O império das repúblicas: projetos políticos republicanos no Espírito Santo/ 1870-1908 | Karulliny Silverol Siqueira
Karulliny Silverol Siqueira | Imagem: Históriacapixaba.com
Os estudos acerca das identidades políticas no Império, do ingresso do republicanismo na cultura política nacional e do estabelecimento da República em solo brasileiro ganharam diversas nuances na historiografia, graças à crescente catalogação de documentos inéditos e a disponibilização digital de fontes históricas, assim como novas abordagens teóricas e metodológicas. Os avanços permitiram ultrapassar a percepção do Brasil desde o centro nacional, a dizer, no Rio de Janeiro, as novas percepções regionais trouxeram pluralidade à compreensão do Brasil no século XIX.
A obra O Império das Repúblicas, da historiadora Karulliny Siqueira, participa do movimento de renovação, especialmente, porque apresenta à historiografia nova percepção regional, identificando na província do Espírito Santo aspectos da transformação da cultura política imperial para o regime republicano. Buscou-se compreender os valores republicanos em circulação no país, abrindo a pesquisa à identificação das tendências políticas em diferentes localidades da província. O resultado do empreendimento apresenta um quadro do republicanismo mais plural e diversificado, se comparado às clássicas abordagens da historiografia. Karulliny Siqueira, utilizando-se dos parâmetros adotados por José Murilo de Carvalho em sua clássica obra A Construção da Ordem (1988), mapeia as características da elite provincial, através da prosopografia, para identificar a intervenção particular sobre as ideias de república em trânsito no país.
A abordagem teórica da autora volta-se principalmente à inquirição do vocabulário político nas variadas acepções difundidas no território brasileiro, recusando-se a se restringir apenas às vertentes encontradas no Rio de Janeiro desde a década de 1870 e até após a instauração da República, em 1889. Karulliny Siqueira discute os significados do republicanismo em solo capixaba e relaciona-os à cultura política vivenciada no Espírito Santo desde o início do século. Comum aos estudiosos do vocabulário político, a obra baseiase principalmente em jornais da época e aplica a metodologia das linguagens referenciada por John Pocock (2003) e Quentin Skinner (2000). O contextualismo linguístico transforma-se, de certo modo, no contexto metodológico de interpretação das fontes, buscando demonstrar a articulação existente entre o texto estudado e o contexto em que está disposto, mapeando a intencionalidade dos atores.
Por outro lado, Joseph Love, professor emérito da Universidade de Illinois Urbana-Champaign, instituição de ensino superior onde a autora realizou estágio doutoral, fornece a chave teórica que a inspirou em observar o republicanismo capixaba sem a obrigação de reproduzir as conclusões válidas apenas para o Rio de Janeiro e outras regiões. Joseph Love (1975; 1982), ainda na década de 1970, interessou-se em observar as elites regionais, priorizando o Rio Grande do Sul. Outros historiadores seguiram o mesmo caminho, dedicando-se à pesquisa das elites de São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco. Karulliny Siqueira teve a perspicácia de realizar o trabalho com direção semelhante em assunto ainda inédito em relação à província do Espírito Santo.
Se autores como Pires de Amorim (1985) e Maria Stela de Novaes (1994) verificaram no Espírito Santo transição pacífica de Império para a República, Siqueira partiu de diferente perspectiva. A historiadora já tivera contato com fontes parlamentares na iniciação científica e verificou nos discursos dos deputados ideais de república nem tão convergentes como descrito pela historiografia local. A lacuna levou a investigadora à problematização dos diferentes momentos do republicanismo capixaba, desde a década de 1870, com a formação do Partido Republicano no Rio de Janeiro, até 1908, ano em que se consolidam ideais republicanas na província.
Na pesquisa das fontes, como suspeitava Karulliny Siqueira, o republicanismo ganhou coloração diferenciada conforme a demarcação territorial da própria província do Espírito Santo. A investigadora notou diferentes concepções de república na região liderada pela capital (Vitória), e no sul, capitaneado pelo município cafeeiro de Cachoeiro de Itapemirim.
No primeiro capítulo da obra, intitulado Linguagens da ordem, Karulliny Siqueira ressalta os aspectos da cultura política local durante o século XIX. Para a análise, identifica dois locus do republicanismo desenvolvido no Espírito Santo: a imprensa e os partidos políticos. Se em âmbito nacional verificamos o estabelecimento da imprensa periódica com a chegada da família real em 1808, e a intensificação da produção jornalística na época da Independência, na província do Espírito Santo, a imprensa produzida por tipografias locais apenas se desenvolveu na segunda metade do século XIX.
