Raça pertence àquela classe de conceitos que muitos gostariam que fosse definitivamente abandonado devido a sua generalidade, mas que, não com pouca freqüência, retoma ao centro das discussões. Sua longevidade impressiona: questões ligadas a raça eram centrais em debates acadêmicos do século XIX (e mesmo bem antes). Os debates persistem em uma época em que a ênfase volta-se para o seqüenciamento do genoma humano, um projeto que catalisa os interesses da biologia moderna.
Obviamente, o tópico ‘raça’ não se esgota no domínio das ciências biológicas, possivelmente daí derivando sua persistência e dos significados a ele associados através dos tempos. Não é nosso objetivo aqui aprofundar certas questões, mas é preciso mencionar que raça, em sua vertente biológica, social ou mais freqüentemente no intercruzamento de ambas, tem reiteradamente influenciado ideologias de perseguição e exclusão de segmentos sociais específicos em todo o mundo.
Esclarecer as formas pelas quais o conceito de raça foi histórica e socialmente construído ajuda-nos a compreender seu significado e sua relevância no presente. Foi o que tentou, por exemplo, Thomas Skidmore em Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976). Das conclusões de Skidmore, sobressaem a importância da temática racial no pensamento social brasileiro na virada do século e a ênfase acerca do caráter mimético das idéias formuladas pela intelectualidade brasileira.
Enfocando “cientistas, instituições e questão racial” no Brasil, o trabalho visa “entender a relevância e as variações na utilização desse tipo de teoria no Brasil, no período que vai de 1870 a 1930” (p. 14). Schwarcz procura demonstrar que, mais do que simples cópias de modelos estrangeiros, as idéias da intelectualidade brasileira sobre raça caracterizavam-se pela especificidade, não raro pela adaptação criativa e seletiva de conceitos face à realidade social do país. Diante da condenação da miscigenação racial, moeda corrente no debate europeu, que se traduziria pela decadência inexorável, pela impossibilidade de progresso de países como o Brasil, fortemente miscigenado, surgiram reações múltiplas (em certos casos ambíguas), reações estas que oscilavam entre a preocupação, a constatação e o elogio à mestiçagem.
Os dois primeiros capítulos do livro introduzem o ambiente histórico, os atores sociais e as idéias sobre raça vigentes no Brasil e na Europa do século XIX. Schwarcz analisa o contexto no qual surgiram as primeiras instituições científicas no país, a partir do início do século XIX, e o marco de 1870, quando teria emergido “um bando de idéias novas”, expressão do crítico literário Silvio Romero para descrever a torrente de conceitos impregnados pelo positivismo, evolucionismo e materialismo. A conjugação de instituições e idéias teria fomentado o surgimento de quadros intelectuais vinculados a instituições científicas que, segundo a autora, iniciaram um processo de distanciamento das vinculações sociais e políticas mais imediatas dos setores dominantes ligados ao mundo rural. Não obstante um “cientificismo retórico” pautado em um “ideário cientificista difuso” (p. 34), os “homens de sciencia”, diante de mudanças históricas, como a Abolição da escravatura e a criação da República, e munidos de modelos evolucionistas e darwinistas sociais, procuraram responder a questionamentos acerca da viabilidade de uma nação miscigenada como o Brasil, nascida condenada ao atraso face aos postulados ‘raciológicos’ estrangeiros expressos por intelectuais como Thomas Buckle, Louis Agassiz e Arthur de Gobineau, entre outros.
A novidade da contribuição de O — espetáculo das raças está contida nos quatro capítulos seguintes, que tratam dos centros de “produção de idéias e teorias” (p. 65), quais sejam, museus etnográficos (Capítulo 3), institutos históricos e geográficos (Capítulo 4), faculdades de direito (Capítulo 5) e faculdades de medicina (Capítulo 6). Estes capítulos possuem todos uma estrutura similar, qual seja: breve história institucional; detalhamento sobre instituições específicas, particularmente no tocante aos intelectuais de maior peso e à produção científica dos periódicos a elas vinculados; análise comparativa das instituições pesquisadas. Vale ressaltar que os diversos capítulos são ricamente ilustrados, alguns deles com fotos coloridas. É possível, contudo, que muitos leitores se ressintam da falta de uma maior articulação entre texto e ilustração, dado que boa parte delas não chega a ser referida no corpo do livro.
Sem dúvida, Schwarcz não se propôs a realizar uma tarefa de pequeno vulto. O terreno a ser coberto, visando uma análise comparativa de instituições com características e histórias tão heterogêneas como museus etnográficos e faculdades de medicina é, logicamente, muitíssimo extenso. Certamente, é na própria dimensão da proposta do livro que reside muitos de seus pontos fortes. Uma análise que privilegia um espectro de instituições tem a vantagem de viabilizar um enfoque comparativo, potencialmente demonstrando recorrências que podem ser interpretadas como indicador da relevância de certas idéias. É preciso observar, contudo, que a abrangência e os métodos empregados por Schwarcz na coleta e apresentação das evidências trazem imbuídas algumas limitações, que detalharemos a seguir, a partir dos exemplos dos museus etnográficos e faculdades de medicina.
O capítulo sobre museus etnográficos nos faz refletir acerca da ‘sensibilidade’ da análise dos periódicos como estratégia, visando uma caracterização institucional. No caso da Revista do Museu Paulista, por exemplo, “a presença estrangeira é tão significativa que a própria revista será basicamente elaborada com a colaboração de naturalistas europeus. Apenas 1% dos artigos é de autoria de cientistas nacionais” (p. 81). Ou seja, parcela expressiva dos trabalhos publicados não é originária da instituição. Diante disso, até que ponto se pode argumentar que a produção veiculada nos diversos periódicos efetivamente sobrepõe-se com os “homens de sciencia” das instituições em apreço? Além disso, como método sistemático, o computo da produção científica publicada nos periódicos selecionados provê apenas um quadro parcial da produção dos pesquisadores dos diversos estabelecimentos.
