Elciene Azevedo na obra “O direito dos escravos” tem por objetivo compreender o processo que envolve a luta abolicionista em São Paulo durante as últimas décadas do século XIX, atentando não apenas para as rupturas no decorrer do processo, mas também para as continuidades e reelaborações.
A autora vai além de uma compreensão, por muito tempo cristalizada em nossa historiografia, sobretudo pela “Geração de 1930”, a qual entendia que o escravo devido a constância dos maus tratos a que era submetido se tornava alheio a sua própria vontade. Sob essa leitura eram então sujeitos amorfos que não resistiam à violência, quando não eram ainda interpretados como inertes à escravidão pela benevolência de seus senhores, necessitando de homens brancos e ilustrados, repletos de sentimentos humanitários capazes de tirar-lhes da escura escravidão.
A autora traz ao leitor outra possibilidade de análise do processo abolicionista em São Paulo. Utilizando fontes documentais diversas, além dos jornais que tratam em sua maioria das disputas políticas entre a elite, tece suas análises na utilização também de processos criminais, inventários, correspondência entre juízes com os presidentes de província do período, entre outras fontes. Neste sentido, nos permite compreender as relações estabelecidas entre escravos e seus curadores e as relações mais diversas e adversas existentes nos meandros das leis constituídas durante o século XIX.
A obra está fundamentada na concepção teórica thompsoniana ao entender que as leis são tecidas no âmago das relações sociais e são histórica e socialmente construídas. A análise das fontes que a autora estabelece evidencia que a lei, neste sentido, traz margem para múltiplas interpretações. Assim, podemos entender que as leis não são simplesmente retrato da dominação de um grupo sobre o outro, ou seja, não é possível compreender a sua criação apenas pela dicotomia senhores x escravos. A autora nos propõe compreender que mesmo sendo pensada e instituída por um grupo de “domínio” político e econômico, a compreensão da lei perpassa a sua elaboração e aponta brechas possibilitando talvez que mesmo os grupos que não as produziram, as utilizassem para reforçar seu papel na sociedade, em sua luta cotidiana, a fim de se aproximar da liberdade.
Torna-se interessante pensarmos sobre a duplicidade do título do livro: “o direito dos escravos”. Ao passo que pode ser entendido de maneira ambígua, pois pode representar tanto o “Direito” no sentido jurídico do termo, apontando os modos como os escravos se utilizaram das definições legais, ao mesmo tempo pode ser entendido como o “direito” no sentido das “concessões” ou “conquistas” asseguradas pelas leis aos sujeitos escravizados.
No primeiro capítulo “Cenas de sangue” nos tribunais, a autora analisou os processos que continham ações criminais de escravos que atentavam contra a vida de senhores, fossem armados ou mesmo por envenenamento. O texto ainda enfoca o modo violento que os senhores tratavam seus escravos, por meio de torturas que levavam muitas vezes à morte do sujeito escravizado. O título do capítulo “Cenas de sangue”, não por coincidência era também o título que os jornais utilizavam para divulgar os crimes ocorridos na Província de São Paulo.
Neste capítulo, a autora evidencia as relações sociais envoltas nas leis e as dificuldades que os juízes tinham em julgar e condenar um homem de elevada posição social, como ocorrera com José de Barros Dias, que mesmo denunciado por sua escrava Agostinha em 1860 por seus excessos de castigos, saiu livre dos bancos dos tribunais, “preservado pelos seus pares e pela autoridade pública” (p.39).
Observa ainda as dificuldades das autoridades no julgamento de homens “de alta posição social”, pois as ações esbarravam também na relação estabelecida entre esses sujeitos e as autoridades públicas. Fechados em suas propriedades os senhores não permitiam que a “ordem pública” atuasse em seus espaços privados de poder. De certa forma é como se cada senhor fosse juiz de suas propriedades e de seus escravos, impossibilitando que as leis ultrapassassem os limites de suas porteiras quando não lhes interessava, ao querer tirar sua autoridade em seu lugar de controle.
No segundo capítulo “Para além dos tribunais” Azevedo evidencia as relações estabelecidas entre advogados e escravos. Tal relação se tornou corrente, sobretudo a partir da lei de 1831, que proibira o tráfico negro transatlântico, definindo que seriam livres todos os africanos que entrassem nas províncias brasileiras após essa data. Neste sentido os sujeitos escravizados ilegalmente buscavam se aproximar da liberdade aproximando-se dos “homens da lei”.
No intuito de compreender essas relações Azevedo traça a trajetória de Luiz Gama da Silva. Negro, ex-escravo, que se tornara um dos maiores representantes dos escravos em defesa da conquista pela liberdade dentro e fora dos tribunais. Por mais dispares que seja a vida desses sujeitos, escravos e advogados, de alguma forma elas se entrelaçam dentro e fora dos tribunais.
Luiz Gama tentava a todo custo “efetivar a prática da lei de 1831” (p.121) embora a todo tempo fosse ameaçado e confrontado pelos “homens do poder” local. Dentro dos tribunais houve muitas reivindicações e contradições acerca da interpretação da lei, pois a questão que se travava entre direito de propriedade e direito do escravo ganhava cada vez mais forças. Dentro dos tribunais os processos soavam como uma briga sem fim, já que tanto para os escravos como para os senhores a liberdade era um direito a ser conquistado ou mesmo mantido, respectivamente.
