O jardineiro de Napoleão. Alexander von Humboldt e as imagens de um Brasil, América (sécs. XVIII e XIX) | Thiago Costa e Adriadne Marinho
Não resta dúvida de que o naturalista alemão Alexander von Humboldt representa um marco fundamental na história das ciências no século XIX. Lido e adorado por quase todos os homens cultos de sua época, Humboldt serviu de inspiração intelectual para ninguém mais ninguém menos que Charles Darwin e despertou os ciúmes de um megalômano Napoleão Bonaparte. Foi comparado à Aristóteles, Arquimedes, Copérnico e Newton, e considerado um “segundo Colombo”, o “redescobridor da América”. De acordo com Laura Dassow Walls, a popularidade do pesquisador alemão era tão generalizada no interior dos Estados Unidos em meados do oitocentos que acabou por consolidar o que a pesquisadora chamou de “fenômeno Humboldt”.
Um fenômeno, no entanto, que também verificamos em parte dos países europeus e da totalidade do continente americano, incluindo aqueles em que jamais esteve, como o Chile e o Brasil. Entre os anos de 1799 e 1804, acompanhado do médico e zoólogo francês Aimé Bonpland, Humboldt realizou um longo périplo pelo continente americano, atravessando as regiões que hoje formam os países da Venezuela, Cuba, Colômbia, Equador, Peru, México e os Estados Unidos. De volta à Europa, os dois pesquisadores levaram consigo uma enorme coleção de objetos naturais e apontamentos científicos, que incluíam desde observações da formação geológica dos territórios visitados, medições astronômicas, espécimes da flora e da fauna, e estudos de história, economia e antropologia das diversas sociedades – indígenas e mestiças – a que tiveram contato. No continente europeu, entre a França e a Alemanha, Humboldt dedicou-se à sistematização e publicação dos resultados da empresa naturalista, formando assim um amplo circuito de troca de informações com diversos outros cientistas ao redor do mundo, em uma espécie de sociedade internacional para o desenvolvimento da ciência.
Certamente a extensa rede de contatos mantida por Humboldt ao longo de sua vida, com diplomatas, intelectuais, cientistas e artistas também auxiliou na manutenção de sua descomedida popularidade, tanto na Europa quanto na América. Aliada a um inesgotável faro de investigador, o sábio viajante tornou-se não apenas o maior naturalista de sua época como, de igual modo, em referência absoluta para assuntos considerados americanistas. Em realidade, a intensa atividade epistolar consistia em estratégia de presentificação dentro dessa espécie de “República das Letras” formada pelo grande universo dos viajantes – que incluía, entre outros, editores, livreiros e leitores. Humboldt sabia muito bem disso e empregou a escrita enquanto ferramenta de construção da identidade de “homem da ciência” desde os primeiros momentos de sua expedição pelo interior americano. Tanto as frequentes citações aos instrumentos científicos quanto as impressionistas descrições da natureza dos trópicos – a constante oscilação e interpenetração entre arte e ciência –, agiam como elementos referenciais que garantiam ao autor uma representação mais adequada ao papel do cientista-viajante.
Foi por isso que em artigo de 1850, Henry T. Tuckerman definiu Humboldt como o modelo ideal de viajante. Para Tuckerman, o sábio alemão era, de fato, “The Naturalist”. Isto é, o paradigma mais perfeito da atividade naturalista. E a abrangência e importância dos seus empreendimentos científicos dotavam-no de tal notoriedade que só tinha paralelo com a de outra figura ainda mais extraordinária à época, vale dizer, a do general e imperador Napoleão Bonaparte. De acordo com Tuckerman, Humboldt era um verdadeiro “Napoleon of Science”2. A analogia não era gratuita, nem isolada.
Anos antes de Tuckerman, o poeta estadunidense Ralph Aldo Emerson já havia descrito o viajante alemão como “the Napoleon of travellers”3. De modo que no centenário de nascimento de Humboldt, celebrado em Boston em 1869, não foi surpresa quando Oliver Wendell Holmes – como a maior parte dos presentes – lembrou que Humboldt e Napoleão foram contemporâneos, ambos nascidos no mesmo ano de 1769 e com a diferença de apenas um mês. Mas, para além das coincidências de nascimento, em seu discurso de comparação Holmes enaltecia o alemão, considerado um “hero of knowledge”, cujos “triumphs cost no sufferer’s tear!”4. No mesmo sentido de Holmes, em The Passage to Cosmos: Alexander von Humboldt and the Shaping of America (Chicago, 2009), Laura Dassow Walls comentou o episódio em que ficavam patentes as diferenças de personalidade que nortearam Humboldt e Napoleão. Conforme Walls, ainda criança, em um encontro em Berlim com o rei Frederico II, ao ser questionado se gostaria de se tornar um “conquistador”, Humboldt teria respondido, “Sim, senhor”, mas “com a minha cabeça”5.
