Uma das imagens-choque da manhã dos atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001, foi a de pessoas a atiraram-se, esbracejando no ar, das torres gémeas de Nova Iorque em chamas. Praticamente 20 anos depois, uma das imagens-choque da retirada Americana do Afeganistão, invadido pelos EUA a seguir ao 11 de Setembro, foi a de civis afegãos a caírem de um avião militar Americano. Iniciar este texto sobre o 11 de Setembro sobre aquilo que uma pessoa vê, e o poder do visual, faz sentido na medida em que esse episódio tem um efeito de “lâmpada” na memória das pessoas – e à escala internacional até porque se deu num contexto muito mais tecnologicamente mediatizado do que no passado, instantâneo e visto e comentado em directo – fazendo-as relembrar, às gerações da passagem do século XX para o século XXI, onde e com quem estavam quando se deu o “evento”. Para muitos pareceu uma interrupção no tempo histórico – havia o antes e o depois, e dizia-se que “nada será como dantes”, e que o mundo, pelo menos Ocidental, teria mudado “para sempre”, na sua confiança, na sua vertigem pela abertura e interconexão, e por uma globalização liberal e capitalista que, pensava-se, iria chegar (e transformar) a todos os cantos do mundo – o mundo que, pensava-se, estava cada vez mais plano, tornava-se subitamente outra vez rugoso e acidentado. E, para quem antes tinha pensado num fim da história, ela depois e sem aviso, fazia-se ouvir, imprevisível, desconcertante e, como sempre, destruidora de profecias.
A predição do futuro que se fez em 2001 foi mais sombria do que a precedeu apos 1989, e também por isso, mais adequada ao carácter tantas vezes trágico da história das nações e das relações internacionais. Esta edição da revista Locus sobre o 11 de setembro, tem como fio condutor o estudo do impacto e o legado do 11 de Setembro na história realmente existente, em várias dimensões e contextos, e numa diversidade de assuntos. Uma premissa fundamental: muitos dos temas que, em 2001 e nos anos seguintes, ocupavam os especialistas de todo o tipo, permanecem, com maior ou menor intensidade, em 2021 – o terrorismo internacional, o fundamentalismo religioso, o contraterrorismo e os seus excessos, os identitarismos étnicos e religiosos, os superpoderes e os impérios, o intervencionismo militar e os seus limites, a expansão e a retração da democracia-liberal. Outra premissa fundamental: 20 anos depois a tendência é para relativizar a ideia do 11 de Setembro como um momento de viragem histórica. Houve claras mudanças. Por exemplo, a “luta contra o terrorismo” levou a mudanças regionais e de regimes (pelo menos temporariamente como se vê no Afeganistão), e ao crescimento exponencial do contraterrorismo e da legislação contraterrorista a nível nacional e internacional, assim como ao aumento e sofisticação das práticas de vigilância. Nesse sentido, como revela o título do documentário da Netflix nos 20 anos do 11 de Setembro, esse episódio foi um Turning Point, um ponto de viragem.
Mas o paradigma geopolítico e de política internacional que vinha do fim da Guerra Fria não foi assim tão afectado pelo 11 de Setembro – pode até ser argumentado que o 11 de Setembro foi visto como um motivo para reforçar esse paradigma. Em 2020, Andrew Bacevich, na Era das Ilusões, descreveu como, desde os anos 90, as elites americanas aderiram a um consenso pós-guerra fria assente na ideia da globalização e dos mercados livres (e que o capitalismo iria criar uma riqueza sem precedentes), na exportação de valores liberais e individualistas, e da manutenção da ordem através do poder da América e do intervencionismo militar. Afinal de contas a globalização era (e de certa forma ainda é) sinónimo de americanização. Veja-se como uma das narrativas dominantes na política externa americana no período do pós-11 de Setembro foi a da “missão americana” de promoção da democracia no mundo – e o Iraque como um eixo central para redesenhar o mapa do medio oriente, tornando gradualmente a região mais democrática e “esvaziando” assim as razões que alimentavam o terrorismo. Esta ideia (que tem raízes profundas na história americana e do seu “manifesto destino”) estava claramente presente no consenso do pós-guerra fria e foi até reforçada no pos-11 de Setembro. Só muitos anos depois, a partir do segundo mandato de Barack Obama – que começou a pôr em causa a ideia da América como “polícia do Mundo” e acentuou o recurso a drones no sector militar em detrimento de soldados – e sobretudo a partir de 2016 com Donald Trump e a sua plataforma de América First, é que este paradigma vai ser abalado – com a América a virarse para si própria, para a sua comunidade, em vez de “combater monstros por esse mundo fora” como tinha avisado o antigo presidente John Quincy Adams no século XIX – no fundo a ideia da América antes de mais como república, em vez de priorizar o império. E o que se nota com o seu sucessor John Biden, não obstante a mudança de retórica no apoio a acordo internacionais – pelo menos se pensarmos na retirada precipitada do Afeganistão no Verão de 2021 e nas justificações apresentadas para tal – é a continuidade com uma política externa menos interventiva, menos preocupada em “influenciar” ou em promover virtudes e modos de vida, e focada, já não em “construir nações” no estrangeiro e mais em “reconstruir” o próprio país – uma pretensão, aliás, em linha com a vontade de grande parte da opinião publica americana que já há alguns anos sofre de “fadiga” de todo o impacto financeiro e humano de décadas de conflitos e infindáveis guerras no exterior.
