionais denotando, simultaneamente, que as perspectivas nacionais só se sustentam e se legitimam por meio dos contatos transnacionais. Os autores também oferecem aos leitores uma oportunidade ímpar para constatar como temas já conhecidos podem ser abordados por novos referenciais teóricos e vieses interpretativos, bem como novos temas, que emergem de pesquisas com fontes primárias já conhecidas ou inéditas, podem ajudar a preencher lacunas e iluminar zonas opacas do passado.
Por tudo isto, O legado de Marte constitui-se uma leitura instigante e necessária para interessados em conhecer alguns dos “nós históricos” que aos poucos vêm sendo desatados sobre um passado que ainda tem muito a ser explorado. O legado de Marte é também um alento em tempos de ataque às histórias escritas por historiadores profissionais, pois mostra que, ainda que qualquer um possa escrever ou contar histórias por meio das atuais mídias digitais ou outras mídias, nem todas têm o mesmo valor, e que os interessados em escrever histórias de qualidade para um público não especializado têm muito a aprender com os historiadores acadêmicos.
Referências
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. v. 4.
IZECKSOHN, Vitor. Uma estranha efeméride: os 150 anos da Guerra do Paraguai. 2 set. 2014. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br. Acesso em: 13 jun. 2022
MALERBA, Jurandir. Acadêmicos na berlinda ou como cada um escreve a História? Uma reflexão sobre o embate entre historiadores acadêmicos e não acadêmicos à luz dos debates sobre Public History. História e Historiografia, Ouro Preto, n.15, p. 27-50, ago. 2014.
MOTA. Carlos Guilherme. História de um silêncio: a guerra contra o Paraguai (1864-1870) 130 anos depois. Estudos Avançados, Rio de Janeiro, v. 9, n. 24, p. 243-254, 1995.
Resenhista
Silvia Cristina Martins de Souza – Professora associada Nível C na Universidade Estadual de Londrina, doutora pela Unicamp (2000).
Referências desta Resenha
LOUREIRO, Marcello José Gomes; FERREIRA, Leonardo da Costa; NETO, José Miguel Arias (Org.). O legado de Marte. olhares múltiplos sobre a Guerra do Paraguai. Curitiba: Appris, 2021. Resenha de: SOUZA, Silvia Cristina Martins de. Uma guerra, muitas histórias. Antíteses. Londrina, v.15, n. 29, p. 427-434, jan./jul. 2022. Acessar publicação original [DR]