O deus de Dawkins: genes, memes e o sentido da vida | A. Mcgrath

Esta resenha, apesar de referir-se à obra O deus de Dawkins, está alicerçada em dois teóricos: o biólogo Richard Dawkins e o teólogo Alister McGrath. Ressalva-se que se não fossem as obras de Dawkins, a obra resenhada aqui e, consequentemente, esta resenha não seriam possíveis, pois para McGrath escrever esse livro se respaldou nas obras de Dawkins de 1976 a 2003. O livro não trata apenas de uma refutação ao ateísmo, nem da sofisticada biologia evolucionista do biólogo, mas propõe-se a debater as supraconclusões que Dawkins extrai da teoria evolucionista, mais especificamente “as relativas à religião e à historia intelectual” (MCGRATH, 2008, p. 18).

O livro expõe dois lados antagônicos de Dawkins: o biólogo e o ateu. McGrath, de início, mostra a sua admiração pelo trabalho científico do biólogo, mas também as fragilidades de seu ateísmo supostamente científico:

Dawkins escreve com sofisticação e erudição sobre assuntos de biologia evolucionista, dominando claramente as complexidades desse campo e de sua vasta literatura de pesquisa. No entanto, quando pretende tratar de qualquer coisa referente a Deus, parece-nos que entra num outro universo. É o universo de um colegial que quer debater sobre a sociedade baseado em calorosos e apaixonados exageros (MCGRATH, 2008, p. 16).

MCGRATH, O TEÓLOGO

Alister McGrath é um dos teólogos mais lidos do planeta. Sua extensa obra possui mais de 40 publicações nas últimas três décadas, dentre elas, 15 já foram publicadas no Brasil, todas de cunho teológico, pois o mesmo é doutor em teologia pela Universidade de Oxford.

Seus livros com a temática teológica vão de imensos tratados histórico-teológico, como a obra Teologia sistemática, histórica e filosófica (Sheed, 2005), ao simples Teologia para amadores (Mundo Cristão, 2008); neste são abordados sucintamente os temas mais basilares da teologia cristã em apenas 68 páginas, com uma linguagem voltada para o público leigo.

A obra resenhada aqui é a primeira dentre dois livros- -respostas a Dawkins, respaldada em quase 30 anos de produção científica do biólogo, distribuída em cinco capítulos. Escrita em 2005, veio a ser publicada somente em 2008 no Brasil, quando McGrath há havia escrito a segunda obra refutando o biólogo, sendo esta (MCGRATH, 2007) uma crítica a apenas um dos livros de Richard Dawkins, o best-seller Deus, um delírio (Companhia das Letras, 2006). Já a obra resenhada aqui se respalda em quase 30 anos de produção científica do biólogo distribuída em cinco capítulos.

MCGRATH: O ESCRUTINADOR DE DAWKINS

Apesar de a obra resenhada ser uma refutação a Dawkins, McGrath é um profundo admirador da rica contribuição científica do biólogo para as ciências biológicas e do modo como Richard explana o seu conhecimento científico:

Eu admirava o modo incrível de Dawkins lidar com as palavras e sua habilidade em explicar com tamanha certeza as cruciais- -apesar de frequentemente difíceis – ideias científicas. Tratava-se de um texto de divulgação científica em sua melhor forma. Não houve nenhuma surpresa, portanto, quando o New York Times comentou que era o tipo de texto de popularização da ciência que fazia o leitor se sentir um gênio (MCGRATH, 2008, p. 6).

Sendo, hoje, um apologista cristão e da religião, o autor já jogou no time ateísta de Dawkins nos anos 1960. Alister enxergava como um axioma a hipótese de que “as ciências haviam desbancado Deus, fazendo da crença religiosa uma relíquia bastante insensata de uma era passada” (MCGRATH, 2008, p. 8). Parte do fundamentalismo ateu disseminado por Dawkins hoje, convergia com o pensamento de McGrath.

Dados estatísticos e exemplos cotidianos mostram que o trânsito religioso existe em todas as direções. Do ateísmo ao agnosticismo à religião (em sua pluralidade de manifestações), muitas pessoas que se sentiam seguras por anos a uma tradição também reveem suas posições, e assim aconteceu com o autor aqui resenhado no início dos anos 1970, quando o mesmo passou a

 […] perceber que a justificativa intelectual para o ateísmo era muito menos substancial do que supunha. Longe de ser uma verdade auto-evidente, parecia descansar em bases bastante frágeis (MCGRATH, 2008, p. 12).

