As discussões acerca da educação pública brasileira nunca foram tão intensas como hoje. O ensino público, em um período relativamente curto, passou por uma série de mudanças e de ataques. Entre aquelas, destacamos a reforma do ensino médio, expressa na Lei 13.415 de 16 de fevereiro de 2017, que flexibiliza o currículo e dissolve a disciplina escolar de história no itinerário formativo “ciências humanas e sociais aplicadas”; a aprovação em dezembro de 2018 pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que define os direitos e objetivos de aprendizagem do ensino médio para escolas públicas e privadas; e os vários projetos de lei submetidos, desde 2014, seja no Congresso Nacional como em sedes de poderes legislativos locais, pela organização Escola sem Partido, com o objetivo de combater uma suposta “doutrinação ideológica” nas escolas.
O campo de embate em torno do currículo remete ao fato que este não é apenas um conceito teórico abstrato. É um instrumento de regulação das práticas pedagógicas e desempenha um papel preponderante na organização escolar. (SACRISTAN, 2013). Desta forma, as reformulações no currículo condicionam práticas e tem impacto direto na vida de quase 60 milhões de brasileiros que passam pela educação pública ao longo de suas vidas. Como sabemos, o currículo não é um texto neutro, voltado apenas para seleção e ordenação dos conteúdos a serem ensinados. A criação deste documento envolve “práticas políticas, sociais, econômicas, de produção de meios didáticos, práticas administrativas, de controle ou supervisão do sistema educacional” (SACRISTAN, 2013, p.10). A este respeito, Bernstein afirma que a forma como a sociedade “seleciona, classifica, distribui, transmite e avalia os saberes destinados a serem ensinados reflete a distribuição do poder em seu interior e a maneira como se encontra aí assegurado o controle dos comportamentos individuais” (BERNSTEIN apud FORQUIN, 1996, p. 190).
Não assumimos aqui uma concepção total do currículo. Para além da dimensão prescritiva oficial, o currículo pode ser apropriado de diversas formas durante o processo de construção de saberes dentro da sala de aula. Entre o currículo formal e o real ocorre um deslocamento de sentidos, definido por Bernstein (1996) como movimento de recontextualização. Durante a recontextualização há um distanciamento entre a intenção discursiva contida no currículo oficial e os sentidos produzidos pelos sujeitos escolares que reinterpretam e ressignificam o texto curricular.
Mesmo levando em conta o jogo entre currículo oficial e real não podemos, no entanto, desconsiderar a força com que tais documentos incidem sobre as práticas escolares. Diante destas reformulações curriculares, ataques à educação e aos seus profissionais, o campo de pesquisa do Ensino de História se apresenta como espaço privilegiado para refletir acerca das urgências do presente, como também sobre as funções sociais do próprio ofício ligado à formação de indivíduos autônomos intelectualmente e dotados de pensamento crítico (LAVILLE, 1999).
Neste dossiê, intitulado “O Ensino de História frente às demandas sociais do século XXI”, decidimos reunir artigos de professores e pesquisadores do Ensino de História com o intuito de proporcionar um espaço de debate para questões pertinentes à área. Os autores que participaram deste número abordaram temáticas amplas, que vão desde questões relativas à história da disciplina de História no Brasil, ao uso de materiais didáticos e paradidáticos por alunos e professores. De certa forma, por mais diversos que sejam os temas, todos os artigos, em maior ou menor medida, trazem reflexões acerca das funções sociais e dos objetivos do ensino de história.
No artigo de abertura do dossiê, As produções acadêmicas sobre o ensino de história no Brasil (1987 – 2017), Dennis Rodrigo Damasceno Fernandes propôs catalogar, selecionar e analisar dissertações e teses que tratam sobre o ensino de História presentes no catálogo digital de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. O autor reuniu no total 656 trabalhos acadêmicos, a maioria advindos de programas de pós graduação em Educação. Em decorrência disso, o autor se questiona se este não seria um indicativo que “os historiadores não se preocupam com ensino de sua ciência?.”
Na sequência, no texto de Fábio Alexandre da Silva, O ensino de história em perspectiva: a aprendizagem histórica no século XXI, o autor disserta sobre a importância do ensino de história para a formação de um indivíduo crítico, autônomo, capaz de exercer a cidadania e construir uma sociedade mais justa e igualitária. Em seguida, analisa o papel exercido pelo currículo, o livro didático e os conceitos de história e memória no processo de ensino-aprendizagem da disciplina de história na educação básica.
Já no artigo proposto por Maria Paula Costa, Carmem Lucia Gomes De Salis e André Ulysses De Salis, intitulado A apropriação do livro didático de História na perspectiva dos alunos, os autores analisam o papel desempenhado pelo livro didático no processo de ensino aprendizagem em sala de aula. Foi problematizada a forma como os livros didáticos são apropriados pelos estudantes no âmbito escolar, como também a importância atribuída a este material. A pesquisa foi realizada com 153 alunos do 8° e 9° ano de duas escolas de ensino fundamental da cidade de Guarapuava/PR.
