O integralismo nas águas do Lete: história, memória e esquecimento | Rogério Victor Lustosa
A problemática da memória e as suas múltiplas abordagens têm se tornado um tema recorrente na produção da História nas últimas décadas. A historiografia que aborda o movimento integralista não foge desse novo enfoque, tendo sido produzidos, nos últimos anos, vários trabalhos para analisar tanto a forma como os militantes da Ação Integralista (novos e velhos) interpretam e reelaboram seu próprio passado, quanto a maneira como outros agentes políticos e sociais interpretavam o movimento dos camisas-verdes.
Trabalhando nessa seara, o jovem pesquisador Rogério Lustosa Victor apresenta uma importante colaboração ao tema. No livro ora resenhado, o qual foi apresentado inicialmente como dissertação de mestrado na Universidade Federal de Goiás em 2004 e publicado no ano seguinte, a questão da memória integralista é trabalhada nos mais diferentes ângulos, sendo oferecidas importantes reflexões ao estudioso do tema.
Nos dois primeiros capítulos do livro o autor analisa, essencialmente, a construção de uma memória a respeito do Integralismo elaborada por aquele que o venceu em 1937-1938, ou seja, o governo de Getúlio Vargas, assim como aquela que foi construída no período da redemocratização, ou seja, após 1945.
Analisando a imprensa e outras fontes, ele demonstra como se definiu o que deveria ser rememorado sobre o movimento. Com relação ao Estado Novo, ele indica como o regime usou os instrumentos de poder do Estado não apenas para eliminar o Integralismo enquanto opção política e um rival, mas também para criar um discurso antiintegralista e uma nova memória. Nesta, o movimento é algo patético e Salgado um chefe covarde, enquanto o Estado Novo é apresentado como racional e defensor do progresso. Vargas e o Estado Novo seriam a contraposição positiva a Salgado e ao Integralismo.
Com relação ao pós-1945, o autor demonstra como a imprensa e várias forças políticas da época tinham interesse em destruir as chances políticas dos ex-integralistas (agora agrupados no Partido de Representação Popular) e de marcá-los como os únicos simpatizantes do fascismo e do autoritarismo no Brasil, o que daria credenciais democráticas a Vargas, a Dutra e outros. Para tanto, procurou-se associá-los ao nazismo. Exemplo disso é o famoso texto de David Nasser sobre 1938, construído justamente para formar uma memória na qual os integralistas voltavam a ser vistos como covardes e também nazistas e traidores. Teria sido bem-sucedida a construção. Os sentimentos simpáticos ao nazismo do Estado Novo foram esquecidos, Vargas foi reeleito presidente em 1950 e, no mesmo ano, Salgado não conseguiu se eleger senador. A batalha pela memória teria sido perdida pelo Integralismo e seus herdeiros.
No capítulo 3º, o autor se afasta do período entre os anos 30 e 50 e caminha para o presente, estudando a maneira como o movimento é visto pelos livros didáticos. Sua conclusão é óbvia, mas não menos reveladora, ou seja, que eles reproduzem e fazem circular a memória histórica dos vencedores. Ele analisa livros de varias épocas para chegar a essa conclusão, indicando como, também aqui, o Integralismo é visto como algo absurdo, fora de lugar e até mesmo ridículo.
Já no capítulo final, ele faz uma elaborada análise de como os remanescentes do Integralismo, em várias épocas, rememoraram o movimento. Ele estuda em detalhes o esforço de líderes como Plínio Salgado para levar a sua versão dos acontecimentos para o domínio público (como o que fez, por exemplo, nas sessões da Câmara em 1959 ou 1972, quando tentou incluir, sem sucesso, os mártires integralistas na galeria de heróis da Nação e o Manifesto de 1932 na lista de datas históricas nacionais) e a abundante literatura produzida pelos ex-militantes e/ou novos adeptos para trabalhar essa memória.
O interessante e original na abordagem de Victor é que ele consegue demonstrar que não apenas uma, mas várias memórias integralistas convivem, de forma nem sempre coerente entre si. Assim, para os que abandonaram o movimento, como Miguel Reale, era mais fácil admitir, por exemplo, que o Integralismo era algo próximo ao fascismo. Como ele não estava mais ligado a esta memória, o passado era simples passado e assim ficava mais fácil reconhecer o erro e esquecê-lo. Para os que ainda estavam ou estão no movimento, contudo, e querem revivê-lo, a situação é mais complexa, pois o passado ainda não acabou e não pode, pois, ser superado, sob pena de colapso interno das próprias crenças.
Além disso, ele indica, de maneira inovadora, como a própria memória (ou memórias) do Integralismo acabou, num certo sentido, por absorver a do vencedor. Quando os integralistas, por exemplo, recusam a pecha de fascistas ou admitem que o putsch de 1938 foi um erro, eles acabam por concordar inicialmente com a visão do vencedor de que o fascismo é negativo ou de que o golpe de 1938 foi extremamente mal organizado, para só então tentarem se afastar dessa crítica.