Apenas na década de 1840, o primeiro periódico, O Correio da Victória, foi publicado e, mesmo assim, não manifestava posicionamento político. A folha encontrava-se sob o controle do Coronel Francisco Monjardim, político de velha estirpe no Espírito Santo e responsável pela ordem nos principais momentos de efervescência no Brasil: a Independência e a Regência. Karulliny Siqueira demonstra que, em 1860, após a consolidação política do Segundo Reinado e o apaziguamento dos principais conflitos desde a abdicação de Pedro I, verificou-se o desenvolvimento da imprensa de opinião na província. Aliás, este foi o tema de outra obra da autora, Imprensa e Partidos Políticos na Província do Espírito Santo 1860-1880 (2013).
Karulliny Siqueira conclui pela singularidade do surgimento dos partidos políticos no Espírito Santo. Se no Rio de Janeiro, na década de 1840, verificavam-se distinções entre os partidos Liberal e Conservador, no Espírito Santo, tais identidades formaram-se na década de 1860. Para a autora, a relação entre o estabelecimento da imprensa e dos partidos políticos no Espírito Santo ocorre não apenas ao mesmo tempo, mas em total simbiose. As singularidades encontradas pela pesquisadora não caracterizam atraso diante o cenário político nacional, mas conferem peculiaridade aos aspectos da cultura política da região. Nem proporcionaram apartamento ou dissonância com o centro do Império, mas revelam o desenvolvimento de certo projeto político da elite local para a manutenção da ordem nacional. –
Deste modo, a elite política do Espírito Santo, treinada para evitar qualquer tipo de ameaça à tranquilidade da província e, consequentemente, da nação, evitou por bom tempo a publicação de impressos em tipografias locais. A hipótese de impedir a impressão de jornais no Espírito Santo e, consequentemente, reprimir efervescências políticas que deflagraram no país desde a Independência e os facciosismos, repete-se nas duas obras. E a ação levou a grave resistência à imprensa de opinião, mesmo quando instalada a primeira tipografia nos anos de 1840. Para Karulliny Siqueira, apenas em 1860, jornais de oposição apareceram na província do Espírito Santo.
A autora relaciona a mudança no campo da imprensa à ruptura intra-elite de fins da década de 1860, influenciada por ideias radicais que circulavam no Império, assim como o surgimento de personagens políticos do sul cafeeiro que questionaram o protagonismo da elite da capital, Vitória. A disputa por poder na província criou um vocabulário crítico à monarquia no Espírito Santo. No segundo capítulo, denominado A ordem ameaçada, Karulliny Siqueira apresenta o novo vocabulário dos impressos políticos da década de 1870. Se o conceito de ordem permaneceu como a principal vertente até a década de 1860, daquele momento em diante os termos futuro, progresso, democracia, razão e ciência emergiram como novos princípios. A investigadora observa a consonância do vocabulário crítico à monarquia com a linguagem empregada pelos periódicos do Rio de Janeiro, mesmo sem o Partido Republicano, fundado em 1870 no centro do Império.
A autora, porém, identifica o surgimento de uma imprensa democrática, na década de 1870, entre os capixabas, caracterizada por grande produção de jornais que não se intitulavam nem liberais, nem conservadores, com espaço para críticas ao Império e a emergência de novas ideias. De outro modo, a virada deu-se com o aparecimento de nova elite política na província, embora formada por indivíduos nativos da província, que adquiriram, em sua maioria, formação jurídica na Escola de Recife e de São Paulo, estabelecimentos responsáveis pela circulação e divulgação de ideias advindas da Europa, e um dos espaços de contestação da ordem do Império.
A propaganda republicana, todavia, ainda não ganhara espaço na província em razão da mobilização da elite monarquista contra o movimento republicano. Ainda assim, o republicanismo, mesmo como oposição, emergiria entre estudantes do Ateneu, sociedades literárias em localidades cafeeiras. No sul da província, capitaneada por Cachoeiro de Itapemirim, a linguagem na imprensa se tornava mais incisiva em relação às críticas à monarquia e surgiam apoios ao Partido Republicano. Ainda sem organização republicana na localidade, o republicanismo, segundo a investigadora, rompe o silêncio no Espírito Santo, estremecendo as bases da elite monarquista local.