Associado a esta dinâmica, e característica importante desta mudança de paradigma, é a ascensão da narrativa do declinismo e da ideia de “fim de império” – ou seja que o domínio internacional americano se está a esbater em vários domínios, com o fim do momento unipolar de hegemonia, a abertura a uma nova ordem cada vez mais de múltiplos centros e polos de poder, e particularmente com a China como poder central nesse mundo “pós-americano”. Uma das consequências do foco quase exclusivo americano na guerra ao terrorismo foi a de secundarizar a ascensão do gigante asiático que, nos domínios económico, militar, diplomático e tecnológico (como na inteligência artificial) vai-se tornando um rival à escala global. E, enquanto o americanismo vai sendo cada vez mais combatido internamente – com a profusão de grupos domésticos que contestam não só “aventuras imperiais” como a própria identidade da nação, as suas raízes, origens, e carácter, e com divisões identitárias profundas – a China escapa a esse tipo de contestação e, como estado fundamentalmente iliberal, assegura uma maior unidade nacional, o que lhe dá, potencialmente, maior foco na projeção imperial do país. O Historiador escocês Niall Ferguson, que desde cedo escreveu sobre impérios e histórias de impérios, afirma que o fim de qualquer império – e, neste caso americano, de recuo relativamente ao domínio global – é raramente pacifico e indolor. Vinte anos depois, a reacção americana ao 11 de Setembro começa a ser vista como aceleradora do fim da hegemonia americana ou, pelo menos, do impulso de moldar o mundo à sua imagem. Se será temporário, ou permanente, será cedo para dizer, assim como prever se será mais ou menos caótico.
Dito isto, importa dizer que se há uma área onde existe claramente um antes e depois do 11 de Setembro é a área dos estudos do terrorismo e do contra terrorismo. Assistiu-se a uma proliferação de análises de todo o tipo – quer provenientes de universidades, quer de think tanks – assim como a um crescimento exponencial do financiamento de governos para a investigação sobre o terrorismo, do número de investigadores de várias disciplinas (com especial destaque para a psicologia) e de diferentes origens geográficas, assim como ao aumento quer do interesse de revistas académicas generalistas no tópico, quer de revistas científicas especificamente dedicadas ao estudo do terrorismo. É exactamente neste contexto – como mostram no seu artigo as investigadoras Raquel da Silva e Alice Martini – que surgiram os Estudos Críticos do Terrorismo (ECT) como alternativa à maneira mais tradicional e convencional de estudar o fenómeno. No fundo, um novo paradigma de estudo ancorado numa visão normativa de emancipação de todos os seres humanos de todas as formas de opressão de violência política, menos virado para as politicas de contraterrorismo e mais para uma dimensão alargada de problematização do contra-terrorismo que inclui questões de género, éticas e de direitos humanos ligadas ao combate ao terrorismo, e novas abordagens ao fenómeno da radicalização. Ao mesmo tempo, a questão da violência – e o pensamento sobre o impacto e o significado da violência – tornou-se mais presente a seguir ao 11 de Setembro. Inspirado pelos trabalhos do sociólogo francês Michel Wieviroka, Felipe Pathé Duarte no seu artigo aborda o impacto do 11 de Setembro na violência política, como confirmação de que a violência contemporânea não é já apenas instrumental mas muitas vezes expressiva ou identitária – na violência metapolítica o político obedece a um principio maior, ela está subordinada a outras dimensões culturais e religiosas, tornando-a mais intransigente, menos dada a concessões, e ancorada em exigências absolutas – “para os [fins] derradeiros … a violência é mais um fim em si do que um meio para uma realização política na perspectiva ocidental”.
