O Deus da Idade Média. Conversas com Jean-Luc Pouthier | Jacques Le Goff

A obra “O Deus da Idade Média, Conversas com Jean-Luc Pouthier” (Civilização Brasileira, 2007, 126 p.) é fruto de uma entrevista de Jean-Luc Pouthier (historiador francês, ex-redator chefe da revista de História das Religiões Le Monde de la Bible) com Jacques Le Goff (historiador francês, considerado o maior especialista em Idade Média Ocidental ainda vivo, membro do movimento dos Annales e da EHESS), que mostra em suas respostas grande potencial intelectual ao abordar uma temática tão ampla e complexa, por se tratar de um período de tempo muito extenso.

Publicado originalmente em 2003 na França e no Brasil em 2007, com tradução de Marcos de Castro. O principal conceito abordado é o de Deus, entretanto não de uma maneira lato mas sim o Deus circunscrito na cristandade medieval; ou seja, como homens e mulheres, leigos e clérigos medievais do ocidente entendiam, interpretavam, imaginavam e representavam o Deus cultuado por toda a Europa Ocidental, construído e administrado pela Igreja Romana.

O livro divide-se em seis partes, das quais a primeira (p. 9-13) trata da introdução do tema e objeto proposto, qual seja: Deus no Ocidente Medieval. Nesta parte a obra é apresentada e são expostos alguns de seus preceitos fundamentais, como a chamada “grande virada histórica da humanidade”, que foi a substituição do culto politeísta pagão para o monoteísta cristão, apesar desse Deus possuir representação antropomórfica e talvez de tendência plural, no caso da Trindade e também do culto mariano como uma espécie de quarto elemento da Trindade, que surgiu na Idade Média. Outra questão apresentada é a da historicidade de Deus; ou seja, existe um Deus idealizado de formas variadas entre os diversos grupos sociais medievais, como clérigos, leigos, monges, seculares, pobres, ricos, também um Deus próprio da religião oficial e outro do catolicismo popular e por fim as imagens da majestade e da humilhação de Deus. Em suma, pelo fato de Deus ser percebido de diferentes maneiras por diferentes grupos sociais e instituições ao longo do tempo, permite que seja objeto de estudo historiográfico.

No primeiro capítulo, “De que Deus se trata?”(p. 17-39), a questão central é como se deu a gênese da figura de Deus no Ocidente Medieval, que segundo Le Goff é um processo que tem início ainda na Antiguidade Tardia, ou seja, na fronteira entre o fim do Império Romano do Ocidente e a Idade Média, momento no qual o Cristianismo, de seita marginal passa para o centro do Império com a conversão de Constantino em 313 até se tornar a religião oficial com Teodósio em 392 e passar de perseguido a perseguidor; fatores estes que marcam a virada do politeísmo para o monoteísmo. Entretanto esse processo não se deu de maneira homogênea e livre de tensões, existindo ainda algumas resistências pagãs desde Símaco, defensor público do paganismo em Roma, às práticas ditas como superstição, que vão permanecer durante todo Período Medieval, porém sumariamente marginaizadas, principalmente com a conversão dos reis bárbaros, que instantaneamente convertiam seus súditos, de maneira concomitante com outro evento importante no processo de cristianização da Europa, qual seja: o processo de substituição dos templos pelas igrejas, através da sua destruição, engendradas principalmente pelos primeiros homens considerados santos na Idade Média, fenomeno que gerou uma enorme rede de locais de culto de relíquias, reorganizando todo o espaço europeu.

Contudo, a cristianização não se deu apenas dessa maneira materialista, mas sim no imaginário da população, uma vez que na Idade Média surgiu a noção de “Bom Deus” (mais utilizada entre os franceses), que por sua vez, permitiu a substituição dos antigos heróis e semi-deuses pagãos, pelos “mortos privilegiados” de Peter Brown, os santos, intermediários entre Deus e os homens e também dos espíritos menores em anjos do Senhor. Ou seja, essa multiplicidade de culto ao Deus da Idade Média, distribuída por todo o espaço europeu, pode ser entendida como a onipresença de Deus em grande parte da Europa Ocidental.

Entretanto, essa onipresença não garantia uma visão unitária de Deus nem mesmo entre os membros da Igreja, uma vez que surgiam as grandes heresias medievais, entre as quais o autor destaca o arianismo (que considerava somente a natureza humana de Cristo e que tornou-se um problema pois alguns reis bárbaros passaram a crer no Deus proposto por Ário), o nestorianismo (que separava a natureza humana e divina do Filho, tornando o culto mariano inviável e a Virgem incapacitada de ser a “Mãe de Deus”), o monofisismo (que considerava apenas a natureza divina de Cristo, o que abria uma grande brecha para a noção de um angelomorfismo cristilógico2 ) e o pelagianismo (que colocava o livre-arbítrio em local de destaque sobre a graça, gerando uma espécie de embrião de um humanismo medieval). Entretanto, o autor considera que o Deus do Ocidente Medieval não foi muito influenciado por tais movimentos.

