O Império do sentido: a humanização das Ciências Humanas | François Dosse
Há algum tempo a discussão acerca da atuação social dos pesquisadores de várias áreas do saber, mas principalmente das Ciências Humanas, tornou-se um tema vigente na França e também tem ganhado perspectiva no Brasil. Ao que tudo indica, o cenário se encontra polarizado entre os filósofos midiáticos e a comunidade atomizada dos pesquisadores em Ciências Humanas, estes, cada vez mais fechados em sua tecnicidade e incapazes de produzir para o grande público de maneira convidativa a participar do debate. Evidentemente, é necessário pontuar que o fazer científico ocorre de maneira distinta na França e no Brasil, e exportar o modelo do debate sem uma reflexão pode ocasionar erros. Mas é nesse sentido que a obra de François Dosse, O Império do sentido, se mostra atual por fornecer uma base para repensar o vínculo social dos pesquisadores na Cidade moderna. Reflexão essa que no Brasil ainda se encontra por fazer, ao menos com tamanha profundidade tal qual fez François Dosse em seu livro. Logo, a escolha por traduzir a obra em 2003 e reeditar a obra no recente ano de 2018 foi mais do que acertada. Mas se na primeira aparição a obra em terras tupiniquins se deu com o tom informativo, sua segunda traz o tom de aviso pois evidencia um cenário que pouco mudou em 15 anos, dentro de um período em que a discussão se tornou mais latente do que nunca e a atuação desses pesquisadores passou a ser uma demanda social.
Especialista em biografia, François Dosse1 encarou a singular tarefa de biografar as Ciências Humanas. Por mais que o autor não o diga diretamente, é possível perceber o seu método biográfico no decorrer do texto, como se traçasse uma árvore genealógica e adentrasse nas relações que as Ciências Humanas travaram no último século com as áreas parentes, as Ciências Exatas e a Filosofia. Coincidência ou não, é através do conceito de semelhanças de família, emprestado de Wittgenstein, que Dosse delineia uma maior aproximação entre ambas as áreas do conhecimento, após a superação dos paradigmas monocausais dos séculos XIX e XX. Foi através da semelhança de família que as ciências passaram a aceitar as possibilidades de múltiplas interpretações, mais do que isso, é nesse âmbito que o diferente deixa de ser visto como errado e passa a ser visto como complementar.
A noção de complementaridade das áreas do saber apresentou-se como uma solução à crise teórico-metodológica, a qual tendia a oscilar entre a abordagem intestina e a abordagem totalmente voltada para o aspecto externo. A obra tem como perspectiva a noção de que foi através do olhar para o vínculo social que tal encaixe se mostrou possível, sem marginalizar ou centralizar qualquer sistema de enunciados, pois detinham o objetivo comum de solucionar as demandas da cidade.
Contudo, parecia faltar ainda um meio pelo qual os enunciados problemáticos conseguissem transitar entre as ciências, e foi assim que a noção de tradução se fez presente. O autor elenca Michel Callon e sua comunidade de pesquisadores como um exemplo bem-sucedido de pesquisadores que passaram a empregar a noção de tradução, emprestada de Michel Serres, com o objetivo de criar uma equivalência entre níveis heterogêneos que possibilitasse adentrar cada vez mais no interesse pelos vínculos entre conteúdo científico e ambiente social. E na linha do agir comunicacional de Habermas, esse interesse revelava uma preocupação em dar à política científica instrumentos tão operacionais quanto aqueles da política econômica e social. Não seria para menos, visto que os pesquisadores dessa geração da transição dos 1970’s para os 80’s eram adolescentes durante o Maio de 68. Mais do que formados em meio a um cenário de turbulências políticas, foram forjados em um ambiente onde o fazer científico não estava e nem poderia estar desvinculado do político, do social, da cidade.
As comunidades de pesquisadores passaram a se apresentar como importantes para que as ciências pudessem, enfim, ter como norte solucionar as demandas da sociedade. Nessas comunidades de pesquisadores trocas importantes foram operadas, como o desvio americano pelo qual passam os historiadores franceses e nele redescobrem a História Oral na Sociologia Americana da Escola de Chicago, e se inspiram nesta para dominar melhor a multiplicação de suas fontes. A efetividade dessas filiações em comunidades, e como o transporte e troca de informações ocorreu, foi posta à prova por Roger Chartier, que em entrevista a François Dosse afirmou que os historiadores foram capazes de fazer pragmática mesmo sem um contato direto com a filosofia, evidenciando que se tratava de um processo de humanização que percorria toda a rede de pesquisadores e que essas conexões podem ter se dado, também, de forma indireta.
