As mais recentes teorias que amparam a investigação sociológica têm em comum a crença de que o processo social é fruto da relação dialética entre sujeito e estrutura, dinâmica que gera e reproduz o social. Em “O Epaminondas Americano” os autores apresentam os resultados de uma análise que parte desse pressuposto, especialmente valioso também para a nova história social. Nos territórios de Clio, esse movimento tem sido entendido como “a volta do sujeito”.
Perseguindo as trajetórias do advogado português Manoel Paixão dos Santos – que, além de adicionar o apêndice “Zacheo”, “o puro”, ao seu sobrenome, adotou outros epítetos, como “Epaminondas Americano” – os autores penetram no emaranhado período final da experiência colonial, abarcando as conjunturas de Portugal, do Brasil e do Maranhão. A partir da perspectiva extremamente singular da experiência do indivíduo – que vivenciou e que foi agente no contexto observado – a obra nos leva ao cerne de movimentos importantes que ocorriam paralelamente e que se articulavam de formas bastante variadas. Zacheo nos leva a testemunhar um momento importante na história do pensamento jurídico, atravessado por transformações profundas no final do século XVIII. Aproxima-nos das grandes renovações políticas e sociais também em andamento, e permite que se vislumbre a expressão desses fenômenos no Brasil, condicionados pelas circunstâncias singulares do país.
Enquanto jurista, formado em Coimbra na última década do século XVIII, Zacheo foi influenciado pela convivência tensa de grandes paradigmas jurídico-filosóficos no panorama acadêmico lusitano. Tendências modernizadoras – amparadas pelo braço reformista do Estado e pelos ventos do Iluminismo – disputavam espaço com o reacionarismo daqueles apegados às tradições. Até o último quartel do século XVIII vigoraram no âmbito jurídico português os “Estatutos Velhos”, criados em 1598. O velho direito português era amplamente amparado no direito romano e abria grandes concessões de jurisdição ao direito canônico. Um novo estatuto, instituído em 1772, fundamentava-se na noção de direito natural emanada do racionalismo iluminista: reconhecia a igualdade e a liberdade como valores inerentes à condição humana, anteriores ao Estado e irredutíveis a qualquer força. Nessa “nova escola”, o direito pátrio se sobrepunha ao romano, e a legislação canônica perdia espaço e jurisdição. A reforma da estrutura dos órgãos de justiça era outro princípio caro aos partidários do novo direito: o preenchimento “patrimonialista” dos cargos nos tribunais e repartições da justiça foi duramente criticado, e passou-se a exercitar novos critérios, que valorizavam a especialização profissional, a delimitação precisa das atribuições e limites de ação dos servidores e o assalariamento. Os antigos códigos tornaram-se gradualmente subsidiários, vindo a ser acionados apenas em caso de omissões por parte das novas leis. Mais tarde, Zacheo viria a ter contato com uma nova vertente jurídica, que ganharia espaço na esteira da Revolução Constitucionalista de 1820, de conotação liberal e individualista.
O contato com esses debates e o período de aprendizado que experimentou justamente no momento em que esses movimentos ocorriam deixaram marcas na atuação de Zacheo ao longo de sua vida. Uma das principais causas encampadas pelo advogado português, atividade que explicitava seus pendores modernizantes, foi a renhida e prolongada luta que sustentou contra o Tribunal da Relação. O órgão, que no Maranhão foi introduzido por obra do governo joanino, era um instrumento a serviço do poder despótico e antiliberal; naquela Província, o Tribunal da Relação serviu à manutenção do absolutista Pinto da Fonseca no governo, mesmo após a Revolução Constitucionalista, por meio de manipulações eleitorais e da perseguição obstinada aos opositores daquele governante. O próprio Zacheo se viu obrigado a buscar refúgio no Pará, a fim de evitar uma ordem de prisão. O órgão falhava em atender as diretrizes mais modernas do direito, por carecer de uma delimitação clara de sua jurisdição e de uma separação mais nítida dos outros poderes, e foi um dos maiores alvos dos panfletos de Zacheo.