Le Goff conclui o capítulo analisando os momenta Dei, ou seja, os momentos em que as Pessoas da Trindade eram vistas de maneiras diferenciadas, entretanto não antagônicas. De acordo com o autor, no período Carolíngio, o momento era do Deus Pai, idoso, protetor e fonte de autoridade. Até Carlos Magno tentar reconstruir o Império e Deus, passa ao seu momento de majestade. Já no século XIII, principalmente com Francisco de Assis, o Deus da Idade Média chega ao seu momento de Filho, feito homem, que morre na cruz e é imitado em sua humildade; ainda nesta mesma centúria, o autor refere-se a um momento de coexistência entre o Deus da Paixão e o da Eucaristia, através das procissões de Corpus Christi.

No segundo capítulo, “Duas figuras maiores, o Espírito Santo e a Virgem Maria” (p. 43-61), Le Goff centraliza seus comentários nessas duas figuras, contudo, dá mais atenção à primeira. Sobre o Espírito Santo o autor O considera, num primeiro momento, como uma espécie de “motor da História” (Deus ex machina), nos moldes veterotestamentários, uma vez que Ele é o grande responsável pelas transformações históricas daquela época, como a citada conversão de Clóvis por exemplo, na qual a ação teria sido toda desenvolvida por Deus e não pelo monarca, que serviu apenas de instrumento de cristianização. Em seguida, analisa a preocupação dos clérigos medievais em desenvolver uma teologia para o Espírito Santo e difundi-la na sociedade através de Seus sete dons (temor, piedade, ciência, força, conselho, inteligência e sabedoria) e também por tornar-se o Deus das confrarias e hospitais, não sendo mais um privilégio exclusivo dos reis convertidos. Doravante, no século XIII o tema ficou em voga por conta de disputas entre teólogos e clérigos, que pretendiam responder se os sete dons eram resultado das virtudes ou vice-versa, até a questão ser resolvida pela Escolástica de Tomás de Aquino, que considerou os sete dons superiores.

Outra figura importante para a promoção do Espírito Santo nesse momento foi Joaquim de Fiore, que desenvolveu a noção de Concórdia, ou seja, que a História é dividida em três eras: a do Pai (caracterizada pela Lei Mosáica veterotestamentária), a do Filho (de influência neotestamentária, caracterizada pela presnça da Igreja) e a do Espírito Santo (que estaria por vir, caracterizada por uma sociedade pautada fundamentalmente na espiritualidade cristã de procedência monástica). Para o autor, Joaquim de Fiore e seu milenarismo deram ao Espírito Santo o lugar de “motor da História”. Também faz uma breve análise dos estudos de François Boesplug sobre as formas de representação mais difundidas da Trindade entre os séculos XIII e XV, como Trono da Graça, Trindade do Saltério, Paternidade, Trindade Triândrica e Trindade Tricéfala.

Sobre a Virgem, o autor apenas afirma que a iconografia mariana se espalha abruptamente, por conta a alusão entre necessidade de proteção da sociedade e a proteção divina de seu manto. Entretanto, o autor não consegue afirmar se a promoção da Virgem estaria ligada a uma promoção da mulher naquele momento. Porém, acredita que não, uma vez que Maria ao se tornar a Virgem, sublimou seu caráter femino e passou a possuir características divinas e não mais de mulher e encerra o capítulo fazendo uma crítica a Philippe Ariès afirmando que pais amavam sim seus filhos na Idade Média e o que ocorreu foi uma alteração na figura das crianças por conta da imagem do Menino Jesus.

No terceiro capítulo, “A sociedade medieval e Deus” (p. 65-83), o autor inicia sendo questionado sobre as características da sociedade chamada de cristantade medieval e responde analisando o papel de Deus nessa sociedade chamada também de feudal, pois era baseada numa rígida hierarquia social, resumida entre senhores e servos. E nesse contexto, Deus é o senhor por excelência (Dominus Deus), é o ponto mais alto da hierarquia social medieval e por isso mesmo sua garantia. Ou seja, servia como justificativa de sustentação do poder senhorial e mesmo o poder monárquico, uma vez que Deus também é um rei e Jesus Cristo é conhecido como o Rei dos reis. O autor conduz a ideia de Dominus para próximo do senhor feudal e/ou rei, que através da representação das mãos que saem das nuvens, exerce uma função de comando, ordem, punição e proteção. Nestes termos, o autor afirma que a figura do Deus Pai se encaixa melhor nesse esquema de dominação do que as outras duas figuras da Trindade. Além de rei é também representado como juiz, ou seja, aquele que concentra em si o poder decisório, que preside os debates e que decide numa assembleia, sentado no seu trono em verdadeira majestade. Nesse momento, podemos inclusive confundir as imagens de Deus, rei e senhor feudal, uma vez que todos possuem essas funções dentro de seus próprios domínios.