O evolucionismo, que Alister entendia como irrestritamente ateísta, passou a ser interpretado com olhos teístas. A teoria da Darwin, que era vista como um escudo antirreligioso, começou a ser vista de forma mais flexível por McGrath, mas, na contramão de Alister, a teoria era expandida a direções inimagináveis por Richard, que

[…] fizera mais do que tornar a evolução inteligível. Dawkins estava disposto a expandir sua implicações a todos os aspectos da vida, propondo, na verdade, o darwinismo como uma filosofia universal de vida (MCGRATH, 2008, p. 13).

O Darwinismo, que outrora era considerado uma teoria científica, era para Dawkins uma visão de mundo capaz de ser aplicada a todo o universo (MCGRATH, 2008, p. 54). Convicto do imenso poder do Darwinismo em explicar tudo o que existe, o biólogo extrapola o alcance dessa teoria e o usa em outros campos de conhecimento, completamente distantes da biologia. Richard

[…] concebe o darwinismo como visão de mundo, em vez de uma teoria biológica, não hesita de forma alguma em levar mais adiante seus argumentos, para além dos limites puramente biológicos (MCGRATH, 2008, p. 67).

É esse o principal ponto da obra resenhada, que McGrath expõe o quanto Dawkins não possui propriedades para adentrar no campo metafísico. Em vez de mostrar um ateísmo eruditamente revigorado, Alister enxergou “a mesma retórica pesada e os velhos clichês surrados que bem conheci em meus dias de estudante” (MCGRATH, 2008, p. 17).

O biólogo ampliara o evolucionismo e dele extraiu o seu ateísmo, que o tornou conhecido fora dos círculos acadêmicos e no mundo inteiro. O ponto problemático é que, segundo McGrath (2008, p. 17), os pilares do ateísmo de Richard “com certeza repousavam, no final das contas, fora das ciências, e não dentro delas”.

McGrath (2008, p. 67) mostra que, em vez de conclusões científicas, Dawkins escancara ideias pessoais não corroboradas pela maioria dos cientistas contemporâneos. Dentre essas ideias, a de que a teoria da evolução “nos impele ao ateísmo. A evolução não apenas solapa o poder explicativo de Deus, ela elimina Deus completamente”.

O método científico está alheio ao sobrenaturalismo metafísico, porém Dawkins, ao longo dos anos e de seus livros, tenta entrelaçar ambos. Um exemplo claro é a citação inserida no livro aqui resenhado, em que Stephen Jay Gould parece já não ter mais paciência em refutar a ideia de que o evolucionismo implica em ateísmo, e de forma incisiva coloca:

Preciso dizer isto para todos os meus colegas de trabalho e pela milionésima vez (desde os bate-papos na faculdade até os mais doutos tratados): a ciência simplesmente não pode (através de seus legítimos métodos) decidir a respeito da questão da possível ingerência de Deus sobre a natureza. Nós nem podemos afirmar nem negar isso: como cientistas, simplesmente não podemos comentar sobre a matéria (MCGRATH, 2008, p. 71).

Tal afirmação de Gould mostra o quanto alguns ateus buscam enxergar nas ciências naturais, e principalmente no evolucionismo, argumentos a favor da inexistência de Deus. Além de não encontrar evidência alguma, não notam que estão “se desviando do caminho reto e justo do método científico e vão acabar nos ermos filosóficos” (MCGRATH, 2008, p. 71). Ao se embrenhar no labirinto filosófico, perdem completamente o contato com a alçada real do método científico.

DAWKINS E A RELIGIÃO: CAMPOS DISTANTES E DISTINTOS

Desde o início de sua carreira científica, Dawkins passou a explanar acerca do fenômeno religioso. Em 1976, definiu a fé como “uma confiança cega, na ausência de evidências, ou mesmo diante delas” (MCGRATH, 2008, p. 71). Em 1989, a qualificou como “um tipo de doença mental” (MCGRATH, 2008, p. 107.) Em 1996, afirmou ser a fé “um dos grandes males do mundo, comparável ao vírus da varíola, mas mais difícil de erradicar” (MCGRATH, 2008, p. 109). Essas três opiniões parecem ser de ateus distintos, sendo um mais agressivo que o outro, mas todas são de Dawkins. São estereótipos distintos um do outro, e, quanto mais o tempo passa, mais Richard aumenta a sua hostilidade em relação ao universo religioso . E é possível se extrair alguma cientificidade dessas três opiniões de Dawkins a respeito da fé? De forma alguma. Alister, ao longo do livro, mostra como todas as conclusões do biólogo, não só a respeito da fé, mas do universo que abrange o fenômeno religioso, é “superficial e inexato, muitas vezes equivalendo a pouco mais que uma disputa de pontos” (MCGRATH, 2008, p. 106).

