O desafio historiográfico – REIS (RTA)

REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: FGV, 2010, 160 p. Resenha de: SILVA, Vicentônio Regis do Nascimento. Desafios. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 5, n.9, jan./jun. 2013. p. 472 – 476.

A história é um conhecimento possível? Seria possível fazer afirmações com significado lógico sobre o passado? significado lógico sobre o passado? Seria possível fazer uma descrição objetiva do passado, referindo-se de fato a ele? Se isto for possível, quais os limites dessa possibilidade? O que faz efetivamente o historiador? Qual é o seu real interesse, a sua sensibilidade profunda? Qual seria a relevância intelectual de uma pesquisa histórica? Enfim, qual seria a identidade epistemológica da história? (p. 11).

Em linguagem melíflua, informal, acessível, repleta de paixão e, ao mesmo tempo, densa, acadêmica e erudita, O desafio historiográfico é, em poucas palavras, declaração de amor à História (com H maiúsculo), defesa do ofício dos historiadores e, principalmente, esclarecimentos didáticos de quem, nas últimas décadas, se empenhou nos estudos e na divulgação das filosofias e das teorias dessa manifestação do conhecimento. Seria ela disciplina? Matéria? Ciência? Arte? Os primeiros três capítulos são inéditos. Discutem a utilidade, o status e a responsabilidade dos historiadores, os papéis da História, da Memória, do Esquecimento, as relações entre História e Literatura. Os últimos três retomam reflexões anteriores, devendo, tanto uns quanto outros, ser acompanhados de Carr, Schaff, Aron, Rusen, Marc Bloch e, entre os brasileiros, Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas.

Conforme o autor, a análise das dificuldades e o confronto de objetos são pressupostos da reflexão do profissional. A alta complexidade de teorias, metodologias e análises instigam pesquisadores a defender a inviabilidade do conhecimento histórico argumentando, entre outros, o fato de 1) apresentar-se indireto e inconsistente, recorrendo a testemunhos (intermediários suspeitos) que podem controlar a imagem construída para o futuro; 2) inventar conceitos que não explicitam os objetos estudados, mas criam intrincados sistemas de dados a fim de fomentar a “verdade”; 3) atribuir caráter anedótico à História, incapaz de previsões, articuladas após a ocorrência dos eventos, respaldando obviedades e falácias; 4) evidenciar o anacronismo: o conhecimento do passado perdura uma geração do presente, ao fim da qual novas interpretações surgem, sendo a História permanentemente reescrita; 5) fomentar reconstrução fantasmagórica em que, sem objeto, não se produziriam erros, mas confusões. Objetivando inicialmente a queda da imaginação e do discurso ficcional por meio da pesquisa e da investigação de fatos provenientes de testemunhos oculares, a História esforça-se para:

representar adequadamente o real, realizando as seguintes operações cognitivas: registro, memorização, revivência, reconstituição, reconstrução, interpretação, compreensão, descrição, quantificação, narração, análise, síntese. Como busca da verdade, como conhecimento adequado da realidade dos fatos humanos, ela reivindica o estatuto de “ciência” e quer ser considerada “antípoda da ficção” (p. 17).

Segundo José Carlos Reis, a História recorre a mecanismos e sistemas científicos a fim de se sobressair e se sobrepor; contudo, pondera, seguindo as perspectivas de Nietzsche, que deveria alojar-se contígua à ficção, alçando-se mais a arte do que a ciência. Já Comte a vislumbra de maneira mais pragmática e menos estética, considerando sua finalidade o registro de descobertas, de anais, da linguagem e da memória. Desde seu surgimento, entra em crise, muda de estratégias, influencia instituições e afasta-se de teorias heterodoxas para, na primeira década do século XXI, estreitar diálogos com a literatura, a psicanálise, o cinema e a publicidade. As gerações de novos historiadores desejam implantar “novas histórias” e, para atingir suas finalidades, desvalorizam teses precedentes, ignoram a história da historiografia, incitam ou agravam as tensões nas relações com filósofos, antropólogos, sociólogos, economistas e religiosos.

Depois de esmiuçar as diferenças e as preocupações com a ficção, o autor aborda Memória e Esquecimento na perspectiva de Paul Ricoeur – adepto da fenomenologia de Husserl –, cujo método “(…) pode ser definido como uma ‘hermenêutica fenomenológica’: o fenômeno é o que aparece e não se mostra (fenomenologia) e exige interpretação (hermenêutica)” (p. 31).