Outra característica marcante é a relação de Deus e a justiça. O Senhor que por vezes permitia que Satã e seus agentes atuassem na Terra, proferia medidas de ordem social. Por esta razão, os reis, enquanto representantes de Deus (rex imago Dei), levantavam o bastião da justiça que invariavelmente conduzia a sociedade à paz. Uma outra forma da onipresença divina no campo da justiça eram os famosos ordálios ou o “juízo de Deus” e também a chamada “paz de Deus” que atuava em prol das camadas populares, contra a violência dos guerreiros.

No quarto e último capítulo, “Deus na cultura medieval” (p.87-114), Le Goff, deixando claro um afastamento em relação ao Marxismo, utiliza a ideia de tensão em detrimento a de dialética, para mostrar os conflitos existentes entre as relações diretas e indiretas com Deus pelos medievais. Segundo afirmações do autor, a Igreja desempenha um grande esforço para se manter no papel de única mediadora entre os homens e Deus, utilizando-se da Teologia e dos Sacramentos, pois no século XII a noção dos sete pecados capitais já estava elaborada e seu contraponto eram, mais uma vez, os sete dons do Espírito Santo, que eram acessíveis através dos sete Sacramentos, os quais somente eram distribuídos pela Igreja.

Todo esse esforço era para conter ao máximo as relações diretas ou individuais dos homens com Deus, que segundo Le Goff, estimulavam o aparecimento de heresias. Outro caminho para conhecer Deus era através do curso de Teologia, a ciência de Deus, que se sobrepunha aos outros cursos (Direito e Medicina) na recém-nascida universidade, ou seja, sem dúvida era um conhecimento mais erudito de Deus. Doravante, a Teologia aproximou-se da razão aristotélica nas cadeiras universitárias a partir do século XIII, uma vez que o filósofo pagão acreditava na existência de um deus intelectual. Mas a Teologia universitária não surgiu apenas para o bem do cristianismo católico, mas também gerou problemas, principalmente do averroísmo até Eckhart, com seu forte misticismo.

Contudo, o autor afirma ser o Deus dos teólogos medievais o mesmo Deus da Bíblia. Entretanto, com a existência de tensões entre a leitura literal das Escrituras e a leitura interpretativa, o que colocava em conflito as imagens de Deus provenientes desses métodos, mas também historicizava Deus, permitindo-lhe tais transformações ao longo do tempo. Estas múltiplas interpretações da figura de Deus, permitiram, por exemplo, o afastamento entre o Deus do Ocidente Medieval e Javé, o Deus judáico, apesar de serem o mesmo; ou seja, os cristãos viam Javé não como o Deus veterotestamentário mas sim talmúdico e a tensão acabou passando para a Virgem, que alguns Talmudes além de destacar a sua humanidade, ainda a representavam como uma prostituta; neste sentido, para os cristãos, Javé foi suprimido, acompanhando a “Virgem prostituta” de alguns Talmudes.

Interrogado por Pouthier, Le Goff afirma que todo esse sistema imbricado de crenças tinha como base a fé e também as manifestações terrestres de Deus; ou seja, acontecimentos extraordinários e inexplicáveis para os medievais: os milagres. Para o autor, o Deus da Ocidente Medieval é um grande fabricante de milagres. Entretanto, tais fenômenos suscitavam dificuldades de entendimento e até mesmo desconfiança por parte dos mais instruídos intelectualmente, pois, através desses fenômenos, Deus atuava contra as leis da natureza, criadas por Ele próprio. Doravante, a partir do século XII o volume de milagres foi mitigado e a crença afirmava que era em consequência dos pecados dos homens que vinham aumentando. Por isso, a Igreja criou novos sistemas, como por exemplo a noção de Maravilhoso (Mirabilia), que num primeiro momento podia parecer um milagre ou um fenômeno que desconsiderava as leis da natureza criadas por Deus, mas quando analisados com mais propriedade, percebia-se que eram fenômenos raros, mas que estavam permeados dentro do âmbito “jurídico” da natureza criada por Deus. Porém, isto limitava a onipotência divina, por conta da redução do número de milagres, mas fazia ser perceptível a criatividade de Deus ao criar a natureza.

