O Erotismo | Georges Battaille

“Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Este axioma de Italo Calvino (2007: p.11) baliza com precisão o que a obra L’Erotisme, de Georges Bataille, que veio a lume pela primeira vez em 1957, significou e ainda significa para os estudos de gênero, sexualidade, história da arte e das religiões. O objeto de pesquisa é o erotismo e o seu funcionamento na sociedade, tema do qual o autor jamais se afastou, haja vista as muitas obras publicadas, como História do olho (1972) e Acéphale (1936-1939), para citar apenas algumas. Pode-se afiançar que a obra batailliana busca explicitar uma série de tabus da sociedade, do incesto ao homicídio, tendo como ponto de partida as experiências humanas.

Georges Bataille nasceu em Billom, França, em 1897. Data e lugar não são apáticos ao itinerário do pensador. Nascer na França em 1897 significava, para muitos, estar fadado a combater na Primeira Guerra Mundial dezessete anos depois. Com Bataille não foi diferente, e o autor não esconde esse fato. Já no prólogo de O erotismo, ele atesta que os escritos foram elaborados “entre a guerra”, num “mundo abandonado”, em que os homens viviam “como espectros” (p. 30).

Em muitos aspectos, é possível notar o legado que Bataille herdou dessa experiência radical. O homem, para ele, era capaz de tudo. Ao longo da obra, temas como a morte, o sacrifício, o assassinato, a caça, a violência e a crueldade são constantemente abordados, em consonância com o erótico. Estes temas abarcam um conjunto extremamente importante de estudos que, em sua totalidade, constitui um instrumento indispensável para um exame minucioso acerca do erotismo. Essas transgressões possuem uma relação complexa com o mito e o sagrado que Bataille busca desvendar, oferecendo reflexões profundas no tocante à correlação entre a vida e a morte. Para o autor, “a morte de alguém é correlativa ao nascimento de outro alguém”, e a vida é apenas um “produto da decomposição da vida” (p. 79).

De acordo com Fernando Scheibe, tradutor e apresentador da obra, Georges Bataille define o erotismo como o ápice da possibilidade humana:

Para Bataille, o ser humano é um ser descontínuo. Nasce só. Morre só. O paradoxo é que se, por um lado, queremos sempre conservar essa descontinuidade (tememos a morte), por outro, sentimos falta da continuidade perdida ao nos percebermos como „indivíduos‟ (desejamos a morte). O erotismo é a dança, propriamente humana, que se dá entre esses dois polos, o do interdito e o da transgressão. O interdito, a proibição, o mundo do trabalho, da identidade, da conservação, da descontinuidade, torna o homem humano. Mas também faz dele uma coisa. A transgressão do humano é o ápice do humano. O erotismo é a experiência interior dessa transgressão, desse ápice: „A experiência interior do homem é dada no instante em que, quebrando a crisálida, ele tem a consciência de dilacerar a si mesmo, não a resistência oposta de fora (SCHEIBE, 2013: p. 16- 17).

A obra está dividida em duas partes: na primeira, o autor procura explicar os diferentes aspectos da vida sob a ótica do erotismo. A segunda parte é composta basicamente de estudos independentes em torno dos escritos e da linguagem do Marquês de Sade, do incesto, da sensualidade, da santidade, dentre outros, buscando destacar temas especialmente relevantes à Psicanálise e à Literatura. Dessa forma, ocupa-se o autor de diferentes maneiras pelas quais o erotismo foi constituído, formulado e de que maneira ele circula na sociedade. Essas maneiras de constituição do erotismo são decisivas para se entender as três formas em que ele se apresenta na obra de Bataille: erotismo dos corpos, erotismo dos corações e erotismo sagrado, todos explicitados ao longo da obra.

