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O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004) | Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Sá Motta

Em 2004 muitos foram os pesquisadores que se reuniram em seminários, palestras e eventos tendo como objetivo discutir a questão da ditadura militar no Brasil. Foi um momento de refletir um acontecimento – o golpe militar – que marcou profundamente a história do povo brasileiro. Já tinham se passado quarenta anos, mas as lembranças daquele momento permaneciam na memória daqueles que presenciaram os direitos democráticos se desfazerem com as ações políticas dos militares.

A produção historiográfica referente ao golpe civil-militar de 1964 e o governo que se instalou desde então vem aumentando constantemente. Essa preocupação pode ser compreendida devido ao acesso a determinados documentos que anteriormente eram impossíveis de serem analisados, embora o estudo sobre a ditadura ainda careça de fontes. A intensa revisão desse momento histórico pode ser dada pelo fato desse período ainda provocar muitas contradições, como por exemplo a construção de narrativas daqueles que defenderam o regime e dos que foram vítimas desse sistema ditatorial. O que ocorre também é uma tentativa de redefinição desse passado pelos diferentes sujeitos, de um lado aqueles que vivenciaram essa experiência ditatorial e de outro os que investigam e interpretam esse passado com base em documentos escritos e orais.

Sendo o tema tão debatido no decorrer do ano de 2004, Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta organizaram a obra “O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004)” na intenção de contribuir para a formação de olhares críticos sobre o tempo abominável da ditadura e para a formação de propósitos e convicções democráticas (REIS, RIDENTI, MOTTA, 2004: 11). Os organizadores são vinculados às universidades Federal Fluminense, Unicamp e Federal de Minas Gerais, respectivamente.

O livro reuniu dezenove artigos de pesquisadores integrados às universidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, que apresentaram seus trabalhos em vários seminários ocorridos nas capitais desses três estados durante o ano de 2004. Esses textos estão divididos em quatro temáticas: História e Memória; Política, Economia e Sociedade; Cultura e Política; Repressão, Censura e Exílio. Os trabalhos presentes nessa obra fazem parte de estudos já concluídos e de pesquisas que ainda estão sendo realizadas no espaço acadêmico.

A obra possui uma apresentação na qual os organizadores destacam que em 2004 as questões referentes ao golpe e a ditadura militar se multiplicaram. Apresentam também os fatores que impossibilitaram essa intensidade de pesquisas em três momentos anteriores: 1974, 1984 e 1994. Nessa introdução eles revelam a origem do livro e suas intenções ao trabalhar com um passado visto como doloroso e abominável. Há nessa parte uma síntese de cada artigo e o seus respectivos autores.

A questão central da primeira parte é a memória desse passado. Os artigos abordam as diversas redefinições do golpe e do governo militar construídas pelos diferentes sujeitos que vivenciaram ou não essa experiência. São quatro capítulos que estão inseridos na temática História e Memória.

Lucilia Neves Delgado, no primeiro artigo, descreve quatro correntes que interpretaram o golpe militar. Inicia destacando a corrente que enfatiza questões de caráter econômico na deposição de João Goulart, como por exemplo, os conflitos sociais decorrentes da implementação de um modelo desenvolvimentista caracterizado por programa de industrialização dependente e baseado na concentração de renda (Idem, Ibidem: 18), que não vinha ao encontro das aspirações daqueles que defendiam um modelo econômico nacionalista. Outra visão, colocada pela autora, é aquela que aponta o golpe como sendo de caráter preventivo, ou seja, a intervenção militar teria ocorrido para evitar mudanças radicais na estrutura sócio-econômica do país. A terceira interpretação privilegia a versão conspiratória, onde diferentes grupos internos e externos – destaque para a política internacional – teriam se aliado para conter a organização das esquerdas. Por fim a autora destaca a narrativa que acredita que a radicalização política foi a maior responsável pelo golpe, essa visão também defende a ausência de compromisso com a democracia por parte de grupos de esquerda como de direita. No decorrer dessa análise, Delgado apresenta alguns adeptos de cada corrente, utilizando-os como base para suas interpretações. A autora aborda as correntes historiográficas resumidamente, mas esclarece de maneira consistente.