O capítulo se encaminha para o final, quando a questão do lugar do homem na cristandade medieval é levantada pelo interlocutor de Le Goff, que analisa partindo das seguintes premissas: questiona como o homem se define diante de Deus e para tal resposta analisa as Sagradas Escrituras, onde percebe que o homem é uma criação parental de Deus, que por sua vez, num primeiro momento, encontra-se satisfeito com sua criação e por isso a satisfaz no Jardim do Éden, dentre outras maneiras com a noção positiva de trabalho. Entretanto, com o evento da Queda, para castigar o homem, essa noção é invertida para o lado negativo. Segundo Le Goff, o homem, apesar de imagem de Deus, possui um distanciamento em relação ao Criador no campo do saber, que do primeiro é onisciente e do segundo é restrito.

Com base em tais afirmações, o autor chega a conclusão que a imagem do homem pecador e castigado veterotestamentário, utilizando como exemplo Jó, somente será rompida no século XIII, onde podemos encontrar a gênese do humanismo medieval. Este que é defendido pelo autor por dois caminhos. O primeiro, considerando o antropocentrismo, ou seja, o homem como, além de criação de Deus, um objeto de salvação, tornando-se dessa maneira o centro do mundo. Entretando com reservas a superioridade divina, pois somente através da obediência e de seu amor os homens serão salvos. O segundo, considerando a influência do pensamento da Antiguidade, que durante o Medievo não foi refutado, mas apropriado pelo cristianismo e que foi uma grande via de cristianização dos pagãos, conforme afirma Jaeger3 , que inclusive, concorda com a existência de um humanismo medieval e não somente o antigo ou renascentista, assim como Le Goff. Partindo desses pressupostos, para o autor, é possível pensar num humanismo medieval a partir de duas vias: o valor do homem na criação (antropocentrismo) e o resgate da cultura da Antiguidade reinterpretada pelo cristianismo. No século XIII essa tendência humanista se consolida na figura de Francisco de Assis e sua imitação do Cristo humanizado e humilhado.

Na conclusão (p. 117-121), os temas são o monoteísmo das três grandes religiões abraâmicas, suas tensões e construção de indentidade e alteridade, que no cristianismo perfaz a elaboração teológica da Trindade e a promoção do culto mariano. Entretanto, o autor afirma que os muçulmanos reconhecem uma aproximação com judeus e cristãos, mas que por parte desses últimos o que ocorre é uma relação conflituosa entre Deus e Javé e uma ignorância em relação a Alá, apesar de representarem a mesma figura. Em suma, o autor encerra suas análises considerando o Deus cristão da Idade Média Ocidental, por um lado como protetor, chamado de “Bom Deus” e por outro lado como sofredor, no evento da Paixão.

Jacques Le Goff parece ser como o próprio Deus da Idade Média: onipresente, por tratar de fatos, eventos e processos numa perspectiva de Longa Idade Média (termo inclusive cunhado por ele próprio) e também para além dessa fronteira temporal e onipotente, por dialogar com uma infinidade de fatos, teorias, conceitos e metodologias, não somente no campo da Historiografia (no melhor estilo Annales), para sustentar suas ideias e demonstrar seu vasto conhecimento, fruto de décadas de dedicação ao estudo historiográfico da religiosidade cristã no medievo ocidental.

Notas

2 A noção de que Jesus Cristo seria um anjo, conforme analisado em: STEYN, Gert J. Addressing an angelomorphic christological myth in Hebrews? New Testament Society of South Africa. Pietermaritzburg, África do Sul, v. 59, n. 4, p. 1107-1128, 2003.

3 O autor estabelece uma ligação entre o humanismo cristão primitivo e o humanismo renascentista, portanto uma ligação separada por cerca de dez séculos, mas que de acordo com Le Goff, pode ser unida pela existência do humanismo medieval. Vide: JAEGER, Werner. Cristianismo Primitivo y Paideia Griega. 6ª Reimpressão, México: Fondo de Cultura Económica, 1993.


Resenhista

Jorge Gabriel Rodrigues de Oliveira – Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro. E-mail: jorge_gro@oi.com.br


Referências desta Resenha

LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média. Conversas com Jean-Luc Pouthier. Trad. Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. Resenha de: OLIVEIRA, Jorge Gabriel Rodrigues de. Signum- Revista da ABREM, v. 13, n. 2, p.182-189, 2012. Acessar publicação original [DR]

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