Ressalvando-se a impossibilidade de afastar Memória de Imaginação – geralmente contrapostas –, algumas características fazem com que uma se diferencie da outra. Fantástico, ficção, utópico, tempo e lugar indeterminados ou indetermináveis e universo da fantasia são elementos da Imaginação. Na Memória, preponderam a realidade anterior (fenômeno da coisa ausente, mas que existiu), a distância temporal determinável, a ligação ao passado (nunca ao presente ou ao futuro, distinguindo-se percepção/sensação de expectativa), passagem e experiência real do tempo (acompanhadas das lembranças deixadas por elas). Na Memória, conclui o autor, destaca-se o mundo da experiência, em que ações ou eventos são comuns e compartilhados. Ricoeur atribui à Imaginação a condição de requisito para ajudar a Memória a tornar o passado visível, produzindo o reconhecimento. Alicerçada no mundo da experiência, a Memória é vulnerável, comete abusos, joga – consciente ou inconscientemente – algumas situações ao Esquecimento, fomenta relação conflituosa com a historiografia, busca a objetividade em suas explicações ou compreensões exteriorizadas na escrita e na leitura. Evocando Ricouer, “memória feliz” é a que é capaz de operar o “milagre do reconhecimento”.

Retomando os questionamentos de História/Realidade e Ficção/Invenção, o terceiro capítulo analisa as nuances historiográficas e ficcionais da narrativa. Inicialmente, o autor examina Hayden White – conhecido entre os estudiosos das relações entre História e Literatura –, para quem a narrativa histórica constitui desdobramento literário a partir do qual se aventa: história é quase ficção, ficção é quase história.

O capítulo seguinte salienta as problemáticas dos Annales, aprofunda percepções sobre o fato histórico como “construção” – o fato histórico interessa quando da passagem de fato histórico “bruto” a fato histórico “construído” –, redimensiona os conceitos de fonte histórica e de história global ou total, impulsiona a interdisciplinaridade, afastada da filosofia e aproximada das ciências sociais.

O que faria a união da história e das ciências sociais estava além do método, era o “objeto comum”: o homem social. É esse objeto comum, em seu ser social e empírico, que exige uma análise interdisciplinar. Para a análise desse objeto, que lhes é comum, história e ciências sociais “trocariam serviços”: conceitos, técnicas, dados, problemas, hipóteses. No início, a historiografia dos Annales se associou à economia, à sociologia e à geografia. Dessas associações, apareceram ciências compostas: história econômica, história social, geo-história; depois, história demográfica, história antropológica etc. (p. 102-103).

O quinto capítulo aborda relações e confrontos entre os Annales e o Marxismo. Revela as dificuldades de situá-las em decorrência das heterogeneidades tanto no interior da primeira quanto no da segunda. Os argumentos condensam-se em três dimensões explicativas: complementares (pontos em comum aproximam ambas as escolas, minimizando divergências, respaldando a reciprocidade na pesquisa histórica), antagônicas (ao diálogo se sobrepõe, nas palavras do autor, enfrentamento em ritmo de “bate-boca”) e diferenciadas:

Nessa terceira abordagem, a diferença entre as duas escolas se mantém e se intensifica e os níveis ideológico e epistemológico não se fundem. O debate se torna teórico, conceitual. A divergência torna-se profundamente fecunda. Na nossa perspectiva, não seria interessante para a teoria da história nem que as duas escolas se tornassem “complementares” (colaboradoras e indiferenciadas), nem “apaixonadamente diferentes” (surdas-mudas teoricamente entre si). Teoricamente, a sua divergência é extremamente enriquecedora dos estudos históricos e das opções de ação históricas e não deve ser atenuada, mas intensificada. São duas “hipóteses históricas”, dois instrumentos de trabalho, sem nenhum compromisso com a colaboração.

[…] Marxismo e Annales são holofotes parciais que iluminam de algum modo a realidade social. São “ângulos de iluminação”, “pontos de vista”, “instrumentos teóricos”, “hipóteses”, que só são fecundos enquanto são nitidamente “opções teóricas”. Os historiadores se servem de tais hipóteses e não poderiam ser vítimas delas (p. 132-133).

O desafio historiográfico chega ao fim com breves considerações sobre Gilberto Freyre. Em jogo de palavras no elogio ao intelectual e à Casa Grande & Senzala, sua obra mais conhecida, José Carlos Reis adjetiva-o de interlocutor “eterno”, “incontornável”, “indecifrável”, “genial” e “impreciso”, “revolucionário” e “conservador”.

Como explicitado no parágrafo de abertura, O desafio historiográfico é um livro apaixonante e apaixonado. Em linguagem informal, acessível, densa, acadêmica e erudita, reaviva o amor à História e convoca os historiadores – e demais adeptos – a lutarem por ela. Seja pelo desfile de convergências e distanciamentos teóricos, seja pelo didatismo facilitado pela inclusão de subtópicos, estudiosos e iniciantes possuem em mãos texto de alta qualidade que, além da relevante análise de temas e problemas historiográficos, atinge magistralmente assunto crucial na rotina acadêmica e no dia-a-dia docente: as relações entre História e Literatura. Portanto, já se sabe onde buscar explicação consistente e clara quando o aluno questionar: – Mas, aconteceu de “verdade”? É “real”? Como posso saber que, mesmo existindo, alguém não “inventou” mais nada sobre isso?

Vicentônio Regis do Nascimento Silva – Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP – Assis/SP). E-mail: vicrenos@yahoo.com.br.

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