Ao passo que os pesquisadores se voltaram para o vínculo social como uma possibilidade de encarar a relação ser-conjunto, diferente do binômio centro e periferia, também passaram a se vincular com os colegas das áreas parentes, criando comunidades em rede, centros de pesquisas transdisciplinares que tinham a cidade como um laboratório privilegiado. Atentavam para a relação entre indivíduo e sociedade, e inseriam-se na sociedade ao mesmo tempo. A humanização das ciências, não só as humanas, passa a construir uma alternativa não só à querela da relação entre sociedade e indivíduo, mas também à querela entre objeto e observador que pairava nas ciências. Têm-se um exemplo desse processo de humanização em redes, e com vistas às redes, com a nova Antropologia das Ciências Sociais que, nascida no Centre de Sociologie de l’Innovation (CSI) com Michel Callon e Bruno Latour, tomou como objeto o fato total, onde o conteúdo e contexto passaram a ser estudados em combinação, atendando para os fatores que fundamentam o vínculo social, os microvínculos.
François Dosse compreende que, finalmente, supera-se o paradigma estruturalista dominante nos anos 1950-1975 onde as ciências valorizadas eram aquelas que tinham a maior capacidade de expropriar a própria presença, o atestado de si, e o pesquisador estava imerso na ilusão da possibilidade de fazer uma ciência totalmente distante do objeto. Quando tal impossibilidade é percebida, tanto nas Ciências humanas como nas Ciências Exatas, a ciência passa a ser vista como inteiramente social.
É dentro de tal entendimento da ciência que a geração de pesquisadores forjada durante as turbulências do Maio de 68 vê a necessidade de trazer os cidadãos implicados nas pesquisas de experts para o debate, e tratar de questões onde seus interesses lhe são sensíveis. É nessa busca por restaurar o debate em praça pública que o político reassume importância, não mais atentando a uma lógica racionalista, mas a um novo pensamento político-filosófico expresso na ideia do Parlamento das Coisas, onde objetiva-se estender a democracia a todos, tudo e todos tornam-se porta-vozes do debate. Fala-se em “tudo” pois o precursor da ideia Bruno Latour e sua comunidade de cientistas compreendem que o político e o científico voltados para a sociedade precisam lidar com pautas além do humano, ou da definição de humano da ontologia do século XIX e até mesmo do XX, reivindicando uma indistinção entre o humano e o não-humano. Pautas como a ecologia norteiam o debate, através do pressuposto de que para compreender a comum humanidade do homem, do ser, tenha-se que compreender e preservar o que complementa a mesma como os elefantes do Amboseli, a água divagante do Drôme, os ursos dos Pirineus, as pombas do Lot, o lençol freático de Beauce, pois talvez sem estes o ser não seria humano.
Esse processo de humanização não está expresso apenas no surgimento de novas ciências, mas também na reconciliação entre as áreas do saber, tornando-se necessário salientar que, do ponto de vista de François Dosse, trata-se de um processo que se retroalimenta. Enquanto a confluência entre as Ciências Humanas, Exatas e Filosofia possibilitou, e possibilita, o surgimento de novas áreas, o surgimento de novas disciplinas aumenta a aproximação das ciências e cria pontos de intersecção dentro dos limites das ciências. Dando margem para o surgimento de áreas de atuação como a já citada Antropologia das Ciências Sociais.
Sob esse novo prisma das Ciências Humanas, o político passa a ser visto como uma modalidade de prática social que fundamenta o estar-junto, assumindo a responsabilidade sobre o vínculo social e as relações com a natureza, pois parte-se do entendimento de que o social é composto pelo político. Em um primeiro momento, pode parecer que se têm apenas uma aproximação de ciências que tratem o presente e o meio social de forma direta; entretanto, disciplinas que tem como objetos outros que não os contemporâneos, como a História, passam a ter papel central nesse processo de criação de sentido através das ciências humanas. A História bate à porta do político para explicar fatos importantes e esclarecer a espessura temporal das questões do presente, ganhando um papel basilar, sob a ótica de Dosse, pois essa permite que a sociedade se interrogue sobre os vínculos tecidos com a memória, ao passo que lida com o luto de um passado.
