HAIDAR, Maria de Lourdes Mariotto. O ensino secundário no Brasil Império. 2 edição. São Paulo: Edusp, 2008, 272pp. Resenha de: LIMA E FONSECA, Thais Nivia de. Uma radiografia dos primórdios do ensino secundário no Brasil. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, p.336-340, março 2010.
Publicado pela primeira vez em 1972 com o titulo O ensino secundário no Império Brasileiro, o estudo de Maria de Lourdes Mariotto Haidar tem sido referência obrigatória para os que se interessam pelas questões relacionadas ao ensino secundário no Brasil, e mais especificamente nos primeiros tempos de sua sistematização após a independência, durante o periodo imperial. Partindo das primeiras iniciativas de organização, por parte do Estado, para este nivel de ensino, realizadas a partir de 1834, a autora analisa radiograficamente a evolução do ensino secundário deste momento até o final do Império, em 1889.
O pioneirismo do seu estudo inicia-se pela própria temática, visivelmente negligenciada pelos estudos sobre a história da educação brasileira até a segunda metade do século XX. Este campo da pesquisa histórica, até então muito marcada pela influência dos trabalhos publicados até meados daquele século – principalmente o de Fernando de Azevedo, A Cultura Brasileira, de 1943 – considerava o período monárquico do Brasil independente como uma época de apagamento das atividades educacionais sob o controle do Estado. Ao indicar a República como a iniciadora de uma “verdadeira” política educacional na história brasileira, essa historiografia relegou o Império a um segundo plano nesta matéria, chegando a negar sua atuação na criação de qualquer política respeitável sobre a questão.
Ao assumir, neste contexto, um estudo direcionado ao período imperial, Haidar contava com poucas contribuições anteriores sobre o assunto.[1] Não lhe foi possível, portanto, evitar o trabalho de vulto no levantamento de fontes, essenciais em qualquer pesquisa histórica, mas absolutamente indispensáveis quando se tratava de dar maior visibilidade a um processo complexo, então ainda pouco conhecido, que interpôs a conjuntura política e as questões educacionais, principalmente na segunda metade do século XIX. Esse é, sem dúvida, um dos mais evidentes méritos do seu trabalho, pois ela foi criteriosa no esforço da pesquisa de fontes, e em sua organização.
A clara preocupação em radiografar este processo – indo mesmo além do ensino secundário em si, mas atentando para outras dimensões da educação escolar brasileira daquele período – acabou por levar a autora a agarrar-se muito aferradamente às informações documentais, levadas ao seu texto de forma profusa, ao longo de uma narrativa com forte peso na cronologia, onde leis, regulamentos, decretos, pareceres (além de muitos nomes associados a estes documentos) mencionados ao longo da obra, exigem dobrada atenção do leitor, numa narrativa por isso mesmo, às vezes cansativa, e que obriga a idas e vindas no texto para que o fio da meada não se perca. O constante recurso à transcrição de documentos, às vezes em longos trechos, tanto no corpo do texto quanto nas notas de rodapé contribui para isso. Tem o mérito de tornar os documentos acessíveis ao leitor, mas muitos deles bem que poderiam fazer parte de um anexo. Contudo, não se pode negar o caráter ricamente informativo da obra.
Riqueza informativa que permitiu a Maria de Lourdes Haidar reunir elementos para explicar as complexas articulações e interesses que envolveram diferentes sujeitos no processo de organização da educação escolar no Brasil império, particularmente da educação secundária, e que contribuíram sobremaneira para a montagem de um sistema de organização e funcionamento que expressavam essa movimentação social e política. E que, de certa forma, ajudaram a estabelecer algumas das características do ensino secundário e do ensino superior no Brasil nos períodos posteriores. Entre essas características, destacam-se a estreita relação do ensino secundário com as formas de ingresso no ensino superior, o que o tornava um nível de escolarização acessível basicamente às elites e setores médios, além da fraca presença do Estado como responsável direto por este nível de ensino. A conveniência deste tipo de estrutura tornou-a duradoura, vigorando como uma prática quando da elaboração de políticas educacionais até já avançada a República, ao longo de boa parte do século XX.
Na busca pelo entendimento desse processo, Maria de Lourdes Haidar procurou analisar os contrastes e os conflitos, de naturezas diversas, entre o poder central e as províncias, na sua maior parte decorrentes da legislação destinada a organizar o ensino secundário no Brasil império, o que nos permite inferências sobre qual seria a importância atribuída à educação em geral e ao ensino secundário em particular, no movimento político de descentralização/ centralização observado no Brasil no século XIX, e no âmbito do pensamento liberal que pautava ação política brasileira naquele momento. Com essa preocupação, a autora demonstrou os contrastes entre as ações mobilizadas no sentido de promover a descentralização e a autonomia provincial, por exemplo, e as tendências centralizadoras na estruturação do ensino secundário como forma de ingresso nos cursos superiores. Desse movimento resultaria, de forma evidente, o papel central adquirido pelo Colégio de Pedro II como instituição modelar para o ensino secundário, e o enfraquecimento de muitas instituições correlatas em diferentes províncias do Império. Distorções dessa natureza foram cuidadosamente analisadas pela autora, confrontando expressiva variedade de documentos.
