O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30 – FAUSTO (PL)

FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Resenha de: OLIVEIRA, Pedro Carvalho. Quarta-feira de cinzas e sangue: “O Crime do Restaurante Chinês” de Boris Fausto e o Brasil dos anos 1930. Ponta de Lança, São Cristóvão, v. 5, n.9, p. 71-73, out., 2011.

São Paulo, capital, 2 de março de 1938. Enquanto a cidade começava a se recuperar dos muitos dias de festas e bailes de carnaval e o país se preparava para torcer pela seleção brasileira na Copa do Mundo da França, um crime ocorrido na Rua Wencelsau Braz chamou a atenção da polícia, da opinião pública e da população. As vítimas foram dois imigrantes chineses, que possuíam um restaurante no mesmo local onde moravam – cenário que viria a ser o de suas mortes. Seus dois empregados, um brasileiro e um lituano, também foram mortos.

O crime chamou a atenção pelo número de mortos, mas também pela maneira fria com a qual as vítimas foram supostamente tratadas. Nos dias de hoje, com a banalização da violência gerada principalmente pelos meios de comunicação, este crime não se diferencia significativamente de outros que podem ocorrer no dia a dia, em especial numa cidade grande e repleta de diferenças sociais como São Paulo. Mas em 1938, ele ficou marcado como um dos maiores crimes da época, sendo comentados por jornais, programas de rádio e pelas pessoas nas ruas, que a todo tempo lembravam “O Crime do Restaurante Chinês”.

Este é o título do livro lançado pelo historiador brasileiro Boris Fausto, em 2009 pela Cia das Letras. Em 246 páginas, numa edição muito bem cuidada, repleta de fotografias e imagens de jornais da época, Fausto discorre sobre o acontecimento e sua relação com o contexto do Brasil naquele ano. Por meio de uma abordagem que se utiliza da micro-história, reduzindo a escala de análise da conjuntura, o autor pode enganar os leitores menos preparados: a narrativa efetuada por ele lembra a de um romance policial, enquanto ele nos conduz ao caso do assassinato de Ho-Fung e Maria Akiau. Porém, não estamos lidando com ficção policial, e sim com um acontecimento verídico. Quem teria os matado? E por quê? Quem era o casal e qual era o seu papel na São Paulo dos anos 1930? Como o carnaval, o futebol e a justiça, que aparecem no subtítulo da obra, se ligam ao caso?

A princípio, a motivação do crime parece estar relacionada à nacionalidade das vítimas. Ho-Fung e Maria Akiau eram chineses e, como outros imigrantes, chegavam ao Brasil em busca da possibilidade de crescimento econômico, para depois voltarem a seus países e reconstruírem suas vidas. Entretanto, estes imigrantes não eram vistos por boa parte da população de maneira positiva. Eram abordados comicamente em músicas, pela linguagem e costumes estranhos aos brasileiros, além de serem vistos pelo cinema americano, que com frequência eram exibidos no Brasil, como figuras astutas, aproveitadoras e pouco amigáveis, além de astutos e cruéis. Eram tratados como “perigo amarelo”, lembra o autor. Os filmes do Dr. Fu Manchu, que sempre atraíam grande público, resumiam este estereótipo. Vemos com estes detalhes um pedaço da relação entre o povo brasileiro e o cinema, que começava a influenciar fortemente a sociedade.

A São Paulo dos anos 1930, assim como todo o país, vivia a Era Vargas e o recém-surgido Estado Novo. A política ganhava novas feições depois do golpe dado por Vargas, pondo fim às grandes oligarquias que dominavam o país na Primeira República, com exceção da mineira e da gaúcha, e novamente em 1937, extinguindo partidos políticos e outorgando uma nova constituição. O poder estava cada vez mais restrito e as feições repressivas de uma ditadura se tornavam cada vez mais concretas. No entanto, o carnaval e o futebol levava o povo a um comportamento que ia à contramão deste conservadorismo. Nos bailes e nos estádios, as farras, as palavras de baixo calão e a atuação frenética das pessoas nada tinha a ver com a política de boa imagem pensada pelo governo. Ao mesmo tempo, o futebol e o carnaval já desviavam o olhar do público para os problemas do país e até mesmo de casos supostamente mais simples, como o crime.

O assassino do restaurante chinês brincou o carnaval. Era um boêmio, de condição financeira baixa e negro. Com estas credenciais, não é de se admirar que, naquele momento, Arias de Oliveira, ex-funcionário do restaurante, fosse um dos principais suspeitos. O Brasil vivia a ascensão de novas técnicas de investigação que foram utilizadas no caso. Entretanto, estas técnicas revelaram-se preconceituosas e racistas por apontar, na busca de traços comuns entre criminosos, os negros como maioria entre assassinos e ladrões. Curiosamente, o futebolista Leônidas, negro e craque da seleção brasileira naquela época, ganhava as graças do povo, um contraste dentro de uma sociedade onde o preconceito racial permanecia muito forte.