O 11 de Setembro – e a reacção ao 11 de Setembro por parte de governos e de opiniões públicas – foi também caracterizado pela emergência de duas ideias mobilizadoras: a ideia de ameaça para justificar a guerra ao terrorismo, e a ideia de conspiração, para deslegitimar a guerra ao terrorismo, ou pelo menos a narrativa oficial sobre vitimas e culpados. No seu texto, Hugo Pérez Hernáiz, escreve sobre as teorias da conspiração – que a seguir ao 11 de Setembro explodiram, e até com livros que se tornaram best sellers – não como aberrações ou desvios do pensamento racional científico, mas como sociodiceias, ou seja como tentativas de explicar a organização das sociedades, competindo com as ciências sociais nesse domínio. E tal como o discurso científico elas visam o controlo, a busca da certeza, a transparência e o controlo totais – “explicar a ordem, explicar o mal contra a ordem, controlar o mal para manter a ordem, são os imperativos morais que partilham as teodiceias tradicionais e as sociodiceias de hoje”. Já quanto à ameaça – seja na acção governamental, seja nos movimentos sociais – ela serve muitas vezes de catalisador ou oportunidade de mobilização. É sob este ângulo que Mariana Medeiros Bernussi, focando especialmente os Estados Unidos, problematiza a “construção” do terrorismo como ameaça para a segurança internacional, num processo expansivo que inclui uma dimensão de “renovação” dos perigos e dos riscos para a comunidade.
Os três artigos que se seguem tratam do mesmo tema, o impacto do 11 de Setembro no campo da direita, seja internacional, seja americana ou brasileira. Francisco Thiago Rocha Vasconcelos e Silviana Fernandes Mariz escrevem sobre a ascensão de dinâmicas culturais, e de “civilizacionismo”, abertas pelo 11 de Setembro, guiadas pelo paradigma do “choque de civilizações” e seus efeitos na revitalização do pensamento iliberal e tradicionalista no campo da geopolítica. Gabriel Fernandes Rocha Guimarães, concentrando a sua atenção num dos mais influentes formadores de opinião da direita brasileira actual, Olavo de Carvalho, mostra também essa presença da guerra civilizacional. A questão do Islão e da Islamização passou a fazer parte do discurso do pensador brasileiro (como uma das forças que almejam o domínio global), mas numa perspectiva muito mais próxima da direita cristã americana (e de guerra civilizacional judaico-cristã contra o Islão) do que da direita populista euramericana. Finalmente, Bruno Garcia aponta as suas lentes para a história de divisão e de fragmentação do campo da direita americana no pós 11 de Setembro, e que acabará por abrir as portas a correntes da direita mais etnocêntricas e até então postas à margem pela hegemonia intelectual do conservadorismo tradicional do pós-guerra.
Voltando ao início desta introdução e ao papel das imagens na opinião pública, dentro dessa problemática inscreve-se o papel da cinematografia, e Daniel Ivori de Matos aborda no seu texto as produções independentes e estrangeiras, e depois as de Hollywood, sobre o 11 de Setembro e as suas consequências, gradualmente mais criticas da Doutrina Bush e de práticas antiterroristas. Também ligada a esta temática – e ao impacto que o 11 de Setembro teve na cultura americana e na maneira como se expressou nas artes visuais e noutras – a resenha de David Pimenta analisa a forma como eventos traumáticos ocupam um lugar privilegiado na memória nacional como mitos de comunhão e mobilização. E, no caso do 11 de Setembro, esse trauma “mantém-se com uma posição de destaque nas narrativas nacionais do Ocidente, que volta à ‘cena do crime’ incontáveis vezes através de produções culturais”.
Para finalizar, de referir que este dossiê da Locus – até porque pensar o 11 de Setembro, entre outras dimensões, também implica pensar no extremismo religioso e no terrorismo de matriz islâmica – inclui também uma entrevista com o sociólogo canadiano Lorne Dawson, que fez inúmeras pesquisas sobre o jihadismo e jihadistas, e que alerta para a necessidade de não desvalorizar as motivações religiosas na compreensão do terrorismo, assim como de empreender mais trabalhos etnográficos e primários para se conseguir um melhor entendimento sobre o fenómeno da radicalização violenta, um processo, diz ele, “complexo e não linear”.
Organizador
José Pedro Zúquete – Investigador principal no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Pós-doc na universidade de Harvard, Zúquete é o autor de The Identitarians (2018, Notre Dame University Press), o editor do Routledge International Handbook of Charisma (2021, Routledge) e o autor de Populismo: Lá Fora e Cá Dentro (no prelo, FFMS). E-mail: jpzuquete@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-6209-6931
Referências desta apresentação
ZÚQUETE, José Pedro. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.27, n.2, p.4-8, 2021. Acessar publicação original [DR]
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