O crime da Galeria de Cristal: e os dois crimes da mala | Boris Fausto
Os chamados faits divers, ou seja, tudo o que é fora do comum, insólito ou inesperado, têm frequentado, desde o final do Oitocentos, as páginas da imprensa e assegurado o sucesso de várias publicações. A fórmula tem se adaptado a cada novo veículo, seja o rádio, a televisão ou a internet. Os crimes bizarros constituem-se em fonte inesgotável, como atesta, por exemplo, os programas das redes de televisão abertas, que cotidianamente esmiúçam detalhes de perversidades variadas. Para ficar apenas num exemplo, basta citar o caso ocorrido em fevereiro de 2020, no programa policialesco da TV Record de São Paulo, Cidade Alerta, apresentado por Luiz Bacci, que informou, ao vivo, para uma mãe que sua filha acabara de ser assassinada pelo namorado. O caso gerou fortes críticas, tendo em vista a espetacularização barata da dor alheia, regada por altas doses de falta de ética.
Tais práticas, é importante lembrar, remontam ao final do século XIX, momento em que os jornais, então os principais veículos de comunicação, narravam, não sem doses de sensacionalismo, a repercussão de crimes, conforme demonstra Boris Fausto no seu novo livro, O crime da Galeria de Cristal: e os dois crimes da mala. São Paulo, 1908-1928. O autor organizou a obra em duas partes: a primeira, intitulada “O crime da Galeria de Cristal”, contém dez capítulos [71] e outra, sob o título “Os crimes da mala”, divide-se em doze capítulos. [72] A obra abre-se com uma introdução e encerra-se com conclusão e anexo, que traz o diário de um dos réus, publicado originalmente em 1908 no jornal O Estado de S. Paulo.
O volume contém, ainda, fotografias relativas aos acontecimentos e personagens envolvidos, além de alguns desenhos, charges e propagandas publicados nos jornais e que, ainda que de modo indireto, guardavam relação com os fatos analisados.
Na introdução, o historiador apresentou os objetos de seu estudo, ou seja, o crime da Galeria de Cristal, ocorrido em 1909, e dois crimes que ficaram conhecidos como sendo da mala, datados de 1908 e 1928, todos registrados na cidade de São Paulo. A análise não é cronológica, mas organizada segundo a natureza dos assassinatos, já que os dois últimos seguiram o mesmo padrão, ainda que os responsáveis fossem pessoas distintas. A escolha não foi aleatória, trata-se de três delitos que causaram sensação na época, envolveram figuras femininas e permitem múltiplas apreensões, seja em relação às motivações, aos perpetradores, ao desenrolar da investigação, do processo e do julgamento. Noutros termos, três crimes que receberam considerável atenção da imprensa e que ofereceram ao historiador a oportunidade de refletir sobre o contexto em que ocorreram e as narrativas construídas em torno dos mesmos.
Como destacou Fausto, as décadas iniciais do século XX foram momentos de transformações importantes na cidade de São Paulo, cada vez mais cosmopolita: “Tudo se acelerava: as invenções, os divertimentos, a comunicação, a última moda – o dernier cri -, vinda de fato ou supostamente de Paris.” (FAUSTO, 2019, p. 22, grifos do autor). Vivia-se no período posteriormente denominado de Belle Époque, quando os símbolos do progresso técnico, a exemplo dos automóveis, bondes elétricos, iluminação pública, cinema, câmeras fotográficas portáteis, anunciavam a modernidade e insuflavam a crença no progresso e no domínio sobre a natureza. As mudanças não se restringiam aos artefatos técnicos, também alteravam as relações e o comportamento social, com a multiplicação das “[…] brigas de botequim, a socos ou a facadas […]” (FAUSTO, 2019, p. 23), que alimentavam as rubricas dedicadas aos faits divers, que povoavam não apenas as páginas dos impressos periódicos, (KALIFA, 1993) mas também as telas dos cinematógrafos, cujas imagens impressionavam por ainda guardarem o sabor das novidades.
O crescimento urbano acelerado, que marcou São Paulo a partir da década de 1880 e que transformou a antiga cidade de estudantes numa das mais dinâmicas capitais da América Latina, mostrava a sua outra face, com o aumento da criminalidade, aspecto estudado por Boris Fausto em Crime e cotidiano, quando analisou “[…] centenas de autos, alguns dos quais fixados na minha memória por seu conteúdo dramático, expresso nas peças judiciais, nas fotografias, nas cartas escritas em línguas estrangeiras.” (FAUSTO, 2019, p. 217) e deparou-se com dois dos crimes deste novo livro: o da Galeria de Cristal e o primeiro dos denominados da mala.