O biólogo, já acostumado a fugir da biologia, se distancia ainda mais de seu campo quanto tenta encarcerar a hipótese da existência de Deus em probabilidades matemáticas:

A hipótese alternativa, de que tudo começou com um criador sobrenatural, não somente é supérflua, também é altamente improvável. Ela conflita com o próprio argumento que foi originalmente lançado em seu favor. É assim, porque qualquer Deus digno do nome deveria ter sido um ser de inteligência colossal, uma supermente, uma entidade de probabilidade extremamente baixa – na verdade, um ser muito improvável (MCGRATH, 2008, p. 114).

Tal argumentação, vaga e imprecisa, implicam em cálculos exatos que o biólogo não fornece, e especificamente não há nenhum dado matemático que se refira à probabilidade baixa ou à improbabilidade.

O embaraço realizado por Dawkins ao falar da fé e de Deus expõe o quanto o biólogo é alheio ao campo. Em suas obras, apenas esporadicamente é citado algum teórico. Richard parece desconhecer Eliade, Otto, Durkheim, Weber e outros. Talvez o mesmo “esteja tão ocupado escrevendo livros contra a religião que não tenha tempo de ler as obras da religião” (MCGRATH, 2008, p. 124).

MEME: O HIPOTÉTICO GENE CULTURAL

Desde o início de suas explanações científicas nos anos 1970, Richard especula sobre um possível paralelo entre a informação genética e cultural. A busca pela teoria final, que enche os olhos de tantos cientistas renomados, parece ter alcançado o seu ápice com o evolucionismo. Ao supor a existência de um replicador cultural, o hipotético meme, o biólogo entrelaça a biologia evolutiva e a cultura humana, e, mesmo sem ter uma clara intenção disso, podemos ver as aleatórias pinceladas antropológicas do biólogo ao afirmar que

[…] da mesma maneira que os genes se propagam no conjunto de genes saltando de corpo em corpo via esperma, também os memes se propagam no conjunto de memes saltando de cérebro em cérebro (MCGRATH, 2008, p. 154).

O inverificável e insondável meme é justificado por uma analogia entre a hereditariedade genética e cultural. Richard afirma que parte

[…] dos maiores avanços na ciência ocorreram porque alguém inteligente descobriu uma analogia entre um assunto que já era compreendido e outro assunto ainda misterioso (MCGRATH, 2008, p. 65).

Um exemplo prático, que sacia as inquietações de Dawkins, é o maior de todos os memes o “meme-Deus ou vírus-Deus” (MCGRATH, 2008, p. 156). A crença em Deus, para o biólogo, vem da descendência cultural. Tal hipótese levantada mostra um confuso entrelaçamento entre ideias antropológicas, biológicas e mesmo filosóficas.

Poucos cientistas olham com seriedade a ciência memética de Dawkins, pois a sua suposta existência foge ao método empírico-científico. McGrath (2008, p. 161) faz uma analogia sobre o biólogo que, ao

[…] falar sobre os memes Dawkins é como os crentes que falam sobre Deus – um postulado invisível, inverificável, que ajuda a explicar algumas coisas sobre a experiência, mas, no final das contas, encontra-se além da investigação científica.

CONCLUSÕES

Na contramão de best-sellers com proselitismo ateísta, cuja maioria enreda o conteúdo fundamentalista similar aos fundamentalismos religiosos mundiais e desprovidos de qualquer conhecimento relevante e análise séria do complexo fenômeno religioso, McGrath responde à altura ao maior militante ateu da atualidade, mostrando as deficiências do neoateísmo Dawkinsiano: a ausência de embasamento científico que respalde o seu agressivo ateísmo, as extensões universais que o biólogo propõe ao evolucionismo adentrando em outros campos de conhecimento, inclusive das ciências humanas e as hipóteses levantadas que são insondáveis ao escrutínio científico , como no caso do gene cultural.


Referência

MCGRATH, A. O delírio de Dawkins: uma resposta ao fundamentalismo ateísta de Richard Dawkins. São Paulo: Mundo Cristão, 2007.


Resenhista

Thiago Fernando Diniz – Graduado em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). E-mail: tfd_83@yahoo.com.br


Referências desta Resenha

MCGRATH, A. O deus de Dawkins: genes, memes e o sentido da vida. São Paulo: Sheed Publicações, 2008. Resenha de: DINIZ, Thiago Fernando. Ciências da Religião – História e Sociedade.São Paulo, v.11, n.1, p. 225-233, 2013. Acessar publicação original [DR]

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