O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano | Sandra Jathay Pesavento

Gravuras, desenhos e fotografias mostrando os vários lugares e espaços originais das cidades de Paris, Rio de Janeiro e Porto Alegre, em meados do século XIX e inícios do XX, compõem o livro Imaginário da Cidade. Visões literárias do urbano, de Sandra Jatahy Pesavento2. Algumas dessas imagens nos remetem à Paris de 1739 a 1876, aos sobrados sombrios das ruas Marmousets, Pirouette e de la Colombe – hoje desaparecidas em função das reformas urbanas. Outras revelam paisagens de Porto Alegre (no início do século XX) e do Rio de Janeiro (na segunda metade do século XIX). O mercado público, as praças e as ruas da capital gaúcha são flagrados em sua modesta suntuosidade por fotógrafos desconhecidos. A modernidade da Avenida Central da cidade carioca, com seus suntuosos palacetes, se justapõe aos registros de moradias populares (como os cortiços) e da destruição de morros da cidade – cenas captadas pelas lentes das câmeras de Victor Frond, Marc Ferrez e Augusto Malta.

O livro recusa a simples descrição das imagens da cidade; ele traça um quadro histórico fundamental para se entender o imaginário urbano inserido no processo de modernização citadina experimentado naqueles anos. As imagens urbanas, reconhecidas nas singularidades arquitetônicas e no traçado das ruas de cada um dos espaços urbanos referidos, registrados nas fotografias, nos cartazes, nos selos, nas pinturas, nos desenhos ou nas caricaturas, têm, segundo Sandra Pesavento, o potencial de remeter (…), tal como a literatura, a um outro tempo. Dessa maneira, a autora argumenta que o espaço citadino, na sua materialidade imagética, delineia-se como um dos suportes da memória social da cidade (2002, p. 16).

A despeito das imagens reunidas no livro, a autora se ocupa das representações literárias como meio privilegiado de se investigar o passado e de nele perceber o imaginário da modernidade urbana. Por intermédio desse corpus documental ela busca desvendar a construção de espaços e temporalidades distintas que percorrem Porto Alegre, o Rio de Janeiro e Paris, transitando entre as duas primeiras décadas do século XX e os anos finais do século XVIII. Nessa linha de abordagem, investiga como o olhar literário edifica perfis e padrões de modernidade, inspirado em elementos icônicos reconhecidos como tais.

Ao abordar a historicidade das mensagens literárias e as singularidades citadinas, a historiadora nos remete à retomada das semânticas e dos significados imbricados à construção das noções da urbs moderna. Para tanto, toma o corpus documental substanciado em documentos de naturezas distintas, como textos socialmente produzidos e reconhecidos como portadores de representações que comentam o “real” e recriam a cidade.

Ao admitir que, por intermédio de caminhos diferenciados, a história, como a literatura, constrói “verdades” e se propõe a dar visibilidade ao “real”, acaba referindo-se à riqueza do cruzamento de fontes de informação e conclui: o que não é visível num plano, verifica-se no outro, de maneira que cada domínio de saber fornece uma chave de entrada ao objeto (PESAVENTO, 2002, p. 267).

Esse empreendimento é realizado com maestria pela autora, que de longa data vem pesquisando a história cultural do urbano, mediante enfoques atentos às representações da cidade entendidas como construções simbólicas e espaços de sociabilidade, expressos através de suportes imagéticos e de narrativas históricas e literárias. Sua experiência na referida linha de pesquisa pode ser observada também em outras títulos de sua autoria, como é o caso de Uma outra cidade, O mundo dos excluídos no final do século XIX, Os pobres da cidade, entre outras reflexões.

Não obstante, as pesquisas de Pesavento se inserem no âmbito das preocupações que se aproximam dos pressupostos teóricos e metodológicos da chamada Nova História Cultural. Nesse sentido, vale salientar que, talvez, a maior ousadia do volume se remeta ao fato de superar as armadilhas das avaliações simplórias. Pautando-se pela tentativa de captar as representações como forma de abordagem do passado, busca mostrar, por intermédio do olhar literário, como as imagens e idéias se inter-relacionam, produzindo re-apropriações que se propagam em distintas direções, conjunturas e planos temporais.

Ao ocupar-se do discurso literário, procura descortinar as mensagens visuais e mentais evocadas no texto, as quais, em última instância, constituem representações que qualificam o social e identificam as experiências vividas pelos habitantes da cidade. Reconhecendo na literatura uma fonte da pesquisa histórica, a autora busca na trama literária as características essenciais que estariam na raiz dos modos de pensar, sentir, agir e, sobretudo, de repensar o mundo. Lançando mão das assertivas de Roger Chartier e Odile Marcel, pauta-se pela necessidade de detectar as representações passadas na sua irredutível especificidade, identificando o que define como sintomas de uma dada época.

Outrossim, perfilhando o discurso literário como portador de um poder metafórico capaz de conferir sentidos e funções aos lugares, acrescenta que a transfiguração do real não apenas transmite as sensibilidades passadas do “viver em cidades” como também nos revela os sonhos de uma comunidade, que projeta no espaço vivido as suas utopias (2002, p. 13).