Embora não tenha podido analisar novamente os processos judiciais, que se encontram atualmente “[…] ‘deslocados’ – um quase sinônimo da impossibilidade de consultá-los […]”, (FAUSTO, 2019, p. 217) Fausto criou uma narrativa envolvente sobre pessoas comuns, que saíram do anonimato diretamente para as páginas dos jornais. Inspirado nas perspectivas abertas pela história do cotidiano e da micro-história, o historiador analisou, de forma circunstanciada, como a imprensa noticiou esses episódios, desde o primeiro momento até o seu desfecho nos tribunais, e assumiu, por vezes, a tarefa da polícia, na medida em que tentou investigar e resolver o enigma, sem deixar de se tomar posição a favor ou contra os acusados.
O historiador detalhou as circunstâncias que envolveram e o desenrolar dos crimes, um deles cometido por uma mulher que se apaixonou por um jovem bacharel e o assassinou, após ter sido abandonada grávida, e outros dois cometidos por estrangeiros, que se fixaram no Brasil em 1908 e 1928, respectivamente. O primeiro assassinou o patrão e o segundo a esposa, tendo se livrado dos corpos da mesma forma, colocando-os em malas.
Frente à impossibilidade de propor quadros generalizantes, como o próprio autor destacou, a pesquisa teve em mira analisar, a partir de casos específicos, o debate jurídico em torno dos métodos de investigação, dos argumentos legais mobilizados, a exemplo de eventuais atenuantes, particularmente utilizados no caso do crime da Galeria de Cristal, da atuação dos advogados, que por meio de longas arguições apelavam para os mais recônditos sentimentos do júri e mesmo às instâncias superiores da magistratura, na tentativa de livrarem seus clientes da cadeia, dos promotores, que falavam em nome das vítimas, do júri, cujos votos eram aguardados com ansiedade, e também dos populares que, seja dentro ou fora do Fórum, esperavam curiosos o desfecho da história.
Merece destaque o tom da narrativa, capaz de atingir um público amplo, sem abdicar, contudo, do rigor historiográfico e do tratamento crítico das fontes, que não são mobilizadas como portadoras de verdades, mas enquanto construção narrativa que requer análise e atenção em relação aos interesses envolvidos, entre eles aumento da venda dos jornais. Além das qualidades em termos de trabalho metodológico com documentação diversificada, merece atenção o sabor das páginas escritas por Boris Fausto, que nos convida a refletir sobre uma outra São Paulo, habitada por levas de imigrantes pobres, cujas vozes se ouve, ainda que de forma indireta, a partir dos registros e notícias policiais, tal como ocorre com mulheres pobres, enganadas e abusadas e que, no mais das vezes, carregavam sozinhas suas dores.
Notas
71. O Crime, A Galeria de Cristal. O Crime-Folhetim, Os personagens, O enterro. A repercussão do crime. Disputas na imprensa, Duas visões feministas opostas, Na cadeia pública. O primeiro julgamento, O segundo julgamento e a indignada imprensa carioca, Terceiro julgamento: uma batalha quase decisiva, Últimos lances, Os julgamentos de Elizário: um final previsível.
72. Negócio e afetos, O crime, O sensacionalismo da imprensa. Fantasias, Rumo a São Paulo. Um “furo” fracassado, Trad e Carolina: cartas de amor?, Peripécias judiciais. Preconceitos e simpatias, O diário de Trad, Trad domina a cena, Uma longa prisão. Livre, mas vigiado, O segundo crime da mala, Os crimes em letra e imagem, Trad, Pistone e Maria Féa em confronto.
Referências
CUNHA, Israel Ozanam de Sousa. Quem era o Doutor Anísio? O desafio da ficção étnica à história social do Rio de Janeiro (1889-1916). 2018. 548 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018.
FAUSTO, Boris. O crime da Galeria de Cristal: e os dois crimes da mala. São Paulo, 1908-1928. São Paulo: Companhia das Letras: 2019.
KALIFA, Dominique. Les tâcherons de l’information: petits reporters et faits divers à la “Belle Époque”. Revue d’histoire moderne et contemporaine, Paris, n. 4, p. 578-603, tome 40. 1993. https://www.persee.fr/doc/rhmc_0048-8003_1993_num_40_4_1691 .
João Lucas Poiani Trescentti 70 – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Unesp/Assis. E-mail: jlptrescentti@hotmail.com orcid.org/0000-0002-1801-6882
FAUSTO, Boris. O crime da Galeria de Cristal: e os dois crimes da mala. São Paulo, 1908-1928. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: TRESCENTTI, João Lucas Poiani. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.10, n.18, p. 298-301, Jan./jul. 2020. Acessar publicação original [DR]