Em O Estado monárquico, Emmanuel Ladurie afirma que o “período dito ‘moderno’ de nosso passado [o francês]” estava dividido em duas partes: a primeira, entre 1460 e 1610, constituindo o “estado monárquico”, e a segunda, entre 1610 e 1774, formando o assim denominado “Antigo Regime”. A partir dessa proposta de periodização, pode-se entender que, grosso modo, a Revolução Francesa serviu para sepultar o Antigo Regime (ao menos, na França); contudo, ela não obteve o mesmo sucesso em relação ao interesse de estudiosos por essa parte da História Moderna. Aliás, desde meados do século XIX, na esteira de Tocqueville, o Antigo Regime ocupa páginas e páginas de trabalhos históricos (e de obras ficcionais).
No Brasil, o Antigo Regime mais e mais tem recebido atenção, inclusive a ponto de se propor o estudo de um “antigo regime nos trópicos”, evidenciando os aspectos econômicos, políticos, administrativos e culturais do “Brasil-colônia” em suas relações, ou melhor, no seu pertencimento ao complexo império ultramarino português. Sim, parece que podemos dizer que também vivemos sob um Antigo Regime, de modo que conhecer os elementos dessa configuração sociopolítica pode ser essencial para obtermos melhor compreensão de nosso passado.
Destas considerações, e não obstante sua referência à França de Luís XIV (reinado de 1643 a 1715), o livro de Marcos Antônio Lopes – O imaginário da realeza – é de leitura obrigatória para todos aqueles que se interessam pelo estudo de temas situados entre meados do século XVII e as décadas inicias do século XIX. O autor revela que “a temática do poder dos reis sempre ocupou lugar de destaque em meus horizontes de reflexão sobre a política” (p. 14); de fato, a história das ideias políticas do período moderno é um domínio histórico de sua predileção, e transita por ele com grande desenvoltura. Como Marcos Antônio Lopes também registra, suas publicações nesse tema remontam a 1994, quando publicou, pela série Princípios, da Editora Ática, um estudo sobre o simbolismo da monarquia no Antigo Regime; dois anos depois, pela coleção Tudo é História, da Editora Brasiliense, trouxe a público um estudo sobre o absolutismo. Desde então, vem mantendo uma constante produção na área, de que são exemplo os recentes Para ler os clássicos do pensamento político (2002; 2011 [2.ed.]) e Mestres do passado: clássicos da sabedoria política moderna (2009). Também foi o responsável pela organização de Ideias de História: tradição e inovação de Maquiavel a Herder (2007). O presente livro, O imaginário da nobreza: cultura política ao tempo do absolutismo, “reúne vários artigos […] concebidos de forma independente – alguns deles já publicados em revistas especializadas – ”; contudo, esses artigos – como poderá ser percebido – “possuem integração e unidade suficientes para proporcionar uma visão de conjunto sobre a realeza sagrada, em uma notável variedade de suas manifestações no quadro do sistema de crenças do Antigo Regime” (p. 15).
Quer dizer, os capítulos de O imaginário da nobreza enfocam diversos elementos característicos daquilo que denominamos absolutismo, destacando especialmente os aspectos relacionados à visualidade do poder – ou, à falta de um termo melhor, poderíamos dizer, à sua expressão pública. Certamente, essa perspectiva nos oferece uma visão parcelar da sociedade francesa da segunda metade do século XVII. Contudo, no Prefácio do livro, Jacqueline Hermann explicita uma das qualidades do livro de Marcos Antônio Lopes: a necessidade de se oferecer aos “brasileiros” alguns elementos que lhes permitam entender melhor “o papel e a força encarnados pelos monarcas” e, para isso, é preciso contrapor-se “à forma desdenhosa como a família real portuguesa entrou para a memória de nosso passado colonial” (p. ix).
Vencidas estas observações iniciais, estamos prontos para conhecer o “espírito de uma época” marcada pelo absolutismo monárquico, o qual, ainda que comportasse exacerbações no exercício do poder, não poderia ser entendido como um mero exercício de despotismo político. O mando dos reis – sua soberania – estava garantido pelo imaginário construído acerca da pessoa do “príncipe”; não o indivíduo em si mesmo, mas a dignidade nele representada. Por isso, as cerimônias de aclamação, de coroação, de sagração: “O ritual da sagração [dos reis franceses], com a unção da realeza, que se desenvolveu sem muitas modificações desde a Idade Média até os finais do Ancien Régime, era seguido pela cerimônia da cura das escrófulas, […] a fé nos milagres do rei sempre foi conservada pelas multidões” (p. 57).
