BARRETTO, V. de P. O fetiche dos Direitos Humanos e outros temas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. Resenha de: SUBTIL, Leonardo de Camargo. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.12, n.1, p.94-96, jan./abr., 2011.
Et si le poète était tellement capable d’être expliqué dans tout ce qu’il veut dire, je crois qu’il serait très superfl u (Gadamer, 1982, p.44).
O fetiche dos Direitos Humanos e outros temas apresenta criticamente as reflexões centrais do professor Vicente de Paulo Barretto sobre o tema dos Direitos Humanos, na constituição das relações e das interferências recíprocas entre Direito, Moral e Política na sociedade contemporânea. Marcada por um constante e instigante problematizar teórico, afeito às realidades políticas e sociais que o constitui, a obra surge no contexto de recuperação original da significação moral dos Direitos Humanos através da inédita tese da desfetichização, elaborada pelo autor.
Dividida em 15 capítulos, a obra perpassa importantes temas da cultura jurídico-filosófica contemporânea, guardando, em sua constituição, duas linhas de investigação essenciais à consolidação do Estado Democrático de Direito e à construção de uma sociedade cosmopolita, libertas da mitologia legal, do positivismo jurídico e do fetichismo dogmático. Enquanto que a primeira linha de investigação delineia os fundamentos ético-filosóficos dos Direitos Humanos, a segunda ilumina as necessárias relações entre os Direitos Humanos e a sociedade democrática.
Nesse contexto de libertação dogmática, os Direitos Humanos surgem numa dimensão de recuperação moral dos fundamentos jurídicos, substituindo a até então predominante mitologia legal, inserida na lógica hobbesiana da totalidade normativa e do solipsismo soberano. Ocorre que, ao tentar livrar-se da totalidade normativa por um conjunto libertário e igualitário de direitos originais, os Direitos Humanos assumem uma dimensão fetichista e de dominação social, repetidora do formalismo positivista no tocante à plenitude de abrangência, descolada da realidade social.
É justamente nesse contexto de desapego à totalidade normativa e de afirmação democrática dos Direitos Humanos como categoria moral, anteriormente à sua consagração jurídica, que reside o desafio central da obra em apreço: a reavaliação do fetichismo dogmático através da compreensão dos Direitos Humanos como núcleo moral do Estado Democrático de Direito. Para tanto, o processo de desfetichização dos Direitos Humanos, na reatribuição de seu sentido moral original, passa por dois eixos essenciais desenvolvidos na estrutura do livro.
Primeiramente, a fundamentação ético-filosófica ressalta um problema paradoxal de constituição dos Direitos Humanos, pois, de um lado, há um crescimento desvirtuado dos textos normativos, o que contribui à imprecisão conceitual e à banalização dos Direitos Humanos. De outro lado, constitui-se uma dimensão utópica (retórica dos direitos), no sentido de um sistemático descumprimento dos pactos nacionais e internacionais de Direitos Humanos por governos e organizações sociais.
É nesse contexto que surge a importância de uma delimitação conceitual, na obra em análise, de algumas categorias essenciais ao estabelecimento de um maior rigor aplicativo dos Direitos Humanos, como, por exemplo, a da complementaridade entre Direito e Moral em Kant, como elemento legitimante do Estado Democrático de Direito.
Igualmente, a problematização do Direito através da moral possibilita visualizar uma separação analítica (não-conceitual) entre esses dois sistemas, observada na esfera de ação pública através da legislação, que limita a liberdade pessoal irrestrita de cada indivíduo. Importante mencionar também, no processo de maior rigor de análise dos Direitos Humanos inscrito na obra, as delimitações feitas sobre a conceituação e a natureza jurídica da dignidade humana, bem como a problemática das relações entre Direitos Humanos e Multiculturalismo, discussão tão afeita ao tema.