Novamente, haveria variações entre uma memória integralista mais oficial, que tende a absorver partes da memória do vencedor para construir a sua, alternativa, e uma menos enquadrada, que resiste a absorver os padrões gerais da memória histórica dominante. Ainda assim, é impossível não concordar com o autor que, em linhas gerais, a memória integralista ficou fora da memória oficial e que é por isto que nos espantamos com suas manifestações atuais, pois eles parecem deslocados no tempo, fantasmas.
Em resumo, é possível, através do livro de Rogério Lustosa Victor, aprender muito tanto sobre os processos de construção da memória como sobre vários aspectos da história do movimento. Efetivamente, muitas vezes, mesmo historiadores treinados podem ser iludidos pela força da memória do vencedor, seja na análise das fontes produzidas pelo Estado, seja na leitura de obras que apenas reproduzem a história oficial. O livro de Lustosa Victor colabora para que fiquemos mais atentos a este problema.
Um risco, não obstante, na abordagem de Victor, é que, ao indicar a maneira como a memória a respeito do Integralismo foi construída pelos vencedores, e destrinchá-la, podem-se levar algumas pessoas a acreditar que tudo o que foi afirmado pela memória oficial está automaticamente errado e desautorizado, o que poderia levar, no limite, a justificar a auto-representação do Integralismo.
Assim, se algum historiador pesquisar um assunto relativo ao movimento e encontrar informações que aproximem a sua análise à história oficial, ele pode acreditar que tudo não passa disso e recusar as evidências, sem analisá-las corretamente, ou aceitar as evidências e deixar que sua avaliação se aproxime da memória do vencedor. Neste último caso ele imediatamente será chamado, pelos herdeiros do Integralismo, de ignorante, enganado pela história dominante, o que lhes dará um instrumento de enorme eficácia para a luta contra seus opositores e contra os historiadores que não reproduzam a sua versão do passado. Não é à toa que o livro de Victor, conforme indicado no Prefácio, foi quase recusado, por parecer um livro de defesa do Integralismo.
Não é certamente este o caso, e teria sido uma pena a recusa de publicação de um trabalho tão interessante; mas há realmente um risco de, ao destruirmos uma memória, simplesmente abrirmos caminho para a sua rival, mesmo que isso não tenha sido a intenção do autor. É um risco que existe e deve ser levado em conta, e que só pode ser afastado, pelo historiador, por um rigoroso trabalho de reconstrução do seu tema de pesquisa.
Um exemplo pode facilitar o entendimento do que quero dizer. Victor demonstra como a AIB é pouco mencionada nos estudos gerais sobre os anos 30, ao contrário de Vargas, porque um venceu e o outro perdeu. Correto, sem duvida, e o integralismo mereceria no mínimo ser mais bem estudado; mas isso significa que, para romper com a memória oficial, devemos colocar Salgado e Vargas no mesmo nível, quando a trajetória do segundo foi efetivamente mais importante para compreender os caminhos do país no período?
Do mesmo modo, entender que a construção do golpe de 1938 como algo patético ou chamar o Integralismo de “fascista” foram construções ideológicas e políticas utilizadas contra o movimento é algo mais do que correto. Não obstante, admitir isso não significa que efetivamente o golpe de 1938 não possa ser visto dessa forma ou que qualquer análise conceitual do Integralismo como uma forma de fascismo seja reflexo da memória dominante. Cabe ao historiador, com o uso criterioso dos documentos, analisar as várias memórias e verificar o que tem um pé na realidade e o que é apenas construção.
Este, na verdade, é o grande problema dos trabalhos que abordam o tema da memória, ou seja, o de perder o foco e começar a ver todos os tipos de reconstrução do passado como memórias, empírica e epistemologicamente equivalentes, negando até mesmo um real que, ao menos em parte, pode ser reconstruído. A partir daí, a História se converte numa coleção de memórias, e não há nenhum critério para separar o que tem uma base no real do que não o tem, o que é altamente preocupante ao dar credibilidade a todo tipo de construção, mesmo as que não têm nenhum fundamento comprovável.
O livro de Lustosa Victor com certeza não chega a esses limites de negação do real e, como já indicado, oferece uma colaboração consistente para os avanços no estudo do tema; mas é sempre útil recordar que o historiador não é apenas o colecionador de memórias e que História e Memória são perspectivas complementares, mas não equivalentes.
Resenhista
João Fábio Bertonha – Professor Doutor do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá.
Referências desta Resenha
VICTOR, Rogério Lustosa. O integralismo nas águas do Lete: história, memória e esquecimento. Goiânia: Editora da Universidade Católica de Goiás, 2005. Resenha de: BERTONHA, João Fábio. Diálogos. Maringá, v.10, n.2, 191-195, 2006. Acessar publicação original [DR]