Daniel Aarão Reis no segundo capítulo além de discutir sobre as “batalhas de memória”, ou seja, a visão de diferentes grupos sobre o período militar, destaca também a problemática da construção dessa memória hoje, momento em que se privilegia o sistema democrático de governo. No capítulo três e quatro Marcelo Ridenti e Caio Navarro de Toledo problematizaram a redefinição do golpe tanto para setores de direita como para setores de esquerda. A questão da memória esteve presente nos quatro textos e a discussão bibliográfica realizada pelos pesquisadores favoreceu a compreensão acerca das várias interpretações historiográficas construídas sobre o golpe e a ditadura militar.

Na segunda parte, Política, Economia e Sociedade, a reflexão referente a democracia brasileira atual – objetivo dos organizadores da obra – foi focalizada pela maioria dos autores, o que faz dessa seção uma importante leitura para a compreensão de diversas questões debatidas pelos brasileiros na atualidade, como a democracia, o neoliberalismo e a identidade social.

Os artigos de Maria Linhares Borges, Lucia Grinberg e Maria Paula Araújo analisam respectivamente a luta camponesa na região de Governador Valadares no início de 1964, o papel da Arena durante o regime militar e a luta de vários movimentos sociais pela democracia na década de 1970. As autoras utilizam como fontes de pesquisas entrevistas, documentos de entidades políticas e jornais/revistas da época.

Questões como a luta operária, CUT e neoliberalismo podem ser encontradas na abordagem de Celso Frederico no capítulo seis, além de uma análise referente às forças golpistas desde a década de 1930, destacando a presença do Estado na vida econômica e social do povo brasileiro. Outra discussão bastante pertinente nos dias atuais foi realizada por Francisco de Oliveira no capítulo sete. Ao refletir sobre a questão econômica no período ditatorial, o autor aborda a relação entre a ditadura e o populismo, definindo que a ditadura cortou as possibilidades de um desenvolvimento nacional autônomo talvez por um longo período, incomensurável para nossa geração (Idem, Ibidem: 123).

As tensões entre militares e o governo de Castelo Branco e Costa e Silva são contextualizados no capítulo oito por João Roberto Martins Filho através de um diálogo que o autor se propôs a fazer a partir de sua própria obra O palácio e a caverna 2 e as narrativas A ditadura envergonhada 3 de Elio Gaspari e a entrevista do general Ernesto Geisel 4 aos pesquisadores Maria Celina D’Araújo e Celso Castro.

Os artigos reunidos nessa segunda parte, principalmente aqueles que privilegiam discussões acerca dos movimentos sociais no campo, do populismo e da luta democrática, contemplaram a proposta da seção, ampliando assim visões sobre a ditadura militar sob diversos aspectos – político, econômico e social.

Na parte três intitulada Cultura e Política, são quatro capítulos que procuram analisar a intervenção militar e a ditadura a partir de diferentes expressões culturais. Entretanto a música foi abordada em três artigos, o que acaba não atingindo o objetivo e impossibilitando compreensões relacionadas a outras expressões culturais como, por exemplo, a arte teatral. Em compensação, ao frisar e contextualizar essas expressões em jornais (caricaturas), nas letras de músicas e nos textos cinematográficos os autores proporcionaram uma leitura que favoreceu o surgimento de possíveis críticas por parte dos leitores, pois esses ao terem acesso aos documentos – mesmo sendo de maneira parcial – poderiam construir outras visões sobre a mesma fonte distinguindo ou reafirmando aquilo que foi exposto nos textos. Ao colocar trechos das músicas, caricaturas, por exemplo, o leitor poderá possuir uma noção de como a fonte foi abordada pelo autor, possibilitando uma leitura distinta daquela que está sendo realizada.

Rodrigo Patto Sá Motta apresenta através da caricatura dezesseis imagens relacionadas a João Goulart e sua política reformista no período pré-golpe. Ele discute sobre a linguagem caricatural e descreve algumas das caricaturas que foram publicadas em vários jornais durante os anos que antecederam o golpe e que fizeram oposição ao governo de Jango. Marcos Napolitano e Heloísa Starling abordam respectivamente os festivais de música durante a segunda metade dos anos de 1960 e a relação entre canção popular e política panfletária nas composições musicais do grupo mineiro Clube da Esquina. Através desses dois artigos é possível destacar a resistência e a contestação ao governo ditatorial, bem como a concepção dessa realidade brasileira construída por esses cantores e compositores.