No segundo momento de desfetichização dos Direitos Humanos, já delineados os fundamentos ético-filosóficos dos Direitos Humanos, a indagação fundamental reside nos reflexos dessas delimitações conceituais na teoria do Direito, ressaltando a importância legitimante da filosofia na democratização do projeto jurídico através da projeção kantiana da autonomia no espaço público. Além disso, nesse maior democratizar do Direito frente à complementaridade filosófica, emerge o papel central da hermenêutica constitucional, possibilitadora de uma maior integração entre o Direito e as realidades sociais, afastados do fetichismo dogmático e da totalidade normativa.
As problemáticas inter-relacionais da obra referentes à cidadania, aos direitos sociais e à tolerância e, por conseguinte, aos limites da lei, estão inseridas num ambiente globalizatório, não linear, de exclusão social, onde a estabilidade westphaliana há muito deu lugar às instabilidades político-internacionais contemporâneas. O caminho rumo à democracia cosmopolita compreende, portanto, uma dupla via simultânea de ação, tanto no que se refere ao cumprimento compartilhado das funções do Estado, como no que se refere ao deslocamento de seus poderes às organizações internacionais. Esse caminho outorga visibilidade a um novo tipo de regime democrático, baseado em maior legitimidade jurídica e na democratização dos processos político-decisórios.
A teoria do Direito, nesse mar de instabilidades políticas e sociais, passa pelo desafio moral de uma nova teoria da responsabilidade particular e coletiva à construção de uma democracia cosmopolita, que “[…] supere as limitações do sistema político e da ordem jurídica do estado soberano” (Barretto, 2010, p.221). Esses desafios à teoria do Direito compreendem uma reflexão alternativa ao positivismo jurídico, trazendo o foco para o metaconstitucionalismo, na qualidade de dimensão normativa superior às normas constitucionais, como, por exemplo, os tratados internacionais de Direitos Humanos.
Nesse propósito de uma nova roupagem à teoria do Direito, a filosofia kantiana exerce uma importante “intuição diretora” na fundamentação dos Direitos Humanos e na construção da ordem jurídica metaconstitucional, com conteúdo moral e jurídico. Assim, atribui ao direito, por conseguinte, uma função de assegurar a paz justa através de sua força normativa, como reflexo dos valores morais da realidade social. É justamente nesse novo caminho metaconstitucional de abertura e de reconhecimento às instabilidades sociais, liberto do constitucionalismo liberal autorreferencial e da totalidade normativa (não plural), em que se situam os eixos normativos destinados à semantização humanitária do sistema fundado pela globalização e à continuidade do controle político-decisório em nível nacional, regional e internacional.
A riqueza da obra, O fetiche dos Direitos Humanos e outros temas, do professor Vicente de Paulo Barretto, reside na ideia central de não conduzir dogmaticamente os leitores a conclusões lógicas presentes no universo jurídico contemporâneo; assim, a própria estrutura argumentativa e “inacabada” da obra entra em confluência com o objetivo de superação da mitologia legal e da face fetichista dos Direitos Humanos.
Em uma perspectiva humanista de observação e de constituição dos Direitos Humanos pela via de consideração da pessoa humana, que realiza sua liberdade na relação com o “outro”, a obra dá-nos substancial contribuição ao fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Na constante problematização das principais controvérsias do pensamento jusfilosófico contemporâneo, numa dialética produtiva (não reprodutiva) da pergunta e da resposta, toca as feridas do formalismo dogmático, inseridas no totalitarismo de plenitude normativa, traçando as bases para a desfetichização dos Direitos Humanos.
Referências
GADAMER, H.-G. 1982. L’art de comprendre: herméneutique et tradition philosophique. Paris, Editions Aubier Montagne, 295 p.
Leonardo de Camargo Subtil – Mestre em Direito Público pela Unisinos – Bolsista Capes/Prosup. Membro do Grupo de Estudos em Mireille Delmas-Marty (Unisinos). Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: leocamargo15@hotmail.com
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