Ao adotar uma postura capacitada a olhar a literatura como uma forma de pensar a história, Pesavento procede à retomada do paradigma da modernidade urbana, edificado em Paris, entre os séculos XVIII e XIX. Ao fazê-lo, tende não apenas a captar o sentido de metrópole e de uma cidade-monumental, mas também a observar como esse imaginário iria se disseminar por todo o mundo urbano através de produções literárias. Durante a trajetória, desvenda os meandros das narrativas que enredaram os seus personagens em Paris e tomaram para si a tarefa de semear idéias-chave sobre o processo de modernização da cidade. E mais, ao recorrer aos textos de autores franceses contemporâneos à Revolução Francesa e aos dos literatos do fim desse século, Pesavento procura detectar como esse olhar assumiu uma postura pedagógica, selecionou elementos e signos que acabaram instituindo poderes simbólicos a Paris e a elegeram mito.

Os limites entre o imaginário e o real são tomados pela autora como desafios a serem enfrentados pelo pesquisador, mas que se engendram a partir das construções da memória coletiva e das permanências urbanas – ambas imbricadas à atribuição de significados rituais e míticos às práticas sociais. Dessa maneira explicitar-se-iam as demarcações do espaço público e privado, as referências fundamentadas nos ícones do poder e nos mitos de origem, esboçados através de monumentos específicos.

Nesse horizonte, reafirma ainda, tomando as considerações de Pierre Sansot, que a própria memória coletiva é edificada mediante o entendimento e a invenção que os homens do presente são capazes de fazer para recriar o espaço urbano. Portanto, a distinção entre as imagens “reais” e “criadas” estaria, segundo seu entendimento, circunscrita aos códigos da lembrança e às atribuições de sentido de quem viu, experimentou as sensações e recriou as vivências da urbs. No âmbito desse circuito, as desigualdades sociais, as gestões políticas e as intervenções dos saberes instituídos no espaço citadino adquirem visibilidade.

Paris, considerada a capital do século XIX, paradoxalmente, experimenta nesse período as mutações decorrentes do desenvolvimento do capitalismo francês. A cidade acaba se tornando palco de transformações políticas (da monarquia à república) e da diversificação da produção; além disso, sua população decuplica, tornando imperiosa uma redefinição do espaço citadino. No contexto de todas essas alterações, Haussmann surge como o prefeito que revolucionou a capital francesa. Valores e formas tradicionais passam a conviver com o novo, transformando a cidade em espaço múltiplo, capaz de agregar diferentes formas de sociabilidade, de desejos e aspirações.

Assim, no segundo de uma série de cinco capítulos, a autora aborda como Paris se constitui como uma cidade-insígnia da noção de metrópole e evoca todo o entendimento que se tem de progresso e do moderno. Tomada como parâmetro de evolução, termina chamando a atenção de distintos observadores: de literatos e poetas a fotógrafos e pintores. Como se não bastasse, a cidade termina suscitando a intervenção de diversos saberes: arquitetos, urbanistas e médicos sanitaristas visam lhe normatizar os espaços, esquadrinhar o seu traçado e mapear a sua população.

Além-mar, as utopias da urbs ganhariam ressonância. As práxis citadinas do Rio de Janeiro e de Porto Alegre, em diferentes graus, assimilariam conceitos estéticos e padrões arquitetônicos inspirados no protótipo da metrópole parisiense – referência de civilidade e progresso. A remodelagem da cidade do Rio de Janeiro produziria espaços que a alçaram à condição de cartões de apresentação de um país que se pretendia civilizado. Mas, as imagens do viver e da paisagem urbana carioca iriam aparecer menos positivas nos escritos de Lima Barreto do que nos de João do Rio.

As visões acerca da capital gaúcha pareciam oscilar entre as formas “modernas” do viver urbano, agitado pelo crescente volume de sua população e por intrépidas boemias, e no seu oposto mais evidente, o repouso e a singeleza da vida campestre ou da aldeia. Para lembrar as palavras da autora, nesse campo, se manifestaram os dilemas identitários de uma cidade com a cabeça em Paris, os olhos no Rio de Janeiro e os pés à beira do Guaíba. A beleza da paisagem e o consolo do passado surgiriam reinventando temporalidades e espaços, cujo horizonte, por vezes, parecia indefinido frente às aspirações da modernização urbana. Como salienta a historiadora, o pensamento citadino parecia dilacerar-se entre a confirmação da existência da metrópole e a preservação das tradições e dos hábitos da aldeia: Como ser tão cidade como o Rio e Buenos Aires, desejando secretamente que Paris fosse aqui, e ao mesmo tempo, compor com a tradição e especificidade local? (2002, p.393).

Para finalizar, cabe indagar: será possível pensar os processos de modernização das megacidades no contexto da globalização, sem atribuir-lhes o pesar da desterritorialização? Talvez uma leitura atenta dessa obra possa responder a essa e a tantas outras inquietações que permeiam o pensar sobre o urbano.

Nota

2. Sandra Pesavento é professora e historiadora formada pela UFRGS, mestre em História pela PUCRS e doutora em História pela USP. Pós-doutora pela Sourbonne e EHESS, na França. É professora do departamento de História da UFRGS.


Resenhista

Sandra de Cássia Araújo Pelegrini – Professora Adjunta do Departamento de História da UEM. Doutora em História Social pela FFLCH-USP. E-mail: spelegrini@wnet.com.br


Referências desta Resenha

PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. Resenha de: PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. Diálogos. Maringá, v.8, n.1, 211-215, 2004. Acessar publicação original [DR]

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