João Pinto Furtado no capítulo treze abordou os aspectos das canções e do cinema na década de 1970, enfatizando uma produção cultural voltada aos sujeitos que agora estavam inseridos no espaço urbano-industrial que se consolidava. A intenção do autor é perceber através dessas expressões culturais os personagens que se tornariam integrantes de movimentos que se auto-denominaram de “nova esquerda” nesse período.

Na última parte, Repressão, Censura e Exílio, os cinco artigos estão relacionados à questão do projeto centralizador e autoritário construído pelos militares que consistia em destruir toda e qualquer forma de contestação de caráter popular. A temática da memória está muito presente nos textos, que tem como fontes depoimentos orais e documentos que estão localizados em arquivos nacionais. Beatriz Kushnir analisou o jornal Folha da Tarde preocupada com a possível colaboração de parte da imprensa com a censura estabelecida pelo governo. Por ser esse artigo um resumo dos capítulos quatro e cinco de sua tese de doutorado publicada em 2004, percebe que esse texto é uma descrição do que já foi editado.

Carlos Fico, no capítulo dezesseis destaca os instrumentos de repressão utilizados pelos militares. Denise Rollemberg, no capítulo dezessete analisou as características do exílio e o que ele representou às gerações de 1964 e 1968. Ao basear-se em dados dos projetos Documentos e Memórias da Repressão Militar e Brasil Nunca Mais, Maria Lygia de Moraes focalizou, no capítulo dezoito, o processo de recuperação da memória de mortos e desaparecidos durante o regime militar e também preocupou-se com a militância feminina nesse mesmo período.

Finalizando essa parte e também a obra, Samantha Viz Quadrat apresenta uma análise sobre o aparato repressivo da ditadura militar além-fronteiras. Apesar da autora destacar que não iria analisar diretamente a participação brasileira na operação Condor, ela não explica essa operação mencionando somente algumas bibliografias que trabalharam a questão. Sua maior preocupação é compreender os órgãos de informações, criados pelo governo militar, na intenção de espionar os exilados no exterior. A autora acredita que seu estudo está inserido num projeto mais amplo de pesquisa que visa compreender não só a espionagem, mas também a perseguição e a repressão política com a colaboração dos países vizinhos (Idem, Ibidem: 326). Essa temática vem alcançando bastante repercussão devido à abertura de novos arquivos tanto no Brasil como no exterior.

Apesar de algumas concepções distintas sobre as causas do golpe entre os autores, a partir da obra pode-se ter uma idéia de que esse acontecimento foi marcado pela tentativa militar e civil de impedir a efervescência política de grupos sociais que lutavam por amplas reformas na estrutura do país. Os artigos que levantaram questões como resistência, exílio e censura revelam que o governo ditatorial foi um sistema opressor, totalitário e desumano.

A pluralidade de temas que constituem essa obra proporcionou a visão de alguns trabalhos que já foram realizados ou que vêm sendo construídos sobre o golpe militar e o governo ditatorial. Alguns artigos se repetiram, nem todos os autores focalizaram a questão da democracia, impossibilitando talvez uma das intenções dos organizadores que desejavam através dos artigos selecionados promoverem aos leitores convicções democráticas, e não foram todos que citaram suas fontes de pesquisas. Outra questão importante a ser levantada é que alguns artigos são versões já publicadas, o que descaracteriza a originalidade de parte da obra. Porém os organizadores contribuíram com a historiografia brasileira ao elaborar uma obra que permite aos leitores uma idéia daquilo que já foi escrito e de algumas discussões que ainda estão sendo problematizadas sobre esse trágico período da nossa história.

Notas

2 MARTINS FILHO, João Roberto. O palácio e a caserna. A dinâmica militar das crises políticas da ditadura, 1964-69. São Carlos: Edufscar, 1995.

3 GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

4 D’ARAUJO, M. Celina e CASTRO, Celso. Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1997.


Resenhista

Carla Michele Ramos – Graduada e especialista em História pela UEL, professora do ensino fundamental e médio, mestranda em História pela UNIOESTE.


Referências desta Resenha

REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Sá (Orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, SP: Edusc, 2004. Resenha de: RAMOS, Carla Michele. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 1, n. 1, jan./jun. 2007. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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