Mas, o que é erotismo? Seria um simples “amor sensual”? Em sentido figurado, o imaginário social tende a atribuir a noção de erotismo à significação de “lascivo”, “voluptuoso”, “libidinoso”. O que surpreende é que essa definição é quase tautológica: está mais próxima do étimo grego e da sua significação inicial e global (eros é o amor em todas as suas formas). Todavia, Bataille toma todo o cuidado em não atribuir ao termo uma conotação pejorativa, pois não quer confundir o gênero erótico, que muitas vezes não ultrapassa os limites da decência e do pudor, com o gênero livre e licencioso. Homem de seu tempo, Bataille entende que o Romantismo libertara forças adormecidas (o sonho, o desejo, a morte) e por isso até então perdidos para a Literatura. Assim, ele e vários escritores do fin-de-siècle (Jean Genet, Jean Cocteau, André Gide, Henry Miller) não deixaram de aprofundar os territórios “obscuros” da sexualidade, tornando-os domínio da arte e da literatura. É a esta linhagem, sobretudo, que se deve a concepção atual do que é erótico e do que não o é: em Literatura, é verdade, mas também em História, em Antropologia, em Sociologia.

Para Bataille, o erotismo situa-se entre dois polos, a saber: o interdito e a transgressão. Ele afirma que o homem pertence “a um e a outro desses dois mundos, entre os quais sua vida, queira ou não, está dilacerada” (p. 63). É entre essas noções que o autor julga estar escondida a mola propulsora do erotismo. Isso porque o interdito (aquilo que é proibido, ilícito ou imoral) pode ser transgredido. É por meio da transgressão que o homem experimenta o pecado, o gosto do fruto proibido.

Esses pressupostos podem ser considerados em relação à sexualidade, campo preferido em que o erotismo dos corpos se apresenta. Desde longa data (o autor dedica-se inclusive a estudar as representações artísticas do Homem de Neandertal), a atividade sexual foi tema de interesse dos homens. Ainda que em priscas eras ela tenha tido uma relativa liberdade, com o passar do tempo o homem foi definindo sua conduta sexual por meio de regras, restrições e leis bastante definidas. Bataille reconhece, portanto, que o homem permanece “interdito” até mesmo na ocasião da cópula. É claro que tais interditos variam muito, em tempos e espaços muito distintos. Ainda assim, para Bataille, sempre houve determinados padrões que foram impostos culturalmente, chegando o autor a citar como exemplos o fato de que na maioria das sociedades, “todos furtam à vista o órgão masculino em ereção” (p.74) e de que o casal sempre busca um lugar reservado no momento da conjunção carnal. O homem é um ser cultural. Por isso, sua atividade sexual foi submetida a determinadas restrições.

Que restrições seriam essas? Entre os interditos sexuais explicitados ao longo da obra, Bataille cita a proibição do incesto, o sangue menstrual (noção cara aos menofílicos), as dejeções (que se ligam em algumas pessoas à noção de coprofagia), a defloração de virgens (considerada signo de vergonha, pois encarada como violação), a orgia ritual (associada a festas) e a prostituição. O que se apresenta ao longo das páginas é a ideia de que, além de se constituir em experiências ligadas à vida, essas transgressões e o seu caráter erótico foram como que encerrados num mundo à parte, decaído, pecador por excelência. Foi nesse espaço simbólico que o cristianismo buscou rejeitar os aspectos “impuros” de determinados atos considerados por Bataille como transgressores. O que o autor busca é exatamente naturalizar determinadas situações consideradas aberrações pela convenção moral. Para ele, os interditos não passam de constructos sociais. Se eles ainda se fazem presentes na sociedade é porque as pessoas concordam em agir como se existissem a priori. Note-se, por exemplo, as relações sexuais. A noção paulina do “amor divino” (caritas por contraposição a eros) e a subsequente execração cristã do amor profano (cuja expressão sexual era fonte de transmissão do “pecado original”, teorizado por Santo Agostinho) chegou até mesmo a execrar a cópula por puro prazer entre homem e mulher ainda que devidamente casados, pois a atividade sexual, como mal menor, visava somente à procriação.