A aproximação entre estas duas importantes figuras não é simples. Sabe-se que o imperador francês nascido na ilha da Córsega não nutria os melhores sentimentos pelo alemão. Encontraram-se uma única vez, em Paris, em jantar na noite de outubro de 1804, oferecido como comemoração ao retorno à Europa de Humboldt e Bonpland, então já naturalistas célebres. Foi quando o político dirigiu-se ao sábio viajante, “Monsieur, interessa-se por botânica?”, questionou Napoleão, “Minha esposa também”, concluiu sem dar tempo para a resposta do alemão. Em carta para a cunhada, Caroline, Humboldt afirmou mais tarde que o imperador “parecia estar cheio de ódio contra mim”6. A partir daí o cientista estaria sob os olhares vigilantes da guarda de Napoleão. Em 1810 foi acusado de espionagem e recebeu intimação para deixar a França em 24 horas. Amigo de personalidades como Georges Cuvier, Gaspard Monge e Pierre-Simon Laplace – intelectuais próximos ao imperador –, Humboldt conseguiu a anulação da ordem graças à intervenção do químico e tesoureiro do senado, Jean Antoine Chaptal, que considerava Humboldt o maior cientista da época7.
Com o título de “O jardineiro de Napoleão: Alexander von Humboldt e as imagens de um Brasil/América”, os historiadores brasileiros Thiago Costa e Ariadne Marinho não querem sugerir que Humboldt, em algum momento, tenha estado a serviço de Bonaparte. Apesar de exímia habilidade como diplomata, a aproximação com o imperador francês era delicada. Aludem, isso sim, às grandiosas pretensões napoleônicas, cujos interesses políticos de dominação de territórios estrangeiros incluíam igualmente a apropriação do patrimônio e o estudo rigoroso da cultura e do mundo natural. Como ocorreu, por exemplo, na Itália, na Grécia e no Egito. Napoleão era um matemático aficionado e participava de diversas sociedades científicas francesas, daí o esmero com que lidava com as questões de arte, ciência e cultura, tanto no interior da França quanto nos países invadidos. Seu conselho íntimo era composto por naturalistas, além de militares.
E nesse campo específico de atuação, a ciência, Humboldt era inequivocamente a figura central – muito mais reconhecido que o imperador, o que talvez explique a animosidade e o desprezo direcionados ao sábio alemão. Sua viagem ao interior americano constituiu-se como marco fundamental para a cultura e a ciência oitocentistas e serviu de parâmetro para diversos viajantes e naturalistas a partir de então. A publicação gradual de suas cartas ainda durante a expedição, e de suas obras tão logo o regresso à Europa, repercutiu de maneira extraordinária nos dois lados do Atlântico e forneceu contribuições importantes para a formatação – em alguns casos, para a formação – de diferentes disciplinas, como a geografia, a geologia, a climatologia, a botânica, a zoologia, entre muitas outras.
No entanto, caberia a pergunta: se o sábio viajante jamais esteve no Brasil, qual seria a relevância para o público brasileiro de um livro dedicado à sua memória e aos viajantes europeus que, seguindo seus passos, percorreram o interior americano na primeira metade do século XIX? A resposta, tal e qual a sua obra, é tão ampla quanto variada.
As referências constantes dentro da obra do pesquisador alemão demonstram o profundo conhecimento de Alexander von Humboldt sobre o Brasil. As relações que manteve com intelectuais, autoridades e instituições e, ainda, com diversos viajantes europeus, artistas e/ou naturalistas, que penetraram o território luso-brasileiro, franquearam a Humboldt o acesso a um amplo conjunto de informações, muitas das quais guardadas em segredo pelo governo português. Deste modo, mesmo que à distância, o naturalista teve à sua disposição um farto material de consulta.
Em 1999, a pesquisadora brasileira Maria de Fátima Costa publicou em periódico mexicano o artigo “Humboldt y Brasil”, no qual traçava as relações que aproximavam o naturalista alemão do país sul-americano. Entre outras considerações, Fátima Costa apontou o destacado papel de Humboldt nas tratativas diplomáticas que pretendiam definir as fronteiras do Brasil com a república venezuelana na década de 1850, em uma negociação que então já se arrastava por anos. A participação do sábio viajante, embora não fosse resolutiva, foi bem recebida pelo império brasileiro que, além de ratificar suas informações, lhe agraciou em 1855 com a medalha da “Grande Ordem do Brasil”8. Também no século XX, Helmut Andrä destacou a importância das obras de Humboldt para a constituição de um “criticismo histórico” na interpretação do passado brasileiro. Em “Alexander von Humboldt e suas relações com o Brasil”, publicado em 1964, Andrä afirmou que o Examen critique de l’histoire de la géographie du Nouveau Continent (3 volumes, Paris, 1833) exerceu poderosa influência na elaboração de uma perspectiva mais crítica e rigorosa na análise dos dados acerca da formação histórica tanto do Brasil como de outros países americanos9. No caso brasileiro, a intervenção do sábio viajante no modelo de interpretação da história do país deu-se, sobretudo, por meio do trabalho do diplomata Francisco Adolfo de Varnhagen, autor de História Geral do Brasil (1854-1857), considerado um dos fundadores da historiografia brasileira e com quem Humboldt correspondia-se com frequência.
