Grande Norte: Interações – Relações – Conflitos na Europa Setentrional Medieval / Brathair / 2015
É inegável o enorme crescimento, tanto quantitativo quanto qualitativo, das pesquisas brasileiras focadas no Medievo nas últimas duas décadas. É mesmo empolgante testemunhar e participar ativamente deste movimento: graduandos, pós-graduandos e titulados de, praticamente, todas as unidades da federação desenvolvem pesquisas sobre a Idade Média, situação que levou à constituição e multiplicação de Grupos, Núcleos e Laboratórios de pesquisa na área o que, por um lado, é muito salutar ao criar estruturas de pesquisa e orientação, facilitando, em teoria, a difusão dos estudos.
Por outro lado, em termos negativos, houve a constituição de um fenômeno de “isolamento” das pesquisas, com a maior parte dos grupos privilegiando explícita ou implicitamente recortes cada vez menores em suas circunscrições espaço-temporais, tratando-os como ilhas distantes de outros contextos vividos pelas mesmas populações em temporalidades diferentes e pouco considerando as relações matizadas por todos os tipos de interações com outras culturas (próximas ou distantes).
Essas abordagens exclusivistas também trazem em si a ameaça da formação de nichos particulares (verdadeiras “reservas de mercado”), em evidente contramão ao movimento de expansão das pesquisas, além dos cerceamentos (muitas vezes extremos e afastados da racionalidade) na escolha do objeto a ser estudado por neófitos na área. Todos sabem que o conhecimento científico só se constrói com projetos estruturados, circulação e debates construtivos, ou seja, em última instância, através da colaboração.
Assim, propomos uma abordagem mais ampla na confecção de nosso dossiê, que denominamos como perspectiva “hiperbórea”, inspirada na Hiperbórea, o além-norte dos gregos. O uso é proposital, uma vez que há uma tradição regional neste sentido: muitos eruditos tentaram encontrar as origens da humanidade e / ou da cultura greco-romana no Norte Europeu, ou ao menos tentaram equiparar o legado nórdico aos vizinhos meridionais e incluir sua importância na História do mundo. Tal tendência, denominada “Escola Hiperbórica”, foi fundamental, por exemplo, para o desenvolvimento do Goticismo na Suécia (Bandle et alii, 2002: 358).
Os problemas destas leituras, porém, já foram amplamente denunciados; Assim, aproveitaremos o termo, mas, diferente dos nossos predecessores, propomos um olhar relacional, ou seja, pautado no estudo de interações, relações e conflitos na Europa Setentrional sem buscar origens, aclamar superioridade de raças, culturas, nações ou nacionalismos. Para nós, este complexo espacial abrigou inúmeras culturas e hibridismos culturais, problemas mais relevantes que discussões particularistas e ultrapassadas.
No bojo da questão, Kilbride condenou termos como “sincretismo” e “hibridismo” porque eles pressupõem um compromisso entre dois estados básicos (neste caso, cristianismo e paganismo) e negam a fluidez entre os dois (2000: 8). Porém, Aleksander Pluskowski e Philippa Patrick revalidaram o termo “hibridismo” sobre outras bases, i.e., para se referir a qualquer situação intermediária entre os dois paradigmas contrastantes, sem ignorar, contudo, as variedades de paradigmas “pagãos” e “cristãos” identificáveis a partir da cultura material (2003: 30-31).
Seria possível aplicar o mesmo instrumental para a Europa Setentrional: apenas nas ilhas Britânicas teríamos a Hiberno-latina, a Hiberno-escandinava, a Anglo-latina, a Anglo-escandinava, a Anglo-normanda, a Anglo-manx, dentre outras igualmente importantes, revelando uma realidade tão fértil quanto as interações que transformaram o Mediterrâneo em um cadinho civilizacional por excelência. Trata-se de uma proposta inclusiva que não refuta as abordagens exclusivistas, mas que conclama à sua integração frente às perspectivas mais amplas, que prometem trazer frutos que poderão impulsionar o futuro de muitos ramos da Medievística brasileira.
Portanto, é com imenso prazer que trazemos a lume o novo número da já tradicional revista Brathair, incluindo algumas novidades em sua programação visual. Sem mais delongas, este número apresenta em seu dossiê os seguintes artigos: de Michael J. Kelly (doutor pela Universidade de Leeds) nos cedeu a publicação em Língua Portuguesa de sua conferência (ministrada da USP dia 05 / 10 / 2015) “Quem lê Pierre Pithou?: O impacto da Renascença francesa na história Visigótica e nas modernas representações do passado medieval inicial”. Lukas Gabriel Grzybowski (doutor pela Universidade de Hamburgo) com “Virtudes e política: Bernardo de Clairvaux e Otto de Freising sobre temperantia e moderatio”, André Szczawlinska Muceniecks (Doutor pela Universidade de São Paulo) com “Ritos de passagem na Ọrvar-Odds Saga – o caso do Homem-Casca” e Isabela Dias de Albuquerque (Doutoranda pelo PPGHC – UFRJ) com “O Massacre do Dia de São Brício (1002) e o reinado de Æthelred II (978-1016): uma introdução a novas possibilidades de análise sobre as relações identitárias na Inglaterra anglo-escandinava”.