O período em que Zacheo atuou como homem público coincidiu com os primórdios da imprensa no Maranhão: foi no governo de Pinto da Fonseca que se instalou a tipografia Provincial (1821). Tal empreendimento, demonstram os autores, foi lido de maneira acrítica por muitos dos que se dedicaram a observá-lo: não foram poucos os que viram na inauguração da imprensa maranhense um sintoma do caráter “constitucional-civilizador” do governo de Pinto da Fonseca (p. 74). Galves e Costa desmontam tal visão idealizada, revelando que, nos seus primeiros tempos, a tipografia provincial serviu quase exclusivamente ao jornal situacionista, O Conciliador, folha que gozava também de benefícios fiscais bastante favoráveis. Jornais oposicionistas eram sistematicamente barrados na tipografia provincial, que se recusava a publicá-los alegando razões as mais estapafúrdias. Nas palavras dos autores, durante os primeiros meses de funcionamento da tipografia, “noções como ‘controle’ e ‘legitimidade’ se sobrepunham à questão da ‘liberdade’” (p.75). Somente a sucessão de Pinto da Fonseca tornaria a imprensa provincial disponível a outras folhas. Foi só então que Zacheo conseguiu imprimir alguns de seus folhetos no Maranhão. De qualquer forma, a chegada da imprensa abria uma nova trincheira: o uso e controle dos mecanismos de disseminação da palavra abria possibilidades inéditas nas disputas de poder.
A Independência foi um movimento articulado por atores históricos situados no centro-sul: à maior parte dos habitantes do Maranhão, bem como de outras muitas partes do norte do Brasil, não interessava tal ruptura. A análise das posições políticas de Zacheo, explicitadas em seus folhetos, projetos e outras manifestações escritas, demonstra bem essa realidade. O advogado português se manteve declaradamente fiel aos laços coloniais até o último momento. Mesmo quando finalmente se viu obrigado a assumir a condição de “brasileiro”, Zacheo manteve uma posição regionalista, contrária à centralização monárquica, defendendo a instalação de “Cortes brasileiras” e pugnando por um estado federalista que levasse em conta as demandas das províncias. Tais ideias de Zacheo se harmonizavam com o espírito político das províncias do Norte: por conta da forma como o processo de Independência se deu, abrira-se espaço para “projetos alternativos” àquele monárquico-centralizador emanado do centro-sul. Em tal universo, o movimento conhecido como Confederação do Equador (1823) pode ser entendido como uma manifestação extrema dos sentimentos divergentes das províncias do norte.
Quanto à escravidão, Zacheo se mostrava abertamente reacionário. Enquanto o “espírito do tempo” já organizava os primeiros passos de um movimento pela extinção da escravidão, o advogado adotou a mesma posição de Antonil, a quem parafraseou, que um século antes, em 1711, descreveu os escravos como sendo os “braços e pernas” de seus senhores. Zacheo defendeu ardentemente a escravidão. Os escravos, “primeiros e naturais utensílios de nossa lavoura, moeda corrente do Brasil, e força principal de sua população”, nas palavras do advogado, eram por ele descritos como naturalmente inclinados à servidão, adaptados a ela da mesma forma que ao clima ardente do Maranhão, ao contrário dos europeus. Neste aspecto, Zacheo divergia das posições de muitos deputados portugueses das Cortes, que relutavam em aceitar a manutenção desta instituição no texto final de seu documento. Divergia também da posição oficial dos ingleses, que pressionavam os governos de territórios escravistas pela adoção de tratados e compromissos de extinção do tráfico, forçando a assinatura de acordos que, se muitas vezes eram tacitamente ignorados, não deixavam de impor algumas dificuldades adicionais ao comércio humano. Zacheo não transigia nem mesmo com a liberdade futura, rechaçando a abolição gradual. Defendia que se voltasse às leis “que estavam antes de 1810”; ainda em 1830, falando como representante eleito para o Conselho Geral da Província, defendia “a larga introdução dos valentes braços africanos, durante oitenta anos, pelo menos” (p.111). A posição de Zacheo se assemelhava à dos deputados brasileiros nas Cortes que, apesar de acederem com a concessão do título de cidadão brasileiro aos ex-escravos, alforriados e libertos – medida que, afinal, beneficiava os proprietários, por evitar um “cisma” incitador de sedições na sociedade – jamais se comprometeram com a extinção gradual da escravidão. Naquele contexto, aliás, como lembram os autores, qualquer aquiescência às proposições inglesas era interpretada como uma volta à atitude subserviente imputada ao governo despótico antecedente. “Cidadãos impossíveis”, naturalmente avessos ao trabalho e à vida em sociedade, os negros ocupavam um lugar inferior no ideário de Zacheo, que só concebia para eles duas vias de redenção: a miscigenação e o cativeiro.
