O que seria da arquitetura sem seus fotógrafos? Ou antes, o que seria de uma cidade sem eles? De Paris sem Atget; de Nova York sem Stieglitz; do Rio sem Ferrez; de São Paulo sem Militão; de Buenos Aires sem Coppola; de Salvador sem Verger; do Recife sem Benicio Dias? O que sua presença – como de tantos outros fotógrafos – tem a dizer dessas cidades que eles retrataram? Da transformação de sua fisionomia, das múltiplas maneiras de enxerga-las, dos acúmulos temporais nelas flagrados, dos vestígios do perene, do fugidio, do insólito? Que cidades ao fim e ao acabo eles revelaram? Que imagens elaboraram ou consagraram a seu respeito?
O livro acerca da obra fotográfica de Benicio Dias organizado por Cêça Guimaraens ajuda-nos a responder algumas dessas questões. Não apenas aos que, como nós, nascemos no Recife ou que estudamos a história da cidade em que cedo ele emergiu como um de seus intérpretes mais vigorosos. Mas a todo aquele interessado nas relações da cidade com a fotografia e com as arenas culturais que estimularam o surgimento de representações visuais tão eloquentes acerca do urbano.
É verdade que o campo visual descortinado por Dias – e o riquíssimo álbum de imagens que distingue o volume o reafirma – envolve um conjunto bem mais amplo de temas: fotografias de família, retratos, fotografias de coisas, animais e plantas, paisagens naturais, cenas de trabalho, tipos populares, vendedores ambulantes, barqueiros, marujos, pescadores, estivadores, emboladores, ceramistas, suas artes e manifestações, procissões, feiras do interior e tantos outros. Seja como for, entre as variadas séries de imagens que o fotógrafo produziu ao longo de suas quatro décadas de trabalho, algumas das mais consistentes foram de fato aquelas dedicadas à arquitetura tradicional e moderna, ao mobiliário colonial e popular, à ornamentação arquitetônica, aos monumentos edificados e ao casario anônimo, às construções públicas, pontes, praças, ruas e vielas da cidade do Recife. E o fato relaciona-se de perto com a sua biografia.
Benicio Whatley Dias nasceu em uma família tradicional do Recife em 1914. Ali, formou-se em Direito e cedo assumiu responsabilidades empresariais em nome da família. Pouco depois de formado, contudo, enveredou pelo campo da fotografia para nunca mais voltar. Era um momento no qual uma sensibilidade regionalista até então cultivada nos cenáculos locais do modernismo estabelecia-se como um cânone no âmbito das ideologias oficiais e políticas culturais pernambucanas.
Autodidata, os indícios de sua formação são ainda muito esparsos e pouco examinados. O livro nos apresenta alguns deles: as experiências caseiras com sua Roleiflex; a coleção de fotografias e gravuras históricas da cidade que cedo começou a reunir; a assinatura da revista francesa Art et métier graphique; o contato com o trabalho de Gregg Tolland, operador cinematográfico de Orson Welles, em visita ao Recife em 1942; o contato com o cinema russo, o filme noir, entre outras referências visuais com que se deparou ainda jovem.
Mas o fato é que cedo Dias rompeu com o diletantismo de tantos aspirantes a fotógrafos naqueles anos, estabelecendo estúdio próprio e assumindo responsabilidades institucionais no ramo junto ao Porto do Recife, à Diretoria de Estatística, Propaganda e Turismo da Prefeitura e ao Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ainda durante o Estado Novo. Cada vez mais comprometido com o ofício e reconhecido na imprensa, na crítica e no ambiente artístico e intelectual local, aproximando-se de figuras como Gilberto Freyre, Lula Cardoso Ayres, Francisco Brennand, Acácio Gil Borsoi, Janete Costa, ele se tornaria também professor na Escola de Belas Artes e na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Recife.