A seção de artigos livres conta com os textos de Juan Antonio López Férez (Los celtas en las Vidas de Plutarco, Benito Márquez Castro (Los Hérulos en la Crónica del obispo Hidacio de Aquae Flaviae, mediados de s.V), Dominique Santos & Leonardo Alves Correa (Peregrinatio et Penitentia no livro I da Vita Columbae de Adomnán, séc. VII), Ana Rita Martins (Morgan le Fay: The Inheritance of the Goddess) e Solange Pereira Oliveira (Valores e crenças no mundo pós-morte nos relatos de viagens imaginárias medievais). Finalmente, contamos também com a resenha de José Pereira da Silva, acerca da obra A Fraseologia Medieval Latina, de autoria de Álvaro Alfredo Bragança Júnior.
No texto de Kelly, o autor começou a esboçar a influência de Pierre Pithou sobre o passado medieval visigodo. A ideia do artigo é rever as bases do pensamento moderno sobre a Idade Média, no intuito de entender como o conhecimento desse recorte temporal foi forjado. Esse impacto pode ser sentido não só na historiografia da época, mas também nas leituras contemporâneas e no método empregado pelos historiadores atualmente.
No texto de Muceniecks é possível notar a utilização de uma “saga legendária” e das descrições de regiões míticas como pano de fundo para a constituição de espaços liminares e ritos de passagem no Leste europeu medieval. Albuquerque, no extremo oposto, usou o famoso Massacre do Dia de são Brício (1002) e a organização espacial nas ilhas como parâmetro de observação das relações entre saxões e escandinavos na Inglaterra.
Grzybowski, por sua vez, usou Bernardo de Clairvaux e Otto de Freising como pontos de vista sobre as discussões acerca das virtudes políticas e o exercício político ideal. A análise das epístolas, gênero específico, demonstrou como as condições da época e a experiência monacal ajudaram a moldar as conclusões sobre a política no século XII.
O artigo de Santos & Correa desnudou os conceitos de peregrinação e penitência à luz das concepções usadas durante a Early Christian Ireland. Os autores usaram o primeiro livro da Vita Columbae de Adomnán de Iona (séc. VII) para retomar as condições de peregrinação no contexto irlandês e, nestes termos, recobrar o sistema teológico construído pelo autor da Vida de Columbano.
No texto de Martins, nota-se a preocupação com personagens do mito arturiano e as associações ora benignas, ora malignas, conforme o gênero do personagem. Com o incremento do cristianismo na Matéria da Bretanha, a mágica e as mulheres foram ligadas e formaram um amálgama de teor negativo. Nestes termos, Morgana poderia estar conectada com uma deusa “céltica” ou com a demonização pura e simples de deuses pagãos, tidos como aliados de Satã.
Solange Pereira Oliveira ofereceu ainda um arguto olhar sobre as crenças post morteem nos relatos de viagens imaginárias da Idade Média, que serviam, entre outros fatores, como guias de ensinamentos religiosos e mecanismos evangelizadores dos homens da Igreja; Juan Antonio López Férez, por fim, partiu das Vidas de Plutarco para comentar as diferentes referências aos celtas neste texto, com amplas traduções para a língua espanhola.
Brindamos nossos leitores com essas referências e aguardamos um crescimento ainda maior das produções voltadas para o Setentrião europeu medieval, sobretudo das próximas gerações de pesquisadores.
Referências
BANDLE et alii. The Nordic Languages: An International Handbook of the History of the North Germanic Languages. Vol.1. Berlin: Walter de Gruyter, 2002.
KILBRIDE, William G. Why I feel cheated by the term ‘Christianisation’. Archaeological Review from Cambridge, v. 7, n. 2, pp. 1-17, 2000.
PLUSKOWSKI, Aleksander & PATRICK, Philippa. ‘How do you pray to God?’ Fragmentation and Variety in Early Medieval Christianity In: CARVER, Martin (Ed.). The Cross Goes North: Processes of Conversion in Northern Europe, AD 300-1300. Woodbrigde: Boydell, 2002, pp. 29-57.
Vinicius Cesar Dreger de Araujo – Professor de História na Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). E-mail: viniciusdreger@yahoo.com.br
Renan Marques Birro – Professor de História na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). E-mail: rbirro@gmail.com
Elton O. S. Medeiros – Professor de História na Faculdade Sumaré (SP). E-mail: eosmedeiros@hotmail.com
ARAUJO, Vinicius Cesar Dreger de; BIRRO, Renan Marques; MEDEIROS, Elton O. S. Editorial. Brathair, São Luís, v.15, n.1, 2015. Acessar publicação original [DR]
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