Um português ilustrado inserido no Brasil dos anos finais do período colonial, num Maranhão cindido pelo vintismo português, exposto aos ventos liberais, que via seu debate público ganhar novos ingredientes com a instituição da imprensa, nova instância do jogo político; ao mesmo tempo, um Maranhão solidamente escravista, politicamente fechado ao liberalismo, impermeável a renovações profundas. Zacheo, que se queria o puro e sincero, é um sujeito que encarna estas contradições, é um indivíduo também ele cindido entre universos conflitantes e contraditórios, buscando a síntese possível, modelada pela conveniência. Como acomodar-se ao novo pensamento jurídico europeu, renovado pelas concepções iluministas, todo ele embasado na premissa do direito natural e da igualdade absoluta entre os homens, num país escravista, onde uma diminuta elite agarrava-se abertamente à manutenção dos privilégios de classe? Como exercitar o liberalismo político num cenário de acesso estruturalmente desigual às instâncias de poder, e com a permanência do “Poder Moderador”, esse “absolutismo mascarado”?. Como impor critérios de qualidade e profissionalismo na estrutura burocrática do Estado – objetivo caro aos novos padrões ilustrados – numa terra em que apropriação paternalista dos espaços institucionais por alguns poucos grupos privilegiados transformava cargos em moeda de troca nas articulações do poder?
Zacheo exercia a “arte do possível”. Ele foi epítome das contradições do período em que viveu, foi agente de forças antagônicas que se enfrentavam e desenhavam os contornos da nação que emergia. O autoritarismo e o patrimonialismo, a escravidão, os privilégios, ou acesso desigual aos cargos e benesses do Estado, todas elas características associadas ao que Sérgio Buarque de Holanda chamou de “uma aristocracia rural e semifeudal”, foram elementos que permaneceram inalterados e que, em sua imobilidade obstinada, impediram a assimilação não só da moderna cultura jurídica portuguesa, mas também do constitucionalismo e do próprio liberalismo. O que emergiu deste processo, resultado do esforço de manutenção, no novo cenário independente, das desigualdades, privilégios e injustiças “herdados de nossa experiência colonial, e que de nenhuma forma seriam superadas no Império”, foi um “liberalismo autoritário […] defendido pelos conservadores como uma ‘terceira via’ entre o absolutismo do regime anterior e os ‘excessos’ das revoluções burguesas” (p. 50-51).
A obra de Costa e Galves, afinal, supera paradigmas que marcaram a produção historiográfica sobre o período analisado nela: a visão regionalista do centro-sul, que fechava os olhos para as vicissitudes dos territórios do norte, e a abordagem “estrutural”, que se esquecia de considerar as experiências dos indivíduos comuns, bem como de suas representações do que testemunharam e idealizaram para a pátria nascente.
Resenhista
Daniel Rincon Caires – Especialista em História – PUC/SP. Pesquisador do Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM.
Referências desta Resenha
COSTA, Yuri; GALVES, Marcelo Cheche. O Epaminondas Americano – trajetórias de um advogado português na Província do Maranhão. São Luís: Café & Lápis; Editora UEMA, 2011. Resenha de: CAIRES, Daniel Rincon. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 7, n. 13, jan./jun. 2013. Acessar publicação original [DR]
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