Talvez o exemplo mais claro venha dos trabalhos de Edgar Roquette-Pinto. Além dos Archivos do Museu Nacional, periódico analisado por Schwarcz, a partir de novembro de 1923 o Museu Nacional passou a publicar também o Boletim do Museu Nacional. Como indicado no ensaio de revisão de L. Castro-Faria sobre a antropologia física no Brasil (em Boletim do Museu Nacional, nº 13, 1952), parcela significativa da produção em antropologia física de Roquette-Pinto nas primeiras décadas deste século não foi veiculada nos Archivos, mas sim no Boletim e em livros, dos quais se destacam Rondonia (1917) e Seixos rolados (1927). Talvez seja devido à ausência das páginas dos Archivos que os importantes trabalhos de Roquette-Pinto, enfocando a questão racial, recebam um tratamento tímido no capítulo sobre museus etnográficos.
O capítulo sobre as faculdades de medicina traz à tona uma outra questão relativa à associação entre revista e instituição defendida no livro, qual seja, até que ponto se pode argumentar a favor de uma sobreposição entre elas. Para melhor aferir a importância do debate racial nas instituições médicas, Schwarcz escolheu duas revistas acadêmicas, consonante com sua proposta inicial de trabalhar as “publicações internas organizadas pelas diferentes instituições” (p. 66). Como reconhece a própria autora, nem a Gazeta Medica da Bahia nem a Revista Brazil Medico pertenciam às faculdades de medicina que, a propósito, tinham suas próprias publicações, ambas denominadas Revista de Cursos da Faculdade de Medicina.
Quanto à Gazeta Medica, os médicos que se congregaram para fundá-la (Wucherer, Paterson e Silva Lima, entre outros) não estavam ligados à Faculdade de Medicina, mas sim à Santa Casa de Misericórdia de Salvador. Foram eles, juntamente com alguns discípulos, que posteriormente vieram a ser denominados como pertencentes à Escola Tropicalista Baiana. Esta tradição só veio a se inserir na Faculdade de Medicina da Bahia anos após a criação da Gazeta Medica e tinha entre suas características a ênfase em investigações que levavam em conta a singularidade brasileira. A propósito, como apontado por J. Peard (em The Tropicalist School of Medicine of Bahia, 1860-1889, tese de doutorado, Nova York, Columbia University, 1990), grande parte dos trabalhos dos pesquisadores ditos tropicalistas estava voltado para o estudo de doenças infecto-parasitárias, não privilegiando a questão racial como aspecto preponderante. Foi somente com a ascensão de Nina Rodrigues a professor de medicina legal que as interpretações raciológicas adquiriram maior visibilidade. Os dados quantitativos de Schwarcz corroboram esta afirmação: 42% da totalidade dos artigos publicados entre 1900 e 1915 versavam sobre medicina legal, contra 5% para o período 1870-1930. Deve-se frisar, contudo, que a medicina legal já naquela época contemplava uma grande diversidade de tópicos, indo além da temática racial. Até que ponto os dados mencionados sustentam a hipótese de predominância do determinismo biológico na faculdade baiana? As informações apresentadas por Schwarcz não apoiam necessariamente tal assertiva, uma vez que, dentre outras razões, 62% dos artigos por ela classificados diziam respeito à medicina geral, medicina interna e higiene pública (p. 204).
O exemplo do Brazil Medico aponta mais uma vez para os limites de uma associação direta entre periódico e instituição de ensino médico na virada do século; uma importante questão diz respeito à procedência das idéias nele reportadas através dos milhares de artigos publicados entre 1887 e 1930. Como aponta a autora (p. 219), muitos foram aqueles (e.g., Nina Rodrigues, Vital Brazil, Emilio Goeldi, Oswaldo Cruz, entre outros) de fora da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro que “colaboravam com assiduidade nesta revista” (p. 219). Em face da procedência institucional dos colaboradores e dos milhares de artigos publicados, fica a questão: esta bibliografia pode ser tomada como espelho da produção da Faculdade de Medicina da época ou oferece uma forte pista de que o Brazil Medico extrapolava barreiras institucionais específicas?
As ressalvas delineadas anteriormente, que em essência se referem à metodologia empregada, não diminuem a importância da análise conduzida por Schwarcz. Possivelmente, a realização de pesquisa histórica nos acervos das diversas instituições trabalhadas no livro teria contribuído para um enfoque mais matizado do tema proposto. É preciso mencionar, contudo, que uma abordagem desta natureza potencialmente inviabilizaria um espectro de comparações tão amplo como aquele delineado ao longo do livro. No mais, a autora, que é detentora de um estilo claro e conciso, foi capaz de transmitir aos leitores uma quantidade imensa de informações e reflexões a respeito do debate racial no Brasil na virada do século. Os dados apresentados apóiam a hipótese de que, longe de ser “mero reflexo ou cópia desautorizada” (p. 242), a adoção de teses raciais não somente foi comum, como profundamente vinculada ao contexto sócio-político-econômico vivenciado no país. O — espetáculo das raças é, sem dúvida, uma valiosa contribuição para o debate sobre raça em espaços institucionais até então pouco investigados, o que o torna leitura obrigatória para aqueles interessados no tema.
Resenhistas
Marcos Chor Maio – Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz
Ricardo Ventura Santos – Museu Nacional (UFRJ).
Referências desta Resenha
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Resenha de: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.1 n.1, jul./out. 1994. Acessar publicação original [DR]
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