Importante é demarcar, também, a importância assumida pelo trabalho de Haidar e seu caráter referencial no que diz respeito ao Colégio de Pedro II, objeto particular do terceiro capitulo do livro. O escrutínio sobre seu funcionamento, à luz das políticas relativas ao ensino secundário ao longo do século XIX abriu caminho para muitos pesquisadores que passaram a se interessar por esta instituição de ensino, investigada mais recentemente sob diferentes prismas. Não é por acaso, portanto, que O ensino secundário no Brasil Império seja referência obrigatória não apenas para trabalhos que, direta ou indiretamente lidam com o Colégio Pedro II, mas para pesquisas focadas nas instituições escolares do Império em geral.
A utilização de fontes que muitos denominam “escolares” – porque produzidas no âmbito nas instituições escolares – foi um recurso fundamental para uma aproximação, na medida do possível, com o funcionamento do ensino secundário no Brasil império, não apenas no âmbito das prescrições legais a respeito dele, mas nas realidades dos diversos colégios, liceus, institutos e externatos então existentes em diferentes localidades do Brasil. Assim, além do foco posto sobre o Colégio de Pedro II, a mais importante instituição pública de ensino secundário, Maria de Lourdes Haidar voltou-se para a análise do ensino secundário em outras escolas, da iniciativa particular, masculinas e femininas.
Esse enfoque é, na verdade, de grande importância, pois na segunda metade do século XIX ampliou-se o espaço para a iniciativa particular no âmbito educacional, espaço este que foi prodigamente aproveitado, a partir daí, pelas escolas confessionais ligadas a ordens e congregações religiosas masculinas e femininas.
A forte presença destes setores no ensino secundário, apoiada na fraca participação do Estado, ajudaram, ao longo do tempo, a consolidar o ensino privado fora da educação de nível elementar. O estudo de Maria de Lourdes Haidar foi fundamental para o rastreamento dos caminhos iniciais dessa característica do sistema educacional do Brasil independente, mesmo até o período republicano. Esse é, aliás, um campo de pesquisa florescente na historiografia da educação brasileira.
Na organização dos capítulos da obra, fica clara a intenção de demonstrar toda essa trajetória, iniciando pela análise do processo político e legislativo que, a partir do Ato Adicional de 1834 promoveria a autonomia das províncias do Império em várias matérias, entre as quais a organização da educação, incluindo o ensino secundário. No segundo capitulo Haidar envereda pela apresentação do funcionamento dos cursos preparatórios e dos exames para ingresso no ensino superior, analisando seus impactos nos diferentes tipos de escolas secundárias do Império, em geral afetadas negativamente pelas deformações provocadas pelo sistema. Nos capítulos seguintes, o foco recai sobre o ensino secundário propriamente dito, no Colégio Pedro II, nas escolas particulares e no ensino feminino.
Numa primeira leitura, O ensino secundário no Brasil Império nos parece uma obra essencialmente descritiva, produzida quando a historiografia da educação ainda não havia se ligado numa prática investigativa e analítica que marcou o movimento de renovação da historiografia brasileira, principalmente a partir da década de 1980. E, ainda, explicada num cenário em que era nítida a pouca especialização daqueles que se dedicavam aos estudos históricos no campo da educação, em sua maioria sem formação específica em História.
Maria de Lourdes Haidar, contudo, não caiu nos esquematismos que marcaram a historiografia entre as décadas de 1960 e 1980 no Brasil, e que podem ser facilmente encontrados em muitos livros sobre história da educação produzidos naquele período. Uma leitura atenta – e paciente, pelos aspectos do texto que comentei anteriormente – faz aflorar um estudo denso, que ultrapassa a mera descrição, e que constrói articulações importantes entre instâncias absolutamente essenciais para a compreensão dos processos de escolarização no ocidente moderno, e que envolvem muito mais que concepções pedagógicas, mas relacionam-se a linhas de pensamento político e social, a políticas de Estado, a estruturas de poder local, a pressões sociais de diferentes intensidades.
Perfeitamente justificável, portanto, a reedição da obra, trinta e seis anos depois de seu aparecimento.
[1] 1 Basicamente as obras de Henrique Dodsworth (Cem anos de ensino secundário no Brasil, de 1968) e de Primitivo Moacyr (A instrução e Império – subsidios para a história da educação no Brasil, e A instrução e as provincias, ambos de 1940), conforme as indicações bibliográficas da autora.
Thais Nivia de Lima e Fonseca Professora Adjunta Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) thais.fonseca@pq.cnpq.br Av. Antonio Carlos, 6627 – Pampulha Belo Horizonte – MG 31270-901 Brasil.
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