Não foi ao acaso que em sua vastíssima produção fotográfica, hoje em sua maior parte conservada pela Fundação Joaquim Nabuco, destacam-se o registro da paisagem edificada, das transformações urbanas, das obras públicas, do patrimônio cultural e da arquitetura contemporânea. A ênfase não respondeu, portanto, a meras afinidades pessoais, mas foi fruto de circunstâncias mais gerais de sua carreira, como as que então cercavam a afirmação da fotografia de cidade e arquitetura em boa parte do país. Mas se a encomenda pública de fotografias foi um traço definidor de sua obra, o que o notabilizou foi efetivamente a reivindicação de um sentido artístico peculiar ao seu ofício, uma arte que, como bem notou Philippe Dubois, sempre esteve mais próxima da sombra, da fumaça, da poeira, das cicatrizes e das ruínas, que dos ícones e símbolos congeniais às belas artes. Bem o sabia o fotógrafo, que ainda muito jovem, recém-premiado no Primeiro Salão de Arte Fotográfica do Recife de 1944, assim descreveu a um jornalista local a sua compreensão do ato fotográfico:
“O fotógrafo ‘pinta com a luz’. A maneira como o controla num diafragma, como permite que atravesse o cristal dos elementos, de que tipo de lente despojada em regiões do espectro ou intensificada em outras, sobre que tipo de emoção a projeta e, enfim, como desenrola a meada longuíssima do processo fotográfico completo, tudo isso pertence ao artesanato da fotografia. Ao fotógrafo-artista ou à arte fotográfica, porque não sei como separá-los, caberá servir-se desses elementos para dizer, com a imagem que conseguiu, sua reação diante de determinado assunto, pois, no instante curtíssimo ou na exposição demorada, conjurou todos os seus conhecimentos e toda a sua sensibilidade, toda a poesia e toda a emoção de que é capaz. Somente em tais casos terá conseguido transmitir ao sentimento dos outros a sua experiência emocional, indo além do mero documentário ou do unicamente recordativo, até a grande arte da imagem realizada e que, em série, formará a montagem, que, uma vez apreciada, fará o milagre da transmissão e jamais será esquecida” (1)
A passagem é eloquente acerca de uma reivindicação subjetiva, radicada na habilidade técnica e na imaginação artística do fotógrafo. Consciente da especificidade de seu métier, Dias toma distância da compreensão vulgar da fotografia em seu valor puramente documental, como mera reprodução da realidade. É precisamente este o argumento principal de Cêça Guimaraens em seu ensaio introdutório. De fato, o fazer fotográfico de Dias era frequentemente cercado de rigorosos rituais. Seu filho Sérgio Benicio Whatley Dias o descreveu em depoimento a Albertina Malta e Rita Barbosa de Araújo, destacando o zelo especial do pai em relação à arquitetura da cidade. Sua obsessão com a luz nordestina era por ele levada ao limite nessas situações: o fotógrafo visitava o local sucessivas vezes munido de fotômetro e fita métrica “para medir a luz, anotar os horários, as distâncias, estudar a angulação, avaliar o entorno. Nessas ocasiões, estabelecia a planificação do que seria destacado e do que seria diluído no foco. Muitas vezes levou dias nessas elucubrações” (2). O cuidado com a equipagem técnica de registro e reprodução, o disciplinamento do olhar, o exame das circunstâncias ambientais, e não menos, o convívio íntimo com o objeto e a sua elaboração paciente enquanto imagem revelam não apenas o grau de profissionalismo a que chegou, mas a aposta na força da fotografia como produção da realidade.
Benício Whatley Dias não foi apenas um dos mais influentes patriarcas da iconografia canônica do Recife: examinando precedentes visuais, ângulos, focos, entornos; selecionando e estabelecendo motivos e formas; organizando a percepção pública das profundas transformações e traumatismos em curso na cidade e na arquitetura entre os anos 1930 e os 1960. Se o período foi ali absolutamente decisivo para a dissolução dos panoramas, silhuetas e traços urbanos herdados dos séculos anteriores, a sua fotografia foi capaz de conferir inteligibilidade crítica a este processo e de influir nas próprias decisões em pauta acerca do futuro da cidade e de seus materiais arquitetônicos.
Hoje, em um momento no qual o ato fotográfico se converte em uma prática banal, impregnada na existência cotidiana de cada um e ostensivamente acessível a todos por meio de câmeras de celulares, dispositivos técnicos de manipulação e difusão, repositórios e redes mundiais os mais variados, estratégias como aquelas postuladas por Dias podem soar inofensivas, e até anacrônicas. Mas não estaria na reflexão em torno dos paradoxos do anacronismo uma das vias fundamentais de compreensão dos regimes de tempo que nos constituem? Não seriam obras como a sua, profundamente embebidas da tradição visual, tecnicamente refinadas, formalmente conscientes e dotadas de ambição ético-política na produção do real, as que apresentam melhores condições de fortalecer o compromisso humanístico da fotografia? É justamente diante de questões desta natureza que uma iniciativa de compilação e reflexão acerca da obra de Benício Whatley Dias como a que o livro de Cêça Guimaraes realiza, merece ser saudada e apreciada. Em busca da atualidade dos gestos nela consignados, da atualidade daquelas imagens de construção e de ruína nos horizontes heterotemporais que habitamos.
Notas
1Primeiro Salão de Arte Fotográfica do Recife, Arquivos, ns. 1-2, p. 438, 1945-1951.
2DIAS, Sergio Benicio Whatley. Benicio Whatley Dias: caçador de imagens e memórias. In MALTA, Albertina Otávia Lacerda; ARAUJO, Rita de Cássia. (Orgs.), Benicio Dias: fotografias. Recife, CEPE/Massangana, 2015, p. 42.
Resenhista
José Tavares Correia de Lira – Pprofessor titular do departamento de história da arquitetura e estética do projeto da FAU USP e ex-diretor do Centro de Preservação Cultural da USP. É autor de Warchavchik: fraturas da vanguarda (Cosac Naify, 2011) e O visível e o invisível na arquitetura brasileira (DBA, 2017), e organizador, entre outros, de Caminhos da arquitetura, de Vilanova Artigas (Cosac Naify, 2004, com Rosa Artigas)
Referências desta Resenha
GUIMARAENS, Cêça. O fotógrafo Benicio Whatley Dias. Prefácio Ulpiano T. Bezerra de Meneses. Rio de Janeiro: Rio Books, 2019. Resenha de: LIRA, José Tavares Correia de. A arquitetura do Recife e o ato fotográfico de Benicio Whatley Dias. Resenha Online. São Paulo, n. 218, fev. 2020. Acessar publicação original [DR]
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