Nunca é demais frisar que o autor reúne em sua obra valiosíssimo espólio metafórico que reconstitui, à sua maneira, as relações entre o desrespeito a determinadas regras (construídas historicamente) e o caráter erótico dessas transgressões. Todavia, finda a atividade erótica, a ordem e a “normalidade” voltam a gerir as relações humanas. Ainda que para isso o homem tenha que viver angustiado devido a esses rompantes. Mas, são esses os fatores que movem na obra batailliana o erotismo: “A atitude angustiada que fundou os interditos opunha a recusa – o recuo – dos primeiros homens ao movimento cego da vida” (p.109).

Possivelmente a riqueza semântica que na atualidade se investe a palavra erotismo relaciona-se com essa dupla noção de que trata Bataille, ou seja, interdito e transgressão. Em outras palavras, o erotismo passou a conter uma noção clara apenas porque variados interditos abateram-se nele, tornando-o a um só tempo raro e precioso. E, no entanto, como demonstra Michel Foucault, essa petrificação da noção de erotismo e a consequente sobrevalorização do erótico coincidem na civilização ocidental com uma “explosão discursiva” acerca do sexo, seja por intermédio das “confissões” religiosas, seja por intermédio do que o filósofo francês chama de “polícia do sexo” (FOUCAULT, 2010: p. 31).

Nesse contexto, retorna-se à questão: o que é erotismo? Na obra de Bataille, em seu sentido metafórico é erótico tudo o que se encaixa na noção muito ampla e sofisticada de transgressão social e que utiliza o sexo, a morte e o corpo como meios de expressão. Por meio deles, o erotismo torna-se assim representação do desejo e das diversas declinações de como a sedução opera.

Pelos posicionamentos e conceitos de que se vale para entender o erotismo, verifica-se que Bataille foi extremamente influenciado pela Antropologia de Marcel Maus, pela Sociologia de Émile Durkheim e pela Filosofia de Friedrich Nietzsche. Admirado por pensadores como Michel Foucault, que o descreveu como “um dos mais importantes escritores do nosso século”, uma vez que “a ele devemos em grande parte o momento onde estamos; mas tudo o que falta fazer, pensar e dizer, isso também lhe devemos e ainda o faremos durante um longo tempo” (FOUCAULT, 1970: p. 5), Bataille distingue-se de muitos pensadores do seu tempo por construir uma obra libertária, influenciada pela Psicanálise, pela Antropologia e pelo Surrealismo. Apesar de pouco estudado no Brasil, deixou à História ampla bagagem científica, quer no campo da pesquisa, da teoria ou da historiografia. O fato de a maior parte de suas obras estar inserida na literatura francesa não diminui sua importância para a História, uma vez que ele pode ser considerado um típico escritor “camaleão”, estando seus escritos perfilados entre a Antropologia e a Filosofia, passando, por fim, pela História. Não há como se enganar: há muita pesquisa em suas ideias.

Assim, é fato que, de todos os golpes que a História já sofreu, a morte de Georges Bataille (1962) é um dos mais cruéis e graves. Ainda hoje, os pesquisadores ligados às suas temáticas prescindem de uma maior análise de seus escritos. O autor representa, especialmente para a Filosofia Continental, aquilo que Marc Bloch significou para a Escola dos Annales, porque Bataille foi ao mesmo tempo um mestre em sua teoria e um colaborador pioneiro para o conhecimento que atualmente se tem do erotismo, além de um líder organizador da mais rara estirpe.

Referências

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

FOUCAULT, Michel. Apresentação. In: BATAILLE, Georges. Oeuvres complètes. Tomo I. Paris: Gallimard, 1970.

________. História da sexualidade I: a vontade de saber. 20 reimpressão. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2010.

SCHEIBE, Fernando. Apresentação do tradutor. In: BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p.9-18.


Resenhista

Wallas Jefferson de Lima – Mestrando em História – PPGH/Unicentro.


Referências desta Resenha

BATAILLE, Georges. O Erotismo. Trad.  Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. Resenha de: LIMA, Wallas Jefferson de. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v.7, n. 14, jul./dez. 2013. Acessar publicação original [DR]

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