Karulliny Siqueira explora no terceiro capítulo o colapso da monarquia no cenário espírito-santense. A investigadora atribui o movimento à ampliação da esfera literária através do Atheneu provincial, primeira instituição a discutir publicamente o conceito de “república” na localidade. A cisão definitiva do Partido Liberal de Vitória com o grupo político do sul propiciou nova linguagem, que criticava abertamente o regime monárquico e o classificava como empecilho ao país. Associava a monarquia ao atraso e ao futuro sem esperanças. Finalmente, nos anos de 1880, fundou-se o primeiro Clube Republicano, em que se debatiam questões como liberdade, soberania popular e princípios federativos.
Em seu quarto capítulo, denominado Os sentidos da República, Karulliny Siqueira apresenta os diferentes projetos republicanos em circulação na província do Espírito Santo nos últimos anos do Império. A autora levanta a tese de existirem na província duas percepções distintas de republicanismo: uma de Vitória e outra no sul. Como evidência, a pesquisadora apresenta o surgimento de todos os jornais republicanos, até a proclamação em 1889, no sul da província, onde o republicanismo significou a ampliação da opinião pública, o fim do domínio da capital e a oposição à centralização do poder em Vitória. A República surgia, entre os capixabas, com diferentes sentidos. Para o grupo monarquista, representado por Vitória, a república aparecia como ilusão, como ameaça à manutenção do poder e o federalismo, como ousadia administrativa.
A divisão transformou-se, porém, com o advento da República no país. Duas novas identidades formaram a partir dos antigos grupos políticos da monarquia. De um lado, nasceu a União Republicana, composta principalmente por republicanos históricos, e, de outro, o Partido Construtor, aglutinando os monarquistas. Karulliny Siqueira demonstra que a República no Espírito Santo se organizou sem o protagonismo dos republicanos do sul, com rápida rearticulação dos antigos monarquistas.
No capítulo em que finaliza sua obra, Karulliny Siqueira demonstra a consolidação da Primeira República no Espírito Santo. A pesquisadora apresenta como os diferentes projetos republicanos deram lugar a importantes conflitos. E a imprensa afigurou-se como condutora do debate. Ao longo dos anos, a retórica do Partido Construtor terminou por conta de uma crise econômica. A autora apresenta a modificação do contexto partidário no estado, e um destes sintomas da mudança foi a formação do Partido Republicano Espírito-Santense, em 1908. A agremiação inseriu a localidade em nova fase republicana, pautada na conciliação e na modernização, cenário que possibilitou, pela primeira vez, o acordo entre as elites do sul e da capital, consolidando a República em solo capixaba.
Portanto, durante a construção de sua obra, Karulliny Siqueira apresenta à historiografia um aspecto regional da cultura política brasileira ao longo do século XIX até o ano de 1908. A análise possibilita a compreensão da pluralidade de percepções políticas existentes por todo o território do Brasil. A historiadora demonstrou a transição de uma linguagem monarquista para republicana em regiões distintas no Espírito Santo, com personagens políticos do sul questionando o protagonismo das figuras do centro provincial.
Todavia, após a Proclamação da República, a inversão não ocorreria, a identidade política vencedora nos primeiros anos teria como maioria os antigos monarquistas e os republicanos do sul continuariam marginalizados do poder político. A conciliação das elites só ocorreria em 1908, com a fundação do Partido Republicano Espírito-Santense.
Referências
AMORIM, Joaquim Pires de. A Trajetória dos Partidos Políticos capixabas até 1930. Revista do Instituto Jones dos Santos Neves, n. 1, p. 28-29, 1985.
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política. Teatro das Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.
LOVE, Joseph. O regionalismo gaúcho e as origens da revolução de 1930. São Paulo: Perspectiva, 1975.
LOVE, Joseph. Locomotiva: São Paulo na Federação Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1982.
NOVAES, Maria Stella. História do Espírito Santo. Vitoria: FEES, 1984.
POCOCK, John G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003.
SIQUEIRA, Karulliny S. Imprensa e Partidos Políticos na Província do Espírito Santo (1860-1880). Vitória: IHGES, 2013.
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. 2. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Resenhista
Riely Neves Coutinho – Mestranda em História pela UFES Vitória/Espírito Santo. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3436-0819 E-mail: drielynevescoutinho@gmail.com
Referências desta Resenha
SIQUEIRA, Karulliny Silverol. O império das repúblicas: projetos políticos republicanos no Espírito Santo, 1870-1908. Jundiaí: Paco Editorial, 2020. Resenha de: COUTINHO, Riely Neves. OS SENTIDOS DA REPÚBLICA NO ESPÍRITO SANTO: a modificação do vocabulário político monarquista para o republicano. Outros Tempos, v. 19, n. 33, p. 383-388, 2022. Acessar publicação original [DR]