Após o acirramento dos debates e as várias interpretações da lei que proibia o tráfico transatlântico foi regulamentado em 1832 um complemento da lei de 1831 que descriminalizava as petições de alforria, que até então eram feitas em formas de processos judiciais. O complemento de 1832 ordenava que tais diligências tivessem então uma especificidade: as ações de liberdade.
Mais tarde, em 1850, uma nova lei foi ordenada neste sentido, a fim de encerrar de fato o tráfico negreiro intercontinental. Luiz Gama defendia a ideia de um “fio condutor” que ligava a lei de 1818 a 1850, pois as resoluções legais estabelecidas neste período tinham o mesmo objetivo: “desaguar na inevitável abolição do tráfico”.
Azevedo ressalta que os juristas conservadores tentavam manter a ordem e guiar a nação rumo à civilização de modo lento e gradual, que não implicasse em perdas aos proprietários. Advogados como Luiz da Gama se mostravam contrários a essas ideias que discutiam a forma pacífica e gradual da escravidão, pois sempre dedicados a ações de defesa dos sujeitos escravizados que viam na lei a forma de conquistar a liberdade. “Meio e não fim, a lei assumia, nas suas ações, papel central no recrudescimento do abolicionismo” (p.146).
No terceiro capítulo “legalistas e radicais”, a autora discute o modo como os jornais do período construíram uma imagem heróica de Luiz Gama. Após sua morte foi desenhada uma memória de redentor da escravidão, um dos advogados mais radicais em defesa das declarações civis de liberdade.
Assim, “surgiu” outro advogado dos escravos que ficou conhecido como novo líder da abolição: Antonio Bento, que havia jurado sobre o caixão de Luiz Gama segundo os jornais do período continuar sua atuação em nome da tão almejada liberdade. A autora pontua que segundo os memorialistas da abolição, a morte do advogado e a surgimento do outro marcaram uma ruptura, um divisor de águas que “encerra um marco historiográfico”.
Contudo, é interessante perceber o modo como a Azevedo nos chama atenção para outros sujeitos que atuaram neste processo. Suas análises não se restringem apenas ao ilustres advogados que sob a pena da lei procuram fazer justiça, mas ressaltam também a participação de pessoas simples, como é o caso apresentado do pequeno lavrador José Mariano Garcia, disponibilizando seu sítio a todos os refugiados, local onde sempre havia alimentos para saciar a fome dos que ali chegavam. Foram pessoas comuns, como aqui destacado, que segundo a autora sustentaram as ações “dos símbolos do abolicionismo paulista”.
Neste capítulo a autora também destaca a função dos jornais naquele momento histórico. Algo que ficou notório foram os espaços de disputas estabelecidos dentro dos jornais, sobretudo o Jornal Diário de São Paulo e o Jornal do Comercio. O primeiro denunciava os protestos dos senhores contra as ações dos advogados em prol dos escravos, como, por exemplo, Antonio Bento e os “caifás”. Já o segundo, sob o comando de Raul Pompéia e Gaspar Silva, se posicionava a favor dos sujeitos escravizados e das ações de liberdade defendidas pelos advogados.
A autora evidencia a forma como os jornais foram utilizados por juristas, advogados e pela classe senhorial, como um espaço de disputa e de discussões das leis, assim como contribuíram ainda para o despontar de uma “identidade” entre as disputas de memória do imaginário do abolicionismo paulista.
No “Epílogo”, a autora problematiza como após 1888 fora desenhada a memória de Antonio Bento e os caifazes, ou seja, uma sociedade organizada que fez com que Antonio Bento ficasse conhecido com uma “liderança política inconteste e firme” ao ponto de “apagar” outros momentos da luta em prol da liberdade.
A autora ainda questiona o fato de porque os jornais evidenciarem a imagem de Antonio Bento após 1888, sobretudo por meio do jornal A liberdade, em detrimento de todas outras ações.
Para compreender essa questão Azevedo retorna ao ano 1883, data de um ano da morte do que fora até então o legendário abolicionista. Aquele momento foi marcado, segundo a autora, pela disputa acerca da memória abolicionista em São Paulo.
Todo ano no dia em que se comemorava o aniversário da morte de Luiz Gama várias pessoas se dirigiam até seu túmulo. O próprio Antonio Bento considerava este um ato político e de propaganda e durante toda a década de 1880 jornais publicavam seus feitos em prol da luta pela liberdade cristalizando a idéia de “redentor da escravidão”, que embora fosse uma figura “negra” era “ilustre”, segundo os jornais da época.
A crítica da autora está no fato de que por vezes a memória construída, tanto em torno do “herói” abolicionista Luiz da Gama quanto a memória Caifaz e de seu grande “líder político” Antonio Bento, faz com que muitas interpretações reduzam na figura de dois líderes o movimento tão multifacetado como foi o abolicionista em São Paulo e em diversas regiões da província.
Os movimentos que desaguaram na lei de 13 de maio de 1888 foram constituídos por diversos sujeitos escravizados que buscavam, por meio de Revista Trilhas da História juristas brancos, advogados negros, o que tanto ansiavam: o (D) direito a Liberdade.
Rejane Trindade Rodrigues – Acadêmica do curso de Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas, Bolsista de iniciação científica pela UFMS, sob orientação de Maria Celma Borges. E-mail: rejane.rtr@hotmail.com
AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010. Resenha de: RODRIGUES, Rejane Trindade. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.2, n.4, p. 219-224, jan./jun. 2013. Acessar publicação original [DR]
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