Lidar com o luto implica diretamente em lidar também com a herança que a construção das disciplinas implicadas legara para a contemporaneidade, e assim compreender os vínculos interpostos nessas teorias, reaproveitá-los e confrontá-los. Cita-se como exemplo a obra De la justification de Luc Boltanski e Laurent Thévenot (2006), onde ambos buscando compreender as cidades como modelos de grandezas dos indivíduos, revisitam teóricos clássicos que lidaram com o conceito de cidade, ao passo que confrontam a construção de habitus de Pierre Bourdieu. Em tal movimento os vínculos tornam-se latentes, visto que ambos são de áreas e centros de pesquisas diferentes – Luc Boltanski é sociólogo do EHESS (École des Hautes Études em Sciences Sociales) e Laurent Thévenot é economista do CREA (Centre de Recherche en Épistémologie Appliquée) –, mas ambos são oriundos da escola de Pierre Bourdieu, o criador das teorias que eles buscaram relativizar.
Em De la justification os autores tinham como problemática sociológica inicial saber que condição uma denúncia pública de injustiça deve satisfazer para se tornar aceitável. Ao adentrarem à investigação se depararam com a necessidade de revisar a oposição tradicional entre individual/coletivo, migrando-se para uma análise atenta às atividades performáticas dos atores sociais e percebendo que as pessoas devem se “elevar” para ter acesso ao espaço público, onde o eixo grande/pequeno configura uma economia das grandezas. Logo haveria várias grandezas que se entrecruzam e definem os valores compartilhados, e uma injustiça seria referente à contravenção de uma grandeza específica e seria reconhecida quando os indivíduos que compartilhassem dessa grandeza, desses valores, legitimassem a denúncia (BOLTANSKI; THÉVENOT, 2006, p. 4-6).
Tratava-se então de definir essas grandezas que, como estas delineavam uma comum humanidade e uma identidade coletiva, foram denominadas “Cidades” pelos autores. Construiu-se então seis modelos de Cidades: 1) a Cidade inspirada, na qual a grandeza é adquirida pelo acesso a um estado de graça que coloca o indivíduo diretamente ligado com o superior, tendo como base Santo Agostinho e sua Cidade de Deus; 2) a Cidade doméstica, na qual a grandeza corresponde a um lugar numa ordem hierarquizada, que tem como base Bossuet e sua Politique tireé des propres paroles de l’Écriture sainte; 3) a Cidade do renome ou da opinião, na qual a grandeza do indivíduo depende inteiramente da opinião das outras, que parte do Leviatã de Hobbes como uma tópica; 4) a Cidade cívica, na qual a vontade geral entre os cidadãos media a vontade geral, sendo ilustrada por Rosseau e o Contrato Social; 5) a Cidade mercantil, onde a grandeza depende da aquisição de riquezas e os vínculos são criados no processo de circulação dos bens, que é traduzida pela obra Riqueza das nações de Adam Smith; 6) Cidade industrial, onde os vínculos se dão pelas capacidades profissionais, que são determinadas pela grandeza da eficácia na produção, revelada pela obra de Saint-Simon. François Dosse não pontua, mas talvez o retorno de Boltanski e Thévenot à obra de Saint-Simon possa significar uma maneira de cruzar a fronteira criada pela teoria monocausal do marxismo, onde se atrela materialismo à obra de Marx, e retroagir às bases teóricas de Marx em Saint-Simon2 possa ser uma maneira de cruzar essa barreira monocausal. Estas novas noções de cidades são para Dosse essenciais, visto que permitem ao pesquisador compreender o vínculo do objeto estudado com o todo, assim como o vínculo do próprio pesquisador com o todo que o cerca.