A justiça foi dura com Arias, que devido às investidas forçosas dos promotores e investigadores, convictos de que ele havia cometido o crime, acabou confessando mesmo sem tê-lo cometido. Naquele estágio, o caso do “crime do restaurante chinês” era explorado por jornais sensacionalistas, locutores de rádio demagogos e cada vez mais era comentada pelo povo, que acompanhava cada passo das investigações. A sensação era de que o crime hediondo havia se tornado uma espécie de lenda, daquelas que marcam o imaginário de uma época.

E, de fato, assim o foi. O próprio Boris Fausto relata que, mesmo tendo apenas oito anos de idade quando do acontecimento trágico, viveu o frenesi do caso e a repercussão que ele ganhou semanas, meses e até mesmo anos depois. Faz parte de sua memória pessoal e da memória coletiva dos paulistanos que presenciaram notícias e manifestações a respeito do caso. No entanto, Fausto distancia-se de uma memória afetiva que poderia comprometer o seu trabalho. Ela existe, mas não atrapalha sua análise e não está presente a todo momento.

O acesso à documentação foi, sem dúvida, o elemento mais triunfante para a constituição de seu texto. O tratamento dado aos jornais da época, às fotografias da investigação e aos registros sobre o crime, marcado pela existência, por exemplo, de marchinhas carnavalescas que narram o ocorrido, é primoroso. Além disso, estamos falando de um especialista no período. A erudição do autor, mesclada ao conteúdo material de que dispõe, fornece o enredo para o livro.

E é desta forma que a história é tratada e contada: como um enredo de romance policial, onde um narrador nos leva aos diversos cenários, com inúmeras possibilidades de suspeitos e envolvidos. Proporciona-nos até lapsos de medo, de preocupação, como num suspense bem montado e envolvente. Mas, acima de tudo, sem perceber, o leitor conhece aspectos fundamentais sobre a cultura, a política, o lazer e o racismo num período conturbado para o Brasil.

Tratava-se de um momento na história do país em que as esquerdas apareciam de maneira intensa no cenário político militante, mesmo que mal vistas pelo governo de Vargas, que em 1937 demonstraria toda a sua preocupação com estas correntes por meio do golpe que instauraria o Estado Novo. Nas artes, assim como nas manifestações populares, estas ideias eram expressivas, mas incomodavam em demasia aqueles que protegiam o poder. Exemplo de outro contraste importante desta conjuntura histórica do Brasil. Por um lado, crescia o interesse pela libertação, atrelado ao pensamento modernista. Mas, por outro, o conservadorismo varguista, ainda que ancorado no pensamento de modernização, fazia crescer as imposições a estas formas de expressão.

A situação dos imigrantes é posta é pauta, distante destas mudanças que ocorriam num âmbito mais elitista. Os próprios imigrantes e os brasileiros discutiam este fenômeno: chineses, italianos, japoneses, entre outros, viam no Brasil, que crescia industrialmente, vendo a possibilidade de refazerem suas vidas, permanecendo ou não no país. Para os locais, muitos eram tidos como figuras exóticas, sombrias, pouco simpáticas e agradáveis. O mesmo ocorre com os negros, também abordados por Fausto: vítimas do preconceito em diversas situações, principalmente pela justiça. As artes e as manifestações populares pouco a pouco integrariam os estrangeiros, fosse contra ou a seu favor.

No tocante das manifestações populares, carnaval e o futebol já eram importantes para nossa cultura intensamente. Tão importante que não tiveram sua essência modificada pelas mudanças políticas geradas pelo golpe de 1937, que estabelecia o início do Estado Novo. No carnaval, negros e brancos dançavam, pulavam, extravasavam no comportamento e ironizavam ou exaltavam Getúlio, deus e o diabo. No futebol, o “Brasil com a bola nos pés” independia da política e de classes sociais ou de cores. O ídolo negro era o goleador, uma espécie de orgulho da nação. Fundamentalmente, o livro expõe as contradições do Brasil naquela época, que, salvo suas especificidades, não se restringiam apenas à cidade de São Paulo.

O crime, que aconteceu por inveja ou por dinheiro, como sugere Fausto, circulou dentro de uma conjuntura específica, a qual é possível entender tendo como base um pequeno acontecimento. A obra privilegia os agentes mais discretos da história: pessoas comuns, menos privilegiadas pela historiografia oficial, respeitando seus papéis na construção da história do Brasil. Ao invés de analisar detalhadamente os princípios do governo de Getúlio Vargas, ou qualquer elemento constituinte desse processo, o historiador prefere diminuir a escala de análise, entendendo aquela atmosfera sobre outro prisma.

Referências

FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Cia das Letras, 2009.

FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930. São Paulo: Cia das Letras, 2009.

CÂNDIDO, Antº. A revolução de 30 e a cultura. In: Novos estudos CEBRAP. São Paulo: v. 2, n. 4, abril 1984.

Pedro Carvalho Oliveira – Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe. Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/CNPq/UFS).  Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET/MEC/UFS). E-mail: pedro@getempo.org

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