Os dois episódios – de ampla abrangência em sua determinação, seja da constituição física, seja da identidade histórica do país – já seriam suficientes para justificar a pertinência e a atualidade da coletânea que ora se apresenta ao público leitor, no ano em que se comemora o 250º aniversário de nascimento de Alexander von Humboldt. Mas, sua importância e influência nos países americanos e europeus abrange diversos campos, que vão além das contribuições específicas às ciências naturais e dos comentários de geopolítica dos lugares que visitou no decorrer de sua inesquecível viagem.
A obra está dividida em duas partes. A primeira, intitulada simplesmente “Humboldt”, contém quatro artigos, dentre os quais dois abordam diretamente a figura do sábio viajante alemão. Destacam-se aqui seu papel de teórico no campo das artes visuais, as implicações de seu trabalho científico na produção artística de pintores e desenhistas europeus que estiveram no Brasil na primeira metade do século XIX, e deixaram marcas indeléveis no meio intelectual e cultural do país. Um exemplo notável consiste na incorporação da pintura de paisagem em instituições de ensino artístico; sua autonomia dentro do quadro das belas-artes também surge – entre outros antecedentes – como evidência da repercussão positiva da obra de Alexander von Humboldt no Brasil.
Com efeito, a visualidade do conhecimento era uma preocupação verdadeira para Humboldt. Em sua obra, a imagem consistia em instrumento central que colaborava ativamente não apenas na apresentação dos resultados, mas igualmente na produção do saber. Tal preocupação tinha um antecedente bem conhecido quando Humboldt deixou a Europa em direção ao interior americano. Assim, a segunda parte, “Nos jardins de Napoleão. Arte, Ciência e Representação entre os viajantes”, apresentam-se sete textos em que se analisam aspectos pontuais de diferentes viagens e viajantes. Da mesma forma que Humboldt gozou de enorme popularidade nos mais diversos ambientes, os viajantes e cientistas que tomaram o sábio como modelo para as suas próprias atividades naturalistas também exerceram papel destacado no meio científico e intelectual de seus respectivos países. Todos eles, viajantes que seguiam os passos do sábio alemão, direta ou indiretamente contribuíram para a ampliação do conhecimento e para a difusão do modelo científico de Humboldt ao longo do século XIX. É com esta perspectiva que Costa e Marinho selecionam os capítulos da última seção dessa bonita coletânea, com trabalhos que abordam os antecedentes e os desdobramentos da atividade científica de Alexander von Humboldt.
Deste modo, quando diversos países da Europa e da América celebram juntos mais um ano de nascimento do sábio viajante alemão, com “O jardineiro de Napoleão. Alexander von Humboldt e as imagens de um Brasil/América (sécs. XVIII e XIX)” os autores desejam contribuir com a ampliação do seu nome com a coletânea que ora se apresenta.
Notas
2 WALLS, Laura Dassow (1990). ““The Napoleon of Science”: Alexander von Humboldt in Antebellum America”. Nineteenth-Century Contexts, 14:1; p. 71-98.
3 WALLS, Laura Dassow (2009). The Passage to Cosmos. Alexander von Humboldt and the shaping of America. Chicago: University of Chicago Press; p. 252.
4 HOLMES, Oliver Wendell (2004). The Poetical Works of Oliver Wendell Holmes, Complete. The Project Gutenberg EBook; p. 315,
5 WALLS, Laura Dassow (2009). The Passage to Cosmos. Alexander von Humboldt and the shaping of America. Chicago: University of Chicago Press; p. 14-15.
6 SACHS, Araon (2007). The Humboldt Current: Nineteenth-Century Exploration and the Roots of American Environmentalism. Oxford University Press.
7 WULF, Andrea (2016). A invenção da natureza. A vida e a descoberta de Alexander von Humboldt. São Paulo, Editora: Crítica; p. 210.
8 COSTA, Maria de Fátima (1999). “Humboldt y Brasil”. Amerística La Ciência del Nuevo Mundo, México, v. 3; p. 31-40.
9 ANDRÄ, Helmut (1964). “Alexander von Humboldt e suas relações com o Brasil”. HUMBOLDT – Revista para o mundo luso-brasileiro. Ano 04, número 10; pp. 68-74.
Resenhista
Thiago Costa – Docente do IFMT – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso, Campus Fronteira Oeste/ Poste e Lacerda. Doutorando em Estética e História da Arte pela USP.
Referências desta Resenha
COSTA, Thiago; MARINHO, Ariadne. O jardineiro de Napoleão. Alexander von Humboldt e as imagens de um Brasil/América (sécs. XVIII e XIX). Curitiba: Appris, 2019. Resenha de: COSTA, Thiago. Nos jardins de Napoleão a América de Humboldt e dos viajantes. Outras Fronteiras. Cuiabá, v.6, n.2, p. 93- 98, ago./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]