Aviso aos desavisados! François Dosse toma várias problemáticas complexas como de total compreensão dos leitores, o que faz d’O Império do sentido uma obra imprópria para espíritos fracos, ou melhor, uma obra que perturba os recém iniciados nas linhagens teóricas das Ciências Humanas! Trata-se de uma obra que visa compreender o processo de “humanização das Ciências Humanas” e, levando em conta que se trata de uma obra encomendada, o autor adentra a esta tarefa desde a primeira página. Assim sendo Dosse opta por não delinear alguns processos que necessitariam um fôlego maior caso objetivasse uma obra com uma maior abrangência de público. Dentre estes processos, que não receberam tanta atenção do escritor e sendo assim requerem um maior cuidado do leitor, pode-se citar como exemplos o próprio conceito de semelhanças de família de Wittgenstein, o cenário das ciências humanas durante a sua especialização e desvinculação da filosofia, assim como temas nos quais o historiador tem grande domínio como a influência do pensamento estruturalista que pairou sobre as Ciências Humanas e a importância do pensamento de Paul Ricœur para estas, visto que em vários momentos o autor dá um lugar privilegiado ao filósofo3. Logo, caso o leitor não seja versado no processo histórico de desenvolvimento das Ciências e em outras várias instâncias, a obra solicitará calma, deverá ser digerida aos poucos, muitas páginas e parágrafos deverão ser lidos mais de uma vez.
Ao fim e ao cabo, têm-se uma obra de fôlego e qualidade sobre um questionamento antigo: o que mantém uma sociedade junta? O novo modo de fazer pesquisa em grupo revela para nós a possibilidade de se interrogar sobre a sociabilidade e identidades, tanto as já criadas quanto as capazes de serem criadas. Se as ciências durante o seu processo de institucionalização e cisão do cordão umbilical que ligava as disciplinas à Filosofia visaram excluir a presença de si e prezaram por uma objetividade, é no processo de humanização que as mesmas retornam aos seus objetivos principais: explicar a natureza do social e construir um mundo melhor numa perspectiva progressista. Ao tanger uma discussão de como as pessoas se vinculam, tateia-se outras questões, “como as pesquisas se vinculam?” “Como as pessoas se vinculam dentro de suas pesquisas?” “Esses vínculos são formais ou informais?”. François Dosse apresenta uma discussão que nos leva a refletir sobre qual a linha que divide os vínculos formais e o informais, os vínculos entre instituição e indivíduo. Não se trata apenas de pensar o vínculo entre o pesquisador e a cidade, trata-se de um olhar humano, de um cientista humano, sob as pretensas Ciências Humanas.
Referências
BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. On Justification: economies of Worth. Tradução de Catherine Porter. New Jersey: Princeton University Press, 2006.
QUIJANO, Anibal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTRO-GÓMES, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (Org.). El giro decolonial. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007.
Notas
1 François Dosse é professor de História Contemporânea da Universidade de Paris XII Val-de-Marne e professor de História no Instituto de Estudos Políticos de Paris. Tem uma produção prolífica em Epistemologia das Ciências Humanas, da qual pode-se citar os dois tomos de História do Estruturalismo (1991; 1992), e também em História Intelectual com seus trabalhos biográficos, sendo responsável pela biografia de Paul Ricœur (1997) e de Michel de Certeau (2002), destaca-se também a obra onde o autor discute o método biográfico Le Pari biographique (2005).
2 Para mais acerca da relação de Marx e o marxismo com a obra de Saint-Simon pode-se conferir: QUIJANO, 2007.
3 Não seria para menos, a obra além de uma homenagem a Paul Ricœur foi feita ao mesmo tempo em que François Dosse se dedicava à biografia do mesmo. Poderíamos até nos perguntar os motivos de ambas as obras, feitas simultaneamente, tatearem a noção de sentido, que está expressa logo nos títulos L’Empire du sens: L’humanisation des sciences humaines (O Império do sentido: a humanização das Ciências humanas) e Paul Ricœur: Les sens d’une vie (Paul Ricœur: Os sentidos de uma vida), o sentido que as Ciências Humanas buscaram em sua humanização está em Ricœur?
Referências
BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. On Justification: economies of Worth. Tradução de Catherine Porter. New Jersey: Princeton University Press, 2006.
QUIJANO, Anibal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTRO-GÓMES, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (Org.). El giro decolonial. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007.
Resenhista
Luiz Henrique Silva Moreira – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); docente do Colégio Universitário Realização (UNC). E-mail: luiz.moreira@ufpr.br
Referências desta Resenha
DOSSE, François. O Império do sentido: a humanização das Ciências Humanas. Bauru, SP: EDUSC, 2003. Resenha de: MOREIRA, Luiz Henrique Silva. Revista de História da UEG. Morrinhos, v.10, n.2, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]