O quarto artigo do dossiê, Os paradidáticos no ensino de História: as ideias e as experiências de professores da Educação Básica, de Ana Beatriz Thomson, analisa o uso dos paradidáticos pelos professores da educação básica. A pesquisa contou com a participação de quinze professores de história, da rede pública e particular, da cidade de Londrina/PR. As narrativas dos professores foram recolhidas por meio de questionário e em seguida foram analisadas com o escopo de compreender se os paradidáticos podem ser considerados como elemento relevante para o desenvolvimento de um ensino de história significativo.
A seção Artigos inicia com o texto A política de demokratizatsiya segundo Gorbachev. Gelise Cristine Ponce Martins e Moisés Wagner Franciscon relatam e examinam os deslocamentos de sentido e modificações nas propostas para a demokratizatsiya nos escritos de Mikhail Gorgachev, quando líder do governo da URSS entre 1985 e 1991. Com base em discursos, entrevistas e decretos publicados, os autores dissertam sobre a trajetória discursiva que vai desde a condenação das democracias populares socialistas até a proposta de uma versão de democracia liberal.
O artigo de Vinícius Augusto Andrade de Assis, “D’onde veio aos pretinhos de Antonina aquella crença de que o imperador os tinha libertado?”: uma história do boato no Paraná escravista, explora o episódio de um boato sobre provável rebelião escrava ocorrida em Antonina/PR em 1859. Através de fontes jornalísticas e ofícios enviados pela Câmara Municipal de Antonina ao Presidente da Província do Paraná, o autor mapeia indícios e hipóteses sobre os objetivos, sentidos e usos de tal boato.
O último artigo desta seção é A construção da alteridade nas imagens e discursos do jornal El Centinela (1867), de Gabriel Ignacio Garcia. Neste texto, o jornal paraguaio El Centinela é analisado de modo a refletir sobre o papel desempenhado pela imprensa durante a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai (1864-1870). O autor se debruça principalmente sobre os artefatos mobilizados na fabricação da alteridade nos discursos imagéticos e textuais do jornal.
Na seção Trabalhos de Iniciação Científica (PIBIC e VIC) e Docência (PIBID), temos o texto A avaliação diagnóstica no ensino de temporalidades recuadas: um estudo de caso na educação básica de Uberaba-MG, de Lucas Martins Vieira, realizado sob orientação de Cláudia Bovo. O artigo é resultado do projeto de IC, “Os desafios do ensino de temporalidades recuadas na educação básica: o cristianismo medieval”, financiado pela FAPEMIG. Por meio de uma avaliação diagnóstica, realizada com alunos do ensino fundamental e médio da cidade de Uberaba, o autor se propôs a mapear os conhecimentos históricos apresentados sobre a Idade Média.
Neste número da revista publicamos duas Entrevistas. Mesmo adotando abordagens e plataformas diferentes, ambas versam sobre questões relativas ao ensino de história. Na primeira, A história no YouTube: democratização, vulgarização e falsos problemas para o conhecimento histórico, Augusto César Pereira da Silva e Flávio Conche do Nascimento entrevistam os professores Icles Rodrigues e André Azevedo da Fonseca a respeito dos canais de YouTube mantidos por estes e sobre a importância de buscar levar o conhecimento histórico para além dos muros da universidade.
O ensino de história frente às demandas sociais do século XXI é o título da segunda entrevista deste número. Nesta entrevista, Ana Paula Rodrigues Carvalho dialoga com o professor Luis Fernando Cerri a respeito da Didática da História, assim como sobre a função social do Ensino de história frente à crescente desdemocratização e ao sucateamento da educação pública.
Concluímos agradecendo a todos que contribuíram com artigos, pareceres e com o processo de publicação deste número. Esperamos que a leitura do material aqui reunido possa colaborar com o debate sobre o ensino de história do Brasil. Com os auspícios que a sala de aula se torne realmente um espaço de diálogo e de construção de conhecimento, desejamos às nossas leitoras e aos nossos leitores uma ótima leitura.
Cordial abraço,
Referências
BERSTEIN, Basil. Classes, códigos e controle. A estruturação do discurso pedagógico. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Luís Fernando Gonçalves Pereira. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
FORQUIN, Jean-Claude. As abordagens sociológicas do currículo: orientações teóricas e perspectivas de pesquisa. Educação & Realidade. Porto Alegre, n. 21(1), p. 187-198, jan./jun. 1996.
LAVILLE, Christian. A Guerra das Narrativas: debates e ilusões em torno do ensino de História. Revista Brasileira de História, ANPUH, São Paulo, v. 19, n. 38, p. 125-138, 1999.
SACRISTAN, J. Gimeno. (Org.). Saberes e incertezas sobre o currículo. Porto Alegre: Penso, 2013.
Organizadora
Ana Paula Rodrigues Carvalho – Editora de Seção da Revista Outras Fronteiras Mestre em História Social pela UEL e Doutoranda em História pela UFMT.
Referências desta apresentação
CARVALHO, Ana Paula Rodrigues. Apresentação. Outras Fronteiras. Cuiabá, v. 5, n. 2, p. 1-5, jul./dez. 2018. Acessar publicação original [DR]
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