Nesse entendimento, e partindo da consideração de que o século XVII europeu representou, “por excelência, o século do absolutismo”, Marcos Antônio Lopes discute o imaginário que possibilitou aos soberanos daquela época exercerem o poder de maneira a não se conceber algum tipo de limitação ao poder régio. Nesse sentido, algumas palavras de Roland Mousnier sobre Luís XIV, considerado o modelo melhor acabado do absolutismo, merecem ser citadas: “todos os olhos fixam-se nele; só a ele é que se dirigem todas as vozes; só ele recebe todos os respeitos; só ele é objeto de todas as esperanças; não se procura, não se pretende, não se faz nada que não seja por ele só” (p. 52). São atitudes como estas que mostram o que se considerou ser a posição do Rei-Sol, ao redor dos desejos de quem toda a vida francesa se organizava (ao menos a vida da corte).
Todavia, não se deve pensar que as ações do rei eram movidas apenas por caprichos. É certo que o seu poder era exercido em um ambiente de favores e dependências, no qual gozar da proximidade com o rei significava a garantia de dispor de influência para encaminhar este ou aquele negócio – mesmo os particulares – às diversas instâncias de governo. Para além de ser aquele em torno do qual os diversos assuntos ‘orbitavam’, o soberano também se destacava dos cortesãos – sua clientela – pelo fato de haver recebido uma formação específica que lhe preparava para o exercício “do métier Royal”: sua atuação estava delimitada pela responsabilidade de dar “continuidade ao trabalho de seus predecessores e pela preparação da obra dos que estavam por vir” (p. 113). Nesse aspecto em particular, poderíamos recuperar as palavras de Jacqueline Hermann acerca da imagem que construímos da família real portuguesa, apoiada, sobretudo, pela maneira como D. João VI foi retratado: um príncipe, depois rei, marcado pela ideia de hesitação e fraqueza, obrigado a atravessar o Atlântico para fugir da ameaça napoleônica. Talvez fosse hora de realizarmos uma reavaliação dessa imagem, ao que parece demasiadamente marcada pelos sentimentos nacionais de independência e republicanos.
Marcos Antônio Lopes, enfim, constrói um variado painel do ambiente sociopolítico do Antigo Regime francês, sem descuidar de analisar os fundamentos teóricos utilizados para avalizar o exercício do poder por estes indivíduos assim caracterizados por Michel de Montaigne: “E um rei é a tal ponto rei que nada mais pode ser” (p. 97).
No que se refere ao trabalho do historiador, o autor de O imaginário da realeza, ao lado de uma bem cuidada revisão bibliográfica, também se vale de obras de época, como as Memórias do Rei-Sol e do duque de Saint-Simon, os Ensaios de Montaigne e alguns dos textos de Montesquieu, de Hobbes, de Bossuet e de Maquiavel. Diversos textos literários – de Stendal, Shakespeare, Cervantes, Voltaire, Molière, entre outros – ajudam o autor em sua descrição e compreensão da sociedade da época. Esse recurso a uma ampla tipologia de fontes, junto às quais busca identificar um determinado vocabulário de época, contextualizando os elementos que procura identificar como organizadores dessa sociedade de Antigo Regime, aproxima Marcos Antônio Lopes de tendências historiográficas bastante atuais e pouco exercitadas entre nós. Neste ponto, não seria demasiado recomendar a leitura de seu Para ler os clássicos do pensamento político, que apresenta interessantes discussões metodológicas concernentes à história das ideias políticas.
A cuidadosa análise das fontes também recebe o auxílio de uma bibliografia extensa e que alterna obras de autores já clássicos, como Roland Mousnier, Jacob Burckhardt, Marc Bloch, Lucien Febvre, Norbert Elias, Ernst Kantorowicz etc, com representantes de uma nova geração de historiadores e de filósofos políticos. Trata-se, enfim, de um livro que cumpre duas finalidades: informa sobre a “cultura política” do Antigo Regime e apresenta as possibilidades de novas abordagens da história das ideias políticas.
Para concluir, ressalte-se a qualidade gráfica do livro: uma boa macha de impressão, sobre um papel de qualidade; boa escolha tipográfica, com corpo que facilita a leitura. Só podemos desejar que a Editora da UEL prossiga esse trabalho e qualidade editorial.
Resenhista
Antonio Cesar de Almeida Santos – Professor do Departamento e do Programa de Pós-graduação em História da UFPR, Curitiba/PR, Brasil. E-mail: acasantos1954@gmail.com
Referências desta Resenha
LOPES, Marcos Antônio. O imaginário da realeza: cultura política ao tempo do absolutismo. Londrina: Eduel, 2012. Resenha de: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Diálogos. Maringá, v.16, n